24/04/2024 - Edição 540

Entrevista

A sociedade, como protagonista da saúde

Publicado em 10/02/2016 12:00 -

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Sob o tema central “Diferença sim, desigualdade não: Pluralidade na invenção da vida”, Campo Grande (MS) sedia, entre os dias 21 e 24 de março, o maior congresso sobre formação de recursos humanos e educação permanente para a saúde da América Latina, o 12º Congresso Internacional da Rede Unida. O evento acontece na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) – com o apoio do Ministério da Saúde, Fiocruz, UFMS, UFRGS e Rede Governo Colaborativa – reunindo cerca de cinco mil representantes de movimentos sociais, profissionais, pesquisadores, estudantes, professores e gestores das áreas da saúde e da educação em saúde, do Brasil e de outros 15 países. A psicóloga Vera Lúcia Kodjaoglanian, coordenadora do evento, conversou conosco.

 

Qual é a importância do 12º Congresso Internacional da Rede Unida para Mato Grosso do Sul?

Pela primeira vez, Mato Grosso do Sul vai sediar o maior evento de formação de recursos humanos e educação permanente em saúde da América Latina. É um evento promovido pela Rede Unida, que vai trazer para Campo Grande cerca de cinco mil representantes de movimentos sociais, profissionais, pesquisadores, estudantes, professores e gestores das áreas da saúde e da educação em saúde, do Brasil e do exterior. Muitas das nossas experiências locais estarão sendo debatidas neste Congresso.

Qual é o grande mote do Congresso?

O Congresso ocorre sob o tema central “Diferença sim, desigualdade não: Pluralidade na invenção da vida”, e sua principal característica é que, apesar de ser um evento que reunirá pesquisadores renomados de todo o mundo, ele se estenderá à sociedade, e esta é uma característica fundamental da Rede Unida.

Envolver a sociedade no debate sobre a saúde?

Exato. A Rede Unida é um movimento social que existe há 30 anos e que congrega as 15 profissões da saúde, universidades, instituições de ensino, gestores e secretarias de saúde e educação de estados e municípios, com a intenção de propor projetos inovadores para a formação de recursos humanos para o cuidado em saúde, para a gestão em saúde e do ponto de vista do financiamento. Mas, ao lado destes três pilares, há um quarto fundamental, que é a participação popular.

Pela primeira vez, Mato Grosso do Sul vai sediar o maior evento de formação de recursos humanos e educação permanente em saúde da América Latina. Teremos pesquisadores e profissionais renomados, do Brasil e do exterior, além da apresentação de mais de 3 mil trabalhos científicos.

O envolvimento dos movimentos sociais neste debate é fundamental?

Sim, e a Rede Unida é um dos únicos movimentos ligados à saúde no país que traz os movimentos sociais para este debate. E neste Congresso, além de trazermos estes segmentos importantes da sociedade para o debate, vamos tirar os congressistas de dentro da universidade para visitas aos territórios. Visitaremos 15 locais do Estado onde habitam populações que vivem em situação de vulnerabilidade. Vamos discutir com estas populações como são suas condições de vida, quais são suas demandas em saúde. Serão grupos de 30 a 40 congressistas em cada visita, muitos dos quais não tiveram ainda a oportunidade de estar próximos a estas realidades. Nossa intenção é qualificar nossos trabalhos de acordo com as demandas destas pessoas e não de acordo com o que acreditamos que eles precisam. Queremos dar mais visibilidade a estas populações e suas demandas.

Que comunidades serão visitadas?

Em Maracaju vamos visitar o quilombo São Miguel e o assentamento Santa Guilhermina. Em Corguinho, vamos ao quilombola Boa Sorte e aos assentamentos Torre da Pedra e Liberdade Camponesa. Em Jaraguari, vamos fazer uma vivência no quilombola Furnas do Dionísio e nos assentamentos Jatobá e Harmonia. Em Ponta Porã vamos ao assentamento da Fazenda Itamarati, um dos maiores da América Latina. Vamos também até a áreas indígenas em Aquidauana, para sentar junto a eles e conversar sobre suas demandas. Em Campo Grande temos atividades e rodas de conversa na Aldeia Urbana, na Usina de Triagem de Resíduos (UTR), onde atuam quatro cooperativas de catadores, no Centro Pop, que realiza um trabalho importante na área de saúde mental. Estaremos também na Casa da Mulher Brasileira discutindo a questão da violência contra a mulher e como elas recebem o atendimento ali. Vamos a algumas Unidades Básicas de Saúde da Família que realizam trabalhos diferenciados em Campo Grande, como a integração ensino/serviço. Algumas destas unidades tem no seu cotidiano a presença de estudantes de graduação e pós-graduação trabalhando junto com os profissionais. Estas são algumas das ações que ocorrerão durante o Congresso.

