24/04/2024 - Edição 540

Especial

O Marco Civil e a pressão das teles

Publicado em 20/03/2014 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A World Wide Web completou um quarto de século envolta em debates sobre a segurança da navegação. Seu inventor, o inglês Tim Berners-Lee propôs agora uma constituição global que garanta uma rede "aberta e neutra", tópicos centrais do projeto de lei nº 2126/2011, o chamado Marco Civil da Internet – do deputado Alessandro Molon (PT-RJ) – que o Congresso deve votar nos próximos dias e que terá repercussão direta na vida dos 100 milhões de brasileiros conectados a rede.

O Marco Civil é um conjunto de leis que definem direitos e deveres de usuários e empresas que usam a rede ou oferecem infraestrutura para que ela funcione. O projeto está na Câmara desde 2011 e voltou a ter destaque em 2013 depois das denúncias de espionagem protagonizadas pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA).

O texto, no entanto, tranca a pauta de votações da Câmara desde outubro do ano passado, em parte por causa de propostas consideradas polêmicas e que desagradam empresas de telecomunicação (Vivo/Telefônica, Claro/Embratel, TIM e Oi) – contrárias, por exemplo, às exigências de neutralidade da rede.

O pivô da crise, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ameaça impor uma derrota ao governo ao tentar derrubar o projeto e votar um texto alternativo. Cunha é líder do partido na Câmara e diz contar com apoio de outras siglas do chamado “blocão” como PR, PTB e PSC.

A força das teles

Para o advogado Luiz Fernando Marrey Moncau, vice-coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas – Direito, no Rio de Janeiro, o Marco Civil limita o poder das empresas de telecomunicações e, por isso, existe um imenso lobby contra o projeto.

Segundo Moncau, as empresas de telefonia querem cobrar nas duas pontas. Das empresas que prestam serviços, para lhes garantir a capacidade de oferecer seus serviços com qualidade aos usuários de internet. E do consumidor, para acessar diferentes tipos de serviço (ex: um plano somente para e-mail. Um plano somente para redes sociais. Um plano somente para vídeo). “Se isso for possível, a internet tal como a conhecemos acabou. Ficará muito mais parecida com a sua TV a Cabo (na qual você pode acessar vídeos mas não pode navegar livremente). Será muito ruim para a concorrência. Se eu inventar um novo serviço, só poderei vendê-lo aos consumidores finais se tiver um acordo comercial com as teles. No final das contas, o consumidor perderá opções e liberdade de escolha”, avisa.

Para o advogado Luiz Fernando Marrey Moncau, o Marco Civil limita o poder das teles e, por isso, existe um imenso lobby contra o projeto.

O advogado afirma ainda que o projeto não foi votado porque as empresas de telecomunicações não querem a neutralidade de rede e porque alguns partidos estão ameaçando derrotá-lo com o único objetivo de pleitear cargos, ministérios e recursos do orçamento da União para projetos que são do seu interesse.

A favor do Marco Civil estão o próprio Governo Federal e um sem-número de atores envolvidos com o ambiente virtual, como o Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil, a comunidade acadêmica, ONGs, sindicatos e entidades internacionais.

No outro lado da trincheira, Eduardo Cunha prefere cerrar fileiras com as empresas de telecomunicações, um setor que lhe abriu horizontes no começo dos anos 1990 – por indicação do então presidente da República, Fernando Collor de Mello, o hoje deputado dirigiu a Telerj.

Apoio de Peso

Críticos do Marco Civil argumentam que qualquer regulamentação sobre o tema seria ruim. Essa visão é rejeitada por gente graúda do setor, como Tim WuTim Berners-Lee, por organizações especializadas em tecnologia da informação e comunicação, como a Mozilla Foudation e a La Quadrature du Net – além do próprio CGI.

Uma das fontes de inspiração para o projeto de lei (ao lado a Constituição Federal) foi justamente uma lista de “Princípios para a governança e uso da Internet no Brasil“, também conhecida como “Decálogo do CGI.br“.

Em 2012, por duas oportunidades, o Comitê se posicionou em defesa do PL 2.126/2011 como uma proteção contra “movimentos nacionais e internacionais que violem os princípios e garantias de uso e desenvolvimento da Internet e de direitos civis constitucionais da sociedade brasileira” porque estabeleceria, de forma expressa “no arcabouço legal brasileiro, os princípios fundamentais de neutralidade de rede, de defesa da privacidade de todos que utilizam a Internet e de inimputabilidade da rede”.

A mais recente manifestação favorável foi a cartilha O CGI.Br e o Marco Civil da Internet, publicado em outubro de 2013, lançada em “defesa da privacidade de todos que utilizam a Internet; Neutralidade de rede; Inimputabilidade da rede”. Nesse documento, o PL 2.126/2011 é afirmado como crucial “não só para que o futuro da Internet seguisse baseado em seu uso livre e aberto, mas que permitissem também a inovação contínua, o desenvolvimento econômico e político e a emergência de uma sociedade culturalmente vibrante”.

Principais pontos

Um dos principais – e mais polêmicos – pontos do projeto diz respeito à neutralidade da rede, princípio que determina que todos os pacotes de dados devem ser tratados igualmente, sob a mesma velocidade.

O projeto propõe que as operadoras de conexão sejam obrigadas a cumpri-lo e não criem categorias preferenciais entre os usuários. As teles dizem que isso vai encarecer o serviço. Criadores da proposta defendem, por sua vez, que o princípio garante o acesso democrático à rede e que todos terão acesso a todos os serviços. Sem ela, afirmam seus defensores, pode-se cobrar mais por aplicações que usam mais banda, por exemplo.

Hoje, pagando pela conexão, o usuário tem a liberdade de acessar o que quiser e a operadora não pode interferir na sua navegação. A neutralidade de rede busca garantir que isso não mude, ou seja, que as empresas de telecomunicações não possam bloquear ou deteriorar a qualidade dos serviços.

Sem a neutralidade, o provedor de conexão à internet poderia tornar mais lentos (ou até bloquear) seu acesso a serviços. E os provedores têm vários incentivos para fazer isso, como privilegiar seus próprios serviços em detrimento do serviço de concorrentes ou degradar deliberadamente o serviço de outras empresas que não possuam, com o provedor, um acordo comercial.

Privacidade

Outro ponto importante diz respeito à privacidade de dados. Geralmente, nos diversos serviços gratuitos que podem ser utilizados na rede, o produto a ser comercializado é o próprio internauta na forma dos seus dados mais íntimos. Plataformas como Google e Facebook utilizam as informações pessoais de seus usuários como mercadoria, vendendo-as para empresas interessadas no seu padrão de consumo, ou fornecendo-as a governos que estejam monitorando a movimentação política de determinado país.

A lógica da privacidade como mercadoria compromete a própria liberdade de expressão. Sem regras de proteção da privacidade, o usuário da internet está vulnerável ao humor de um Estado autoritário ou aos interesses privados das empresas.

A lógica da privacidade como mercadoria compromete a própria liberdade de expressão.

O Marco Civil estabelece uma série de proteções a privacidade na internet. O artigo 7 define que fotos e textos que o usuário excluiu de uma rede social, por exemplo, terão que ser efetivamente excluídos com a aprovação da lei. A lei também não impedirá Google e Facebook de venderem informações, mas definirá que isso deve ser autorizado de forma livre, expressa e informada.

Bancadas contrárias a estas políticas de privacidade conseguiram a inclusão do artigo 16 ao projeto. Este artigo define o armazenamento obrigatório de tudo que se fizer em determinados sites para fins de investigação policial. Esta inclusão vai de encontro a todo espírito de proteção da privacidade ao estabelecer a vigilância em massa. Inverte o preceito constitucional da presunção de inocência, onde todos passam a ser considerados culpados até provem o contrário.

Liberdade de Expressão

Hoje, o que se publica na rede pode ser eliminado sem qualquer chance de defesa. A censura que aterrorizou o país durante a ditadura militar é uma prática corrente na internet, com a diferença que não é mais necessário um órgão especializado do Estado autoritário para se retirar textos, imagens, vídeos e qualquer tipo de conteúdo do ar. Basta um telefonema, ou um email de quem não queira ver o conteúdo divulgado.

A falta de leis que se refiram à internet criou uma insegurança jurídica para os sites que hospedam os conteúdos e, com o receio de serem responsabilizados pelo que foi publicado pelos seus clientes como se fossem eles mesmos os responsáveis, simplesmente retiram o conteúdo do ar. Isso faz, por exemplo, com que prefeitos que não gostam de críticas ameacem processar por difamação um provedor que hospeda um blog, ou que corporações da indústria cultural notifiquem o youtube para retirada de conteúdos que utilizem obras protegidas por direito autoral.

Como não há lei na internet, políticos e corporações se valem do risco econômico que os sites estão sujeitos.

Como não há lei na internet, políticos e corporações se valem do risco econômico que os sites estão sujeitos e, com simples notificações, criem uma indústria de censura automática na rede, sem respeitar qualquer processo legal, ou dar o direito de defesa a quem produziu e divulgou os conteúdos questionados.

A punição de difamadores ou de quem usa indevidamente a propriedade intelectual privada é justa. Mas a pergunta é: quem decide isso? Essa decisão não pode ser tomada unilateralmente nem pelo denunciante, nem pelo denunciado. Por isso, as democracias modernas inventaram um sistema para tentar resolver essa questão – o judiciário – colocando a responsabilidade da decisão nas mãos de um juiz.

O artigo 20 do Projeto de lei 2126/2011 retira a responsabilidade dos sites sobre os conteúdos gerados por terceiros, acabando com a insegurança jurídica e com a desculpa utilizada para a censura automática.

Racha e Recuo

Para tentar viabilizar a votação do projeto, o Planalto aceitou fazer um ajuste no principal ponto do projeto para atender ao PMDB. Ficou acertada uma mudança de redação na neutralidade da rede.

A alteração será para engessar a regulamentação desse ponto, que fará referência à Constituição, tirando do projeto do marco a expressão decreto presidencial. Na prática, a medida será feita pelo governo, mas terá que seguir fielmente o que determina a lei, sem conseguir inovar na regulamentação.

O governo também acenou com outro recuo e decidiu retirar a exigência de nacionalização dos centros de dados dos usuários. Essa era uma das medidas defendidas pela presidente Dilma Rousseff como forma de responder às notícias de espionagem dos EUA contra autoridades brasileiras.

Para tentar viabilizar a votação, o Planalto aceitou fazer um ajuste no principal ponto do projeto para atender ao PMDB: a neutralidade da rede.

A medida foi interpretada como um gesto político para tentar reverter a resistência do PMDB. "Uma coisa é um decreto autônomo que possa regulamentar qualquer coisa e outra coisa é seguir fielmente o que determina a lei. A nossa preocupação maior é o decreto fazer coisas que não estão previstas na lei", disse Cunha.

Mesmo com o aceno do Planalto, a bancada do PMDB na Câmara Federal ainda está rachada sobre a votação do projeto e vai discutir a posição que será tomada com os outros partidos do "blocão". Uma ala defendeu a derrubada total do projeto e outra fala em discutir as divergências pontualmente no plenário. Segundo Eduardo Cunha, a bancada vai consultar outros integrantes do "blocão", para fechar posição.

Desconfigurando

A ex-senadora Marina Silva disse nesta semana que a força dos lobbies pode descaracterizar o Marco Civil. “Empresas querem cobrar pacotes diferenciados e separar o acesso segundo o preço, como se a internet fosse um canal de televisão pay-per-view. E o governo aproveita para inserir seu desejo de controlar a rede com a desculpa de combater a espionagem”.

A ex-ministra do Meio Ambiente (Governo Lula) disse ainda que o Marco Civil foi sequestrado pelo "blocão" e que isso ameaça o uso democrático da internet: “Depende, como vários outras questões estratégicas, de uma governabilidade torta, feita com distribuição de cargos e verbas, emendas e ministérios”.

Marina alertou contra o que classifica como tentativas de controlar a internet por meio de um aparato estatal rígido – a censura política – ou dos privilégios de mercado para quem comercializa o acesso – a censura econômica. “Ambos reduzem as possibilidades de ampliação da democracia e aprofundam a crise que balança a civilização”.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *