28/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Um risco à dignidade humana

Publicado em 11/02/2016 12:00 -

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Tramita no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo representação que apura suposta violação ao princípio da colegialidade praticada pela juíza de segundo grau Kenarik Boujikian. O motivo: ela decidiu monocraticamente pela soltura de presos que estavam preventivamente encarcerados por mais tempo do que a pena cominada em suas sentenças.

Sob nenhum prisma é possível conceber esse processo, calcado nas razões que o motivam. Dentre os diversos aspectos que chamam a atenção no caso está o fato de a magistrada ser processada justamente por ter cumprido a lei.

Afinal, ela nada mais fez do que cessar injusta prisão, efetivando um dos mais basilares princípios constitucionais, o da dignidade da pessoa humana, preceito máximo de um Estado democrático de Direito.

Manter os indivíduos presos além do tempo previsto em sentença significa o desprezo absoluto por parte do Estado à liberdade do cidadão.

Se a administração pública é vexatoriamente omissa em lidar com as questões dos presos e de suas famílias, cabe ao Poder Judiciário intervir, como único capaz de restabelecer a ordem das coisas. Boujikian apenas reafirmou que a dignidade da pessoa humana é o princípio fundamental do Estado que vale para todos, presos ou não.

Outro aspecto de suma importância é que está em jogo uma das principais garantias conferidas aos magistrados para exercerem suas atribuições livres de pressões externas ou internas -a independência funcional. Por esse princípio, o juiz julga de acordo com sua consciência, não podendo ser tolhido no exercício da interpretação da lei.

Trata-se de uma garantia também da sociedade, pois esse é um requisito básico para assegurar que o juiz tenha mínimas condições de cumprir com suas atribuições. Afinal de contas, um juiz sem independência deixa de ser juiz.

Manter os indivíduos presos além do tempo previsto em sentença significa o desprezo absoluto por parte do Estado à liberdade do cidadão.

Portanto, o caso revela-se um verdadeiro absurdo, razão pela qual está em curso grande movimento de solidariedade à juíza, encabeçado por diversas entidades que atuam em defesa dos direitos humanos e por parte expressiva da comunidade jurídica.

Entende-se que qualquer julgamento desfavorável à juíza representará um sério comprometimento das garantias que sustentam o Estado de Direito.

Ademais, é conveniente lembrar que a juíza processada é conhecida por suas posições garantistas, atua em prol dos direitos humanos, é uma das fundadoras da Associação Juízes Para Democracia e subscreve diversos artigos denunciando a situação precária no sistema prisional brasileiro, em especial os casos das mulheres encarceradas.

As decisões da magistrada, escoradas em normas internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil e por princípios constitucionais, estão em perfeita sintonia com seu trabalho de efetivação desses direitos no país e com a luta de diversas organizações que trabalham arduamente por um Estado mais justo e igualitário.

Daí o estarrecimento desses atores que apontam o contrassenso do processo em curso.

Por fim, admitir qualquer punição à juíza que fez cessar injusta prisão é aceitar que um magistrado pode ser punido por fazer cumprir a lei.

Seria uma lamentável decisão, sobretudo num momento em que os esforços estatais buscam métodos alternativos ao encarceramento.

Nunca é demais lembrar que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, opera um sistema prisional com deficit de vagas e em condições precaríssimas.

Willian Fernandes – Advogado, mestre em gestão e políticas públicas pela Fundação Getulio Vargas/SP, é vice-presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo

Marcos Fuchs – Advogado, é diretor-executivo do Instituto Pro Bono e diretor-adjunto do Conectas Direitos Humanos

Padre Valdir João Silveira – Coordenador nacional da Pastoral Carcerária da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


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