Algumas destas comunidades já tem relação com entidades ligadas ao Congresso?

Algumas delas tem projetos de extensão com a Fiocruz Mato Grosso do Sul, com a UFMS e outras Universidades da região, ou de alguma secretaria estadual ou municipal de saúde. Uma parceria importante que fizemos foi com as quatro cooperativas de catadores de resíduos de Campo Grande. Enquanto organização de economia solidária, eles farão as cinco mil bolsas do Congresso.

A ideia é unir o âmbito técnico-científico às demandas populares?

A ideia é melhorar os nossos projetos a partir das demandas destas populações. Este Congresso não se centra apenas na questão técnico-científica. Teremos pesquisadores e profissionais renomados, do Brasil e do exterior, além da apresentação de mais de 3 mil trabalhos científicos, nacionais e internacionais, de estudantes de graduação e pós-graduação, pesquisadores, profissionais da saúde e oriundos dos movimentos sociais ligado a saúde, mas focamos também nesta aproximação com a cidadania, com as populações que vivem em situações de vulnerabilidade. Estas populações estarão conosco, nas távolas do evento, debatendo, e em seus territórios. Os congressistas vão passar o dia nestes locais, conhecendo a dinâmica de vida destas populações, e depois uma roda de conversa para compreender suas necessidades diárias, quais são as lacunas e fragilidades que a saúde traz em suas vidas.

A Rede Unida é um dos únicos movimentos ligados à saúde no país que traz os movimentos sociais para o debate sobre a saúde. Vamos discutir com as populações em situação de risco como são suas condições de vida, quais são suas demandas em saúde.

Como o saber popular pode contribuir com a saúde em seu aspecto científico?

De muitas formas. Teremos, por exemplo, durante o Congresso, o Encontro Nacional das Parteiras, discutindo o ato de partejar, que é considerado importante no âmbito da saúde da mulher. Aliado a isso, teremos aqui a coordenação do programa Rede Cegonha no âmbito do ministério da saúde, de Estados e municípios. Esta troca de experiências e vivências é riquíssima.

Fazer um Congresso como este em um momento de crise deve ser um desafio e tanto.

Vivemos uma crise intensa, uma crise ética, política e econômica, mas não desistimos de fazer este Congresso. Começamos a construí-lo há 18 meses, durante os seis Encontros Regionais que a Rede Unida realizou pelo Brasil com o intuito de elencar os temas que a sociedade apontava como relevantes na questão da saúde e da formação em saúde. Cada um destes encontros mobilizou os mais diversos segmentos da sociedade para que a gente pudesse ouvir das pessoas, no local onde elas vivem, suas temáticas de maior relevância. Muitas das temáticas debatidas nestes encontros regionais integram agora a programação do Congresso Internacional. E vamos reunir aqui 5 mil pessoas de todo o mundo. Não desistimos, pois esta crise afeta diretamente ao Sistema único de Saúde (SUS), que nos é tão caro.

Envolver a sociedade no debate é uma forma de fortalecer o SUS?

Trabalhamos em prol de um SUS que foi construído a duras penas, uma luta desde a década de 70 para uma reforma sanitária intensa, pois a população não estava satisfeita com um sistema de saúde que era reducionista, hospilatocêntrico, que ofertava apenas atendimento a doentes e a quem pagava a previdência. Os cidadãos em sua totalidade não tinham direito a saúde, setor que avança enormemente na reforma constitucional de 88. Para manter um SUS tão plural como o que temos hoje, para aperfeiçoá-lo e corrigir suas distorções, temos que estar debatendo constantemente. Para que o SUS seja realmente um sistema que privilegia a vigilância em saúde, a atenção básica, temos que formar profissionais preparados para isso e financiar estes procedimentos. É esta discussão que queremos travar no Congresso, e queremos travá-la não apenas com um segmento da sociedade (profissionais, trabalhadores e pesquisadores da saúde), mas também com quem recebe a atenção em saúde, que é a sociedade.

A formação em saúde, hoje, não atende as necessidades do SUS e da população?

A Rede Unida coordena projetos importantes relacionados as mudanças das diretrizes curriculares nacionais para todos os cursos de graduação em saúde no país. Isso significa que temos uma crítica sobre o perfil do profissional de saúde que é formado, uma dúvida sobre se eles atendem ou não as mazelas e as demandas da sociedade. Muitas destas formações não atendem. Junto aos Ministérios da Educação e da Saúde, a Rede vem desenvolvendo propostas de novas diretrizes curriculares desde 2001, e agora refaz estas propostas vamos mais uma vez fazer o debate do tema com todas as categorias profissionais e outros segmentos interessados.

Para manter um SUS tão plural como o que temos hoje, para aperfeiçoá-lo e corrigir suas distorções, temos que estar debatendo constantemente.

A relação entre saúde e arte também será focada no Congresso, não é?

Sim, este aspecto nos interessa. Abrimos um edital e recebemos mais de 100 trabalhos para nossa Mostra da Saúde Fazendo Arte. Vamos ter um espaço dentro do Congresso, uma grande tenda onde 60 trabalhos serão apresentados, destacando espaços mais criativos e interventivos e outras possibilidades de intervenção que profissionais de saúde do mundo inteiro desenvolvem na perspectiva de promover ou prevenir saúde.

O 12º Congresso Internacional da Rede Unida é, também, um guarda-chuvas sobre o qual serão realizados outros importantes encontros nacionais relacionados à saúde, correto?

Sim. Também compõe a programação do evento o Encontro Nacional do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), o Encontro de Parteiras Tradicionais, o Encontro Nacional de Redes Escolas, o Encontro das Residências Multiprofissionais em Saúde, a 3ª Mostra VER-SUS (que fala sobre vivências e estágio no SUS), Encontro Nacional do programa Mais Médicos, Encontro Nacional do PMAQ (melhoria da atenção básica e qualidade em saúde) e o Respúblicas (onde diversos atores sociais debaterão políticas públicas sociais, políticas de demarcação territorial e integridade dos povos indígenas, violências contemporâneas, política de saúde mental, reformas democráticas do Estado e integração ensino-serviço). O Congresso também irá sediar uma reunião do Conselho Nacional de Saúde.

E os fóruns internacionais?

Há vários. Temos fóruns que debaterão a questão da educação na saúde, atenção básica em saúde com o advento do SUS, faremos um fórum internacional de participação popular, com a presença dos movimentos sociais que se reúnem para discutir suas questões sobre o tema sob o ponto de vista da cidadania, falaremos da cooperação internacional em políticas públicas, abordaremos a questão da saúde indígena – que conta com adesão de diversos segmentos importantes que trabalham com o tema. Outro fórum bastante importante é o de rotas críticas, que trabalha a questão da violência contra a mulher e a prostituição infantil, além do Fórum de Cooperação Internacional. Grupos de pesquisadores importantes nestas áreas, de todo o mundo, estarão aqui.

A Rede Unida coordena projetos importantes relacionados as mudanças das diretrizes curriculares nacionais para todos os cursos de graduação em saúde no país. Isso significa que temos uma crítica sobre o perfil do profissional de saúde que é formado.

Como o poder público recebe as propostas que são tiradas pela Rede Unida em um Congresso desta magnitude?

A receptividade do poder público para as propostas que são resultantes de um Congresso como este é diversa. Existem situações em que o Governo Federal, Estados e municípios fazem questão de mudar a sua agenda do cotidiano do trabalho, seu ideário de trabalho em função destas demandas. Mas, existem situações em que as secretarias de Estado e município fazem de conta que os problemas não existem. Temos gestores e gestores. O problema da gestão da saúde é um dos que nós enfrentamos. Se o gestor não está sensibilizado para estas questões, ele não se debruça sobre o problema e não o prioriza. O Congresso é importante para ampliar esta sensibilidade e para debater junto à sociedade sobre o seu papel na defesa do direito à saúde.

Só o fato de tornar este debate público já é importante, mas como a Rede Unida tenta aplicar as propostas resultantes deste imenso think tank da saúde na prática?

A Rede Unida concretiza isso no cotidiano, a partir do momento em que ela executa projetos interventivos no país todo. Estamos diretamente ligados a políticas públicas como o Programa Mais Médicos, com o qual a Rede atua realizando pesquisas sobre os seus resultados concretos. Aliás, o Mais Médicos terá seu encontro nacional sendo realizado dentro do Congresso. A Rede Unida também contribui diretamente com o SUS coordenando o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). É um grande programa de avaliação do trabalho das unidades de saúde de todo o país, coordenado pelo Ministério da Saúde. O PMAQ tem resultados importantes, que também serão discutidos no encontro nacional do programa, durante o Congresso. Outra articulação do cotidiano da mudança, que também é contribuição da Rede Unida, é o programa VER-SUS (Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde do Brasil), que possibilita que estudantes de graduação e todo o país, e de todas as áreas, possam ficar dentro do SUS por 10 a 20 dias tendo uma compreensão de como funciona o sistema. E durante o Congresso teremos, também, o encontro nacional do VER-SUS, assim como o encontro nacional dos Grupos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Os NASF são interessantes por incluir no debate outras categorias da área da saúde além da equipe mínima que está na atenção básica, que é só médico, enfermeiro e odontólogo.


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