24/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Empoderada

Publicado em 21/01/2016 12:00 - Rodrigo Amém

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A primeira coisa que a dona da casa notou foi a meia colorida do barbudo de coque e roupa preta. Ela achou melhor não comentar. Estendeu a xícara para ele. O barbudo de coque perguntou se ela não tinha Dulce Gusto.

 – Olha, querida. Vai ser genial. Foda mesmo. Vai bombar muito. – interrompeu a moça de óculos de armação grande.

–  Eu não sei se entendi… – respondeu a dona da casa.  

– É tranquilo, dona. – disse o barbudo de coque. – Nosso cliente, a Bo…

– Não estamos autorizados a divulgar a marca ainda, chérie. Contrato de confidencialidade, você sabe. Mas é uma marca foda. Super top of mind da sua faixa etária.  – cortou a moça de óculos de armação grande.

– É uma campanha sobre empoderamento da mulher, tá ligado? – continuou o barbudo de coque, inabalável.

– Empo o que? – a dona da casa se sentia confusa diante das visitas inesperadas.

– O mercado tá muito nesse momento feminismo, tá ligado? Anita, Valeska, essas paradas. Da mulher forte, badass. A gente vai nesse storytelling. Da mulher que vai lá e detona, tá ligado? – Empolgou-se o barbudo.

– A gente quer contar a sua história. Porque você é o nosso público alvo. A mulher guerreira. Você se separou tem pouco tempo, não é? – disse a moça de óculos de armação grande.

A dona da casa sorriu constrangida com a invasão de privacidade. Pensou em perguntar como eles sabiam disso. Mas teve medo de se perder em justificativas igualmente sem sentido. Achou mais fácil responder.

– Tem uns meses – disse, olhando para baixo.

– E já assinaram a papelada? – perguntou o barbudo de coque.

– Ainda não. Tá marcado, já. – respondeu a dona da casa.

– É isso, porra! É isso que a gente quer! A gente faz uma transformação, cabelo, figurino, maquiagem. Tudo produto da linha A/B do cliente. Aí você chega na audiência poderosa! E você deixa seu ex ba-ban-do. – explicou o barbudo com entusiasmo, gestos grandes e três batidinhas das costas da mão no queixo durante a pronúncia pausada da palavra "babando". – Aí você sai de cena nos braços da glória. Empoderada, linda, vingada! Girl Power!- o barbudo de coque se exaltava na sua representação de mulher liberada.

– Vocês acham que meu casamento… acabou porque eu não uso hidratante? – perguntou, atordoada.

O barbudo de coque e a a moça de óculos de armação grande trocaram um sorriso amarelo entre si antes de partirem para o ataque.

– De maneira nenhuma. Essa é uma campanha sobre a beleza da mulher. A beleza presente na atitude, na autoconfiança e no olhar positivo sobre a vida, mano. – disse o barbudo de coque.

– Nosso cliente acredita que a beleza é um estímulo para recomeçar, transformar e abrir novos caminhos, até mesmo nas decisões mais difíceis da vida. – acrescentou a moça de óculos de armação grande.

– Mas por que vocês acham que autoestima, novos caminhos e isso tudo que você falou aí tem a ver com vingança? Do que vocês acham que eu tenho que me vingar?

A moça de óculos de armação grande sentou na ponta do sofá e colocou a mão no ombro da dona da casa.

Chérie, a gente sabe como homem é. Não valoriza o que tem em casa. Basta a gente dar uma relaxadinha que eles começam a achar que a grama do vizinho é mais verde. – disse com um inadequado tom de intimidade.

A dona da casa olhou para seus visitantes por um segundo.

– Vocês são casados?

A moça de óculos de armação grande deu um sorriso nervoso e soltou um "ainda não". O barbudo de coque deu uma procurada afetada no seu entorno antes de bater na mesinha de centro três vezes.

A dona da casa pensou no dia em que foi pedida em casamento. Lembrou da festa debaixo do maior pé d'água. Lembrou das malas perdidas na lua de mel. Das noites de pizza e filme. Das tentativas de engravidar. Do alarme falso. Das noites em claro em que cuidaram dos resfriados um do outro. Lembrou dos planos, dos sonhos. Da formatura dele, da promoção dela. Do trabalho, das viagens de negócio, da distância. Então ela se lembrou do dia em que ela pediu o divórcio. Ela lembrou dos olhos dele. Da segunda e última vez que o viu chorar.

– E então? Você vai ser nossa estrela, nossa Ex Linda? – perguntou o barbudo de coque, batendo palminhas.

Ao se despedir dos seus visitantes na porta, a dona da casa agradeceu mais uma vez o convite e lamentou não poder participar. Mas foi por educação. Não lhe agradava pensar em si mesma daquela forma. Além do mais, ex linda é quem agora é feia. Não era o caso, beijo e tchau. No ímpeto de ser prestativa, pensou em sugerir que eles fizessem o mesmo convite ao seu ex-marido, mas ela logo desistiu. Ele já estava com a autoestima bem abalada. Ia pegar mal a insinuação de que ele perdeu o amor de sua vida porque embarangou.

Leia outros artigos da coluna: Meia Pala Bas

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *