24/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Da incompreensão das ruas à judicialização da política brasileira

Publicado em 17/03/2016 12:00 -

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À luz dos últimos acontecimentos políticos e dos desdobramentos da Operação Lava Jato, o filósofo Moysés Pinto Neto comenta a judicialização da política no Brasil. Ele também comenta as recentes manifestações, pontuando que diferente de Junho de 2013, agora elas se canalizam “para a forte rivalidade eleitoral de 2014 e o ingrediente extra da Operação Lava Jato”. Em sua avaliação “aglomerações multitudinárias, em que o sujeito é 'ninguém' e 'todos', têm tido um perfil mais à direita, associado ao público crítico do petismo, à classe média tradicional e seu ressentimento em relação às transformações brasileiras da última década e aos embates cotidianos com movimentos de esquerda e minoritários”. E adverte: “O fato de em 13 de março Bolsonaro ter sido o único a conseguir discursar, e não as alas moderadas, é extremamente preocupante”.

 

Há judicialização da política no Brasil?

Ela tem ocorrido no Brasil nos últimos anos. Em 2012, inicia-se o julgamento do "Mensalão". O Governo tem índices turbinados e não corre riscos, mas, para surpresa de todos, o Ministro Joaquim Barbosa assume uma dianteira agressiva na condução do processo e, contra a tendência liberal com crimes de colarinho branco que costumam ter os Tribunais, inicia um processo que irá desaguar na "judicialização da política" que vemos hoje. Desde essa época, equívocos têm proliferado na análise por se postular uma transitividade não mediada da política partidária para a política criminal. O petismo, revoltado com o tratamento punitivista e avesso às formalidades de Barbosa, passa a atacá-lo a partir de uma blogosfera cada vez mais poderosa em influência.

Questiona-se a seletividade do STF e chega-se a defender seriamente, por muitas vezes, a possibilidade de que Barbosa concorresse a cargo eletivo de presidente em 2014. A surpreendente condenação de Dirceu e demais dirigentes petistas faz com que boa parte da esquerda compre a tese de que o "domínio do fato" seria uma estratégia inventada para condenar o PT, sem qualquer base teórica no Direito Penal (o que não é simplesmente verdade, ainda que porventura possa ter sido mal-aplicada pelo STF).

O senhor tem apontado a polarização diagonal que corta direita e esquerda: punitivismo versus liberalismo (ou, no jargão jurídico, garantismo).

O garantismo é uma visão crítica do sistema penal que pode alternar posições desde um liberalismo estrito – independente de quem é julgado, todas as garantias e direitos devem ser respeitados à risca – até um mais extremado, que propõe a supressão do sistema penal ou, dada sua existência, a resistência inflexível contra ele.

A primeira posição pode ser compartilhada – e de fato é – inclusive por pessoas mais identificadas com a direita, enquanto a segunda tende a ser mais exclusiva da esquerda. No caso do Mensalão, o perfil de Barbosa é claramente próximo ao que se nomeia – com base em um artigo de Maria Lucia Karam – de "esquerda punitiva", uma esquerda que acredita na utilização do sistema penal como mecanismo de equilíbrio social nos crimes de colarinho branco.

As arbitrariedades de Barbosa e outros, portanto, não foram uma anomalia no sistema penal: na verdade, revelam como esse sistema opera normalmente, em quase todos os casos, já que a maioria dos juízes se identifica com o punitivismo. A anomalia foi atingir crimes que normalmente ficam impunes por falta de "cobertura normativa", quando algum ator normalmente blindado pela seletividade perde, devido ao jogo político ou econômico, a blindagem. Foi o que ocorreu com o PT.

Estamos indo rumo a um estado de exceção?

Ler a prisão de Lula como a entrada em um "estado de exceção" passa por vários equívocos – se estado de exceção é algo explicitamente vinculado à situação atual. Primeiro, de projetar a disputa político-partidária sobre a política-criminal sem mediações. Na verdade, há uma encampação de um punitivismo socialmente legitimado que judicializa a política, mas ainda se situa no espaço comum usado pelo sistema penal.

A posição de Moro não é nada estranha no Poder Judiciário. Juízes e Promotores que colocam a "justiça" da punição acima de regras formais são extremamente comuns, tanto que vários advogados garantistas – mesmo muitos sendo identificados com a direita – têm insistido em se opor aos métodos.

Essa é uma disputa político-criminal (e em torno dos direitos humanos, claro). As explicações para o arbítrio contra o PT não requerem muita reflexão fora dos quadros tradicionais da Criminologia: quando alguém então imune perde sua cobertura por algum jogo perdido no poder, pode ser alvo de uma seletividade especial, como diz Zaffaroni e outros em um livro mais ou menos recente. Se as manobras fora da lei ou impetuosas formam um estado de exceção, ele não é novidade alguma em relação ao sistema penal.

A posição de Moro não é nada estranha no Poder Judiciário. Juízes e Promotores que colocam a "justiça" da punição acima de regras formais são extremamente comuns, tanto que vários advogados garantistas – mesmo muitos sendo identificados com a direita – têm insistido em se opor aos métodos.

Por outro lado, o que significa "perder a cobertura" nesse caso?

Aqui sim, temos uma transição mediada para a disputa política. Há uma mudança dupla que atua no caso: primeiro, o sistema político está perdendo a blindagem devido à movimentação "antipolítica" que vem dos movimentos de 2013 e segue operando na sociedade; segundo, o PT perdeu sua base social pela sucessão de erros e operações escusas com as quais o neodesenvolvimentismo engoliu o legado democrático do partido.

Os intelectuais comprometidos com o governismo e o apoio crítico não conseguem visualizar isso porque continuam fingindo que 2013 não aconteceu. Em resposta a tudo isso, tudo que o governismo tem conseguido mobilizar é a teoria das "forças ocultas": haveria uma grande conspiração midiático-judiciária e internacional com o intuito de derrubar as conquistas sociais dos últimos anos, buscando com isso inviabilizar Lula como Presidente em 2018. É uma teoria "coerente", mas não se pode culpar as pessoas por não acreditarem em forças ocultas.

Para os que não acreditam, organizar esse caos é condição de sobrevivência, sob pena de sermos engolidos por forças políticas reativas que podem vir com uma voracidade enorme, movidas e apoiadas por um exército de descontentes, inclusive os próprios pobres que o PT se orgulha de ter como aliados, mas que geralmente não avaliam o governo pela identidade política, e sim por critérios pragmáticos que hoje ele não consegue mais satisfazer.

Em que medida podemos considerar que o sistema representativo no modo como está dado chegou aos seus limites?

Vivemos claramente no contexto mundial uma crise das mediações. A democracia representativa, desenvolvida pelo Iluminismo no século XVIII e aperfeiçoada ao longo do século XX pelo desafio dos totalitarismos, funciona com parâmetros que – na era da hiperconectividade, com seu encurtamento do tempo e do espaço – são considerados de baixa intensidade por uma multidão de descontentes.

Ao mesmo tempo, a progressiva colonização do sistema político pelo mercado financeiro e grandes agentes econômicos representando uma fusão baseada na forma-espetáculo que é requisito para eleição de um político, tira legitimidade daquele que é praticamente o único momento de participação direta: o voto.

A transformação das eleições em uma máquina performática provoca a erosão dos debates substanciais: cada vez mais candidatos querem dizer menos para parecer mais e os marqueteiros (o Brasil é um caso emblemático, mas não único) assumem o protagonismo.

Repete-se o oferecimento de uma caixa de mentiras vazias que o candidato, uma vez eleito, irá dispensar "realisticamente". Em vez disso, tenderá a fazer um governo tecnocrático governando com as forças do status quo – entre elas, seus financiadores eleitorais – formando um conglomerado político-econômico que alguns nomeiam "a casta".

O PT perdeu sua base social pela sucessão de erros e operações escusas com as quais o neodesenvolvimentismo engoliu o legado democrático do partido. Os intelectuais comprometidos com o governismo e o apoio crítico não conseguem visualizar isso porque continuam fingindo que 2013 não aconteceu.

É uma crise ética…

A crise da mediação é também uma crise da "palavra" entendida como signo de fiança, da força performativa e ética da própria linguagem, reduzida a um papel instrumental e manipulatório. Como mostra Giorgio Agamben em um dos seus melhores textos, a sociedade do espetáculo se apropria da força material da linguagem fazendo da imagem sua matéria-prima, mas esvazia o potencial transformador dessa operação, consagrando o próprio vazio que de chance do novo passa a repetição do mesmo.

Assim, a crise da mediação é uma crise ética, já que toda ética se pauta pela relação com a alteridade e essa relação se estabelece a partir da crença. Quando os alicerces do sistema estão baseados em um engodo constitutivo, em uma forma de política que naturalizou a quebra da confiança, estão dadas as condições para uma crise geral. Um dos sentidos da ética remete a uma "morada comum", um habitar coletivo, justamente aquilo que é condição de possibilidade da política e atualmente encontra-se abalado.

No intervalo entre as forças políticas tradicionais, hoje quase totalmente deslegitimadas diante do povo que as elege, e o vazio de representatividade da negativa de voto e do voto nulo, emerge um campo gigantesco que alguns nomeiam de "antipolítica". Aqui se situa um espaço de perigo extremo que, como costuma acontecer, é também um espaço de possibilidades para ultrapassar a crise. Trata-se de uma negação sistêmica, a rejeição de todos antecipada pelos argentinos com seu "Que se vayan todos".

Mas é preciso dizer que há vários cortes transversais nessa antipolítica. Anarquistas podem ver esse movimento como a possibilidade de formação de coletivos de auto-organização que, ao rejeitar lideranças verticais e a política tradicional, poderiam criar espaços de convivência livres, laboratórios de uma nova sociedade, como certa vez Peter Pal Pélbart chamou o Parque Augusta de São Paulo. Ao dizer não ao sistema representativo e postular no seu lugar uma formação horizontal, esses coletivos criam "zonas de autonomia temporária" cujo modelo hoje são as ocupações, reescrevendo o espaço urbano e rural, as formas de afeto e convivência, o modelo econômico etc, construindo uma política participativa de altíssima intensidade que fugiria ao Estado/Mercado e sua verticalização hierárquica da política.

É a polarização social contra a casta: em nome da “gente comum”.

Outra forma de ler essa negação sistêmica já mencionada passa pela chave do "populismo", entendendo que os novos movimentos sociais não podem ficar reduzidos a essa dimensão anárquica que alguns chamaram pejorativamente de "folk politics". Em lugar disso, dever-se-ia (o sujeito político aqui não necessariamente se identifica com "a esquerda") adotar o desafio de construir um consenso, superar a fragmentação e tomar o poder, assumindo inclusive a perspectiva de uma liderança vertical e a polarização social contra "a casta".

É a perspectiva do Podemos, como já dito, e corresponde a um programa forte que confrontaria o neoliberalismo em nome da "gente comum" que sente seus efeitos diretamente, sem necessidade de passar por um crivo "identitário" em relação às pautas tradicionais de esquerda. Essa interessante nomenclatura inaugurada pelo Podemos ajuda a cortar a política de modo mais claro que entre "direita" e "esquerda", evitando as ilusões acerca da última, mas deságua numa teoria do populismo que tampouco parece satisfatória, já que é uma crise desse modelo que hoje se vive na América Latina. Apesar disso, ao menos o Podemos tem arriscado e experimentado, coisas que são absolutamente necessárias em um cenário desértico como o nosso.

Qual o perigo da antipolítica?

É possível fazer uma leitura do perigo que a "antipolítica" provoca. A chance de que essa persistente desconstrução do sistema político provoque um efeito de unificação forçada é grande. Jacques Derrida, aliás, nunca pretendeu que a noção de desconstrução se confundisse com um estado de pureza e redenção "pós-preconceitos", como se vulgarizou por aqui, mas sim como uma instabilidade que desarticula as organizações sedimentadas e, com isso, carrega um risco imanente de dilaceração integral.

Derrida sempre colocou que as exigências da vida passam por uma certa economia da desconstrução, já que esta – como toda questão que envolve diferença – envolve um mergulho na morte, numa clara alusão a Freud. Esse estado caótico em que tudo perde forma, portanto, pode conduzir a uma dissolução integral indesejável que, quando realizada, é o próprio mal. É o ponto mais complicado das "filosofias da diferença" entender o papel da organização (trabalho em que meu amigo Rodrigo Nunes, no Brasil, tem desempenhado papel importante).

A transformação das eleições em uma máquina performática provoca a erosão dos debates substanciais: cada vez mais candidatos querem dizer menos para parecer mais e os marqueteiros (o Brasil é um caso emblemático, mas não único) assumem o protagonismo.

Deleuze e Guattari também afirmam, em "Mil Platôs", que a desterritorialização total pode levar a um grau zero que é a própria expressão de um desejo de destruição integral fascista. Podemos visualizar isso com clareza na Europa, em especial na própria França com a ascensão de Le Pen, assim como nos EUA com a possibilidade de candidatura de Donald Trump.

Mesmo filósofos críticos da ideia de que exista um "populismo", como Jacques Rancière, pautando-se por um igualitarismo que encontraria expressão nessas demandas contra os diversos "ódios contra a democracia", reconhece que esse populismo também alimenta a extrema-direita e suas pautas xenófobas, violentas e voluntaristas. A reorganização forçada a partir de uma liderança autoritária que estabilizaria o sistema de modo radical, sem deixar restos e arestas de conflito, é a ameaça mais grave por que passam as democracias ocidentais, perdendo o legado que o fim dos totalitarismos deixou em termos de respeito aos direitos humanos e ao Estado de Direito.

Assim, a antipolítica pode ser capitalizada de diversas formas, tendo em comum a rejeição em bloco de todo sistema de mediação e variando em termos de uma reunificação à direita ou à esquerda, ou simplesmente uma fragmentação pluralizante que organizaria de outro modo a política (em termos utópicos).

O perigo disso tudo, entretanto, é o estado de inconsistência se prolongar em demasia, favorecendo uma solução de unificação autoritária. A desconstrução não pode ser evitada e, como Derrida certa vez coloca, confunde-se com a própria democracia. No entanto, o estado de instabilidade absoluta, sem qualquer organização e rejeitando qualquer forma, é a própria morte.

A "antipolítica" confunde-se, de certo modo, com esse estado de morte. Ela precisa ganhar forma e organização, saindo do eixo da negatividade absoluta, ou pode ser engolida por forças de unificação totalitárias que "resolveriam" o caos instaurado de modo violento. Entender essa "economia" me parece, hoje, o exercício mais importante para reconstrução da "esquerda", se é que esse signo ainda é útil (ou então o que se queira colocar no lugar dela).

Que leitura o senhor faz dos ciclos dos governos de esquerda, desde a chegada ao poder até o atual momento, no Brasil e na América Latina?

Parece nítido que, como diz Salvador Schavelzon, o ciclo dos "progressismos" na América do Sul está em declínio. E, estranho ou não, mais ou menos pelas mesmas razões. Faço uma pequena retrospectiva dos passos do governo brasileiro e depois comparamos.

Ao contrário do que se diz, quando o PT assumiu o Governo Federal em 2002, apesar da votação expressiva, o espaço de manobra não era tão grande. O PT assumiu com o compromisso da "Carta ao Povo Brasileiro" admitindo "entrar no jogo" e seguir suas regras. O "Lulinha Paz e Amor" de 2002 já não era mais o Lula de sempre, mas um Lula que, mediante vários gestos políticos e simbólicos, assumia uma posição de conciliação com o establishment. As teses que usam a votação para jogar contra o PT possibilidades imensas são irrealistas em relação à margem de manobra que dispunha o partido naquele momento.

Havia uma certa clareza de que, para vencer as eleições e governar, era necessário abrir mão de certos parâmetros e fazer concessões. Essa negociação se estabeleceu por meio da combinação entre administração "ortodoxa" da economia, com o par Palocci/Meirelles, e políticas sociais que atingiram a parte baixa da pirâmide social.

Ao contrário do que se diz, quando o PT assumiu o Governo Federal em 2002, apesar da votação expressiva, o espaço de manobra não era tão grande. O PT assumiu com o compromisso da ‘Carta ao Povo Brasileiro’ admitindo "entrar no jogo" e seguir suas regras.

Como se dá esta tráide entre lulismo, peemedebismo e a governabilidade?

O ano de 2006 marca o momento descrito brilhantemente por André Singer e Marcos Nobre. Como resposta à crise política, o PT acaba surpreendendo e revelando uma força subterrânea que emerge inesperadamente, deslocando o eleitorado do chamado "subproletariado", até então mais conservador, para o PT. Os programas sociais passam a produzir efeito com o boom das commodities e o petismo se converte em "lulismo", liberando energias reprimidas e imprevistas na sociedade brasileira.

Ao mesmo tempo, o período será marcado pelo pacto estratégico com o "peemedebismo", mantendo o sistema político funcionando pela "governabilidade" e troca de favores que caracteriza a fisiologia brasileira. A partir desse período, a aposta nos "batalhadores" emergentes passa a ser o símbolo do petismo e a instaura-se a polêmica contra a classe média, que passa a ser o alvo negativo do discurso da esquerda por revelar seus preconceitos contra a classe ascendente (chamada por alguns, inclusive o próprio Lula, de "nova classe média"…).

Em seguida, em plena bonança lulista, a descoberta do Pré-Sal acende o imaginário ufanista do "país soberano", próxima ao dos anos 30-50, gradualmente deslocando as políticas sociais e de direitos humanos para a noção de crescimento econômico e "Brasil-Potência". Esse imaginário despertado por Lula – que envolvia o reforço da "autoestima do brasileiro" -, atendia os clamores do empresariado sobre os "gargalos do crescimento" (ou seja, a infraestrutura) e recebeu sua consagração final na eleição do Brasil para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Da descoberta do Pré-Sal em diante inicia-se uma metamorfose do lulismo para a tecnocracia dilmista de inspiração varguista?

Dilma torna-se a grande gerente do Governo e encurrala os "entraves ambientais" capitaneados por Marina Silva até que esta deixa o Governo, sendo mais tarde derrotada nas eleições (ainda que com votação surpreendente). Lula e Dilma passam à "segunda etapa" do lulismo, reivindicada pela esquerda petista (como o próprio André Singer), que seria sair da combinação entre ortodoxia econômica e políticas sociais agressivas e, em lugar disso, adotar uma saída neodesenvolvimentista, colocando o Estado como indutor do crescimento econômico.

É preciso romper de vez com o "neoliberalismo" e assumir o papel do Estado forte. O BNDES – como apontam as brilhantes reportagens de Consuelo Dieguez na Piauí – opera como fonte do crescimento, formando um complexo oligopolista com ambições internacionais na construção civil. O discurso do "Sul" internacional serve como mote para essa inserção na economia globalizada do complexo da construção civil.

Ao mesmo tempo – agora sabemos – acordos "por baixo dos panos" eram travados para garantir financiamento partidário e desvio de dinheiro público para as empreiteiras, parasitando a máquina do Estado enquanto turbinava índices econômicos. Ao lado disso, a política neoextrativista ganhava cada vez mais força no campo, desfazendo as proteções ambientais e partindo para a ofensiva contra os povos indígenas a fim de melhorar os números do crescimento.

E como surge este desprezo à política que vemos hoje?

Esse período, de 2010 a 2013, é caracterizado pelo desprezo à política. A aprovação massiva de Dilma combinada à sua conhecida arrogância não permite questionamentos. Tempos em que a poderosa Gleisy Hoffmann, mais uma face do PT ruralista, coloca rótulos de "minorias com projetos ideológicos irreais" naqueles que discordam dos rumos do Governo. A política é desnecessária, temos uma tecnocracia executando o PAC e garantindo que todos possam consumir. Surge, sem se confundir com o PSOL, outra oposição à esquerda.

As "minorias com projetos ideológicos irreais" são ambientalistas, anarquistas, defensores dos direitos humanos e os próprios índios e quilombolas atingidos pelo projeto "Brasil-Grande" de Dilma. A "Modernização" é a única opção – "there is no alternative". A aliança com o PMDB anda de vento em popa, a oposição está na defensiva e o discurso contra a classe média segue produzindo o efeito de obstaculizar o crescimento de qualquer oposição relevante.

O enfoque nos últimos dois anos tem sido mais micropolítico, sem conexão direta com a política tradicional. Certamente isso está ligado não só à urgência de várias lutas micropolíticas, mas também a um descrédito geral da esquerda como mediadora de demandas minoritárias.

Esse ciclo inicia seu declínio em 2013, quando o Governo não reconhece aliados, mas inimigos, nas ruas, distanciando-se em definitivo dos novos movimentos sociais, recebe uma sobrevida em 2014, com a restauração da polarização no segundo turno eleitoral, e fecha-se em definitivo no "estelionato", quando a esquerda percebe que Dilma iria executar o programa que atacou ao longo das eleições.

Estes ciclos de alta mobilização social seguidos de medidas tecnocráticas desenvolvimentistas e extrativistas parecem ser um padrão nos governos latino-americanos.

Sim, medidas tecnocráticas desenvolvimentistas e extrativistas com conflitos com indígenas em quase todos os países, polarização extremada e florescimento de grupos liberais entre as classes médias que terminam se elegendo diante da pressão política sobre os governos e definhamento dos programas da esquerda. Sobra, entre governistas, apenas a identidade da esquerda.

A diferença é que Argentina, Uruguai, Venezuela, Peru e Bolívia parecem ter tocado em algumas questões estruturais, como a política de drogas, o julgamento dos crimes da ditadura ou a autonomia indígena, enquanto no Brasil essas questões ficaram em banho-maria até o ponto (hoje) em que não há mais qualquer clima para serem debatidas. Não quero dizer com isso que tenhamos vivido a mais fraca dessas experiências, porque ela está situada em um contexto específico, mas que há diferenças em termos de institucionalização de legados claríssimas.

Em que medida o neodesenvolvimentismo é um ícone desse sistema representativo que não dá mais conta das necessidades de hoje?

O neodesenvolvimentismo comunga o imaginário do século XX, com um capitalismo industrial, Estado forte e indutor do crescimento, inclusão e proteção social garantida com sindicalismo forte, formação de uma "grande classe média" e imaginário político unificado em torno do nacionalismo. Tudo isso mudou drasticamente na era da globalização. O encurtamento do tempo e do espaço transnacionalizou os problemas, o mercado financeiro e as grandes corporações têm mais peso que os próprios Estados, a Internet tornou a informação exponencial e os grupos mais conectados independente das fronteiras e problemas ambientais como as mudanças climáticas cortam as mais diversas sociedades sem reconhecer diferenças, salvo que as mais vulneráveis economicamente, apesar de menos responsáveis pelos impactos, serão as que mais sentirão esses efeitos.

Não existe uma "burguesia industrial" separada do mercado financeiro, os sindicatos têm um poder de barganha muito reduzido e formas de organização ultrapassadas (inclusive são vistos com antipatia por segmentos estratégicos para o lulismo como os "batalhadores"), há questões que cortam e dividem a sociedade para além das classes e a economia opera de modo autônomo em relação à política. O neodesenvolvimentismo fracassou porque suas premissas são de outro momento histórico e tudo que conseguiu propor foi um "front de resistência" em relação ao status quo mundial. Mas um front de resistência não é um projeto de futuro.

Não há atualmente – e nesse ponto acho que eles têm um ponto interessante, embora não totalmente válido – uma verdadeira alternativa ao neoliberalismo. A planificação integral da economia pelo Estado, alternativa do "socialismo real", não faz frente ao desafio atual. Logo, talvez não seja por simples "falta de vontade" que os governantes de esquerda acabem sucumbindo ao neoliberalismo.

Talvez seja porque ainda não foi desenvolvida uma perspectiva contrastante à altura pela esquerda, especialmente em face da mundialização dos mercados. Além disso, a intervenção do Estado continua tendo os mesmos problemas de sempre: ineficiência, burocratização, centralização e corrupção. Não consegue se firmar como contraponto ao livre mercado, mas como seu complemento cíclico – ambos operando uma máquina de sucção de energia para promover o "crescimento econômico" seguindo a lógica extensiva do Ocidente.

Não concordo com a visão unificadora de Srnicek e Williams, nem com boa parte das suas críticas a "folk politics", mas em um ponto eles realmente estão certos: não há, a longo prazo e alcance, uma alternativa programática da esquerda em torno da saída do capitalismo. Não sabemos como reagir nacionalmente a uma pressão dos mercados internacionais que não seja de modo quixotesco.

Parece que há uma dificuldade e implantar uma continuidade nos projetos progressistas.

Podemos dizer que a esquerda sempre saiu na frente em qualquer disputa no Brasil, dado que os índices de pobreza e desigualdade social, herança do escravismo, são aberrantes. A vantagem era uma vantagem moral, já que se situar como conservador numa sociedade com esse perfil era realmente complicado.

O PT soube aproveitar essa vantagem e, com suas políticas sociais, deu um salto qualitativo que hoje se faz sentir claramente no Brasil. No entanto, o problema foi a "fase II". Depois de tirar milhões da miséria, qual o passo político e econômico seguinte? Então veio a resposta neodesenvolvimentista: a governabilidade, o pacto com as empreiteiras, o mito da burguesia industrial nacionalista, a derrama de recursos com o BNDES, a Copa.

Não por acaso há, na lacuna de boas alternativas, um crescimento do pensamento liberal no Brasil – e isso não apenas na classe média, como se diz. Há ainda intelectuais que consideram o posicionamento mais conservador ou liberal como uma ofensa em si mesma, sem necessidade de fundamentação contrária. Cada vez mais, diante do fracasso da "nova matriz econômica", fica nítido que existe um espaço vazio que os liberais ocupam e a esquerda não tem boas respostas. Construir essas respostas, disputando esse espaço para além do dogmatismo vermelho, me parece uma tarefa urgente.

O fato de em 13 de março Bolsonaro ter sido o único a conseguir discursar, e não as alas moderadas, é extremamente preocupante. É preciso cuidado aqui para que o eleitor de centro-direita não passe a se identificar com esse fascismo, nem que ele possa vir a congregar uma pulsação unificante de um setor anônimo, mas massivo, de descontentes contra tudo e todos.

Como o senhor analisa os movimentos sociais, e os coletivos, de hoje e suas formas de construir novas representatividades? O que trazem de novo e o que atualizam do velho modelo?

Os movimentos sociais exigem um capítulo à parte que não vou desenvolver com profundidade. Fazendo um recorte pequeno de muitas coisas diferentes, dá para dizer que houve uma explosão de movimentos desde 2013 e uma significativa alteração de perfil em relação a outros mais antigos, como o MST e o movimento sindical. Em 2013, a maioria dos movimentos tinha perfil jovem, hiperconectado, plural e horizontal, voltado para um corte transversal da política a partir da questão urbanística, usando os novos métodos como as ocupações e as redes sociais digitais. Desde então, tem crescido uma tendência para a política de identidades, que em parte já estava presente há bastante tempo – também em 2013 -, mas se conectava com uma demanda geral até as redes longas da política institucional.

Agora, o enfoque nos últimos dois anos tem sido mais micropolítico, sem conexão direta com a política tradicional. Certamente isso está ligado não só à urgência de várias lutas micropolíticas, mas também a um descrédito geral da esquerda como mediadora de demandas minoritárias. Movimentos como o MPL [Movimento Passe Livre], que assumiram uma posição importante em 2013, e as recentes ocupações de escolas paulistas têm um papel importante, mas não conseguiram promover uma capilarização geral. A hesitação em torno do governismo e a ameaça de que massificar as ruas possa incentivar a direita a também ocupar, como em 2013, são seguramente elementos que provocam a desorganização, desestabilização e o enfraquecimento desses movimentos.

Nesse sentido, aglomerações multitudinárias, em que o sujeito é "ninguém" e "todos", têm tido um perfil mais à direita, associado ao público crítico do petismo, à classe média tradicional e seu ressentimento em relação às transformações brasileiras da última década e aos embates cotidianos com movimentos de esquerda e minoritários. Os limites dessa direita também são óbvios, já que o perfil social não consegue extrapolar uma fatia da população. Movimentos de perfil liberal, como o MBL, estão crescendo, mas são pouco representativos.

Há também hordas ressentidas, como os fãs do Deputado Jair Bolsonaro, que reagem contra as transformações sociais de modo virulento, encampando o discurso do "politicamente incorreto" como válvula catalizadora da antipolítica de direita. O fato de em 13 de março Bolsonaro ter sido o único a conseguir discursar, e não as alas moderadas, é extremamente preocupante. É preciso cuidado aqui para que o eleitor de centro-direita não passe a se identificar com esse fascismo, nem que ele possa vir a congregar uma pulsação unificante de um setor anônimo, mas massivo, de descontentes contra tudo e todos.


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