19/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Sobre Jornalismo

Publicado em 17/12/2015 12:00 -

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Sim, este texto é sobre objetividade noticiosa, discurso de intolerância e tristes ocorrências recentes no jornalismo sul-mato-grossense. Mas em tempos de imediatismo das mídias, por que não procrastinar?

Data de meus tempos da graduação em Jornalismo, nos bancos universitários da Universidade Estadual Paulista, em Bauru (SP), o primeiro contato com o livro “Mitologias”, do semiologista francês Roland Barthes. Naquela ocasião, sem entender direito o motivo do pedido de leitura feito pela professora, tratei de me debruçar sobre um ensaio provocativo e de nome esquisito: “Detergentes e Saponáceos”. Talvez pelo título exótico, o texto nunca mais saiu de minha memória; e Barthes, como poucos outros autores, passou a me acompanhar pelas vicissitudes da carreira acadêmica.

A vida deu voltas e muitas das lições teóricas passadas pela professora aos poucos se desmancharam no ar (ironia do destino para quem hoje vive de lecionar teoria aos alunos). Os aprendizados daquele texto mal fotocopiado, entretanto, permaneceram a zumbir em meus ouvidos feito pernilongos em uma noite acalorada. Aprendi, primeiro, que todo mito é uma (muitas vezes repetida) fala. E depois, que nem mesmo os saponáceos, a despeito da publicidade, são neutros.

Preâmbulo à parte, não poderia deixar de recorrer a um longo “nariz de cera” para abordar sua antítese estético-expressiva: a objetividade jornalística. Afinal, de onde vem o discurso de autolegitimação que caracteriza o jornalismo como uma prática técnica e imparcial?

As respostas são muitas e de diferentes naturezas. Mencionem a incorporação pela imprensa pós-Revolução Industrial da tecnologia do telégrafo (e sua consequente necessidade de passar do modo mais objetivo possível as informações mais importantes logo no início da transmissão); citem as características da composição das páginas no processo da linotipia (e sua consequente necessidade de assegurar no topo das matérias as informações mais pertinentes); apontem a lógica mercadológica das nascentes agências de notícia no final do século XIX (e sua consequente necessidade de padronizar um produto – a notícia – que pudesse ser comercializado com jornais das mais diferentes matizes).

O jornalismo deve dar vazão à pluralidade, à qualidade da informação (sem o mito de que a informação de qualidade é aquela, como os saponáceos, dotada de neutralidade) e, sobretudo, aos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Todas as respostas não deixam de estar corretas, mas por trás delas algo salta ao olhar da história ocidental: a emergência da objetividade como ideologia jornalística. As ciências humanas nos ensinam que nenhuma narrativa social se dissemina pelos grotões de nossa vida cotidiana se não encontrar respaldo em padrões hegemônicos mais amplos pavimentados na cultura; e a narração dos fatos na forma de notícias é uma dessas pedras angulares da sociedade dita moderna.

Daí a achar que os jornalistas selecionam fatos isentos e os depositam nas páginas dos jornais como uma criança confecciona um colar com pedrinhas encontradas no jardim soa ingenuidade. Quebrar (sob o risco dos sete anos de azar) o mito do espelho (e o chavão de que o jornalista 'espelha a realidade’) foi um dos avanços da atividade noticiosa contemporânea; aliás, nos ensina outro linguista francês, Patrick Charraudeau, que se o jornalismo é um espelho, trata-se de um espelho deformante, como aqueles que costumávamos encontrar nos circos e parques de diversões.

Refratar a realidade ao invés de refleti-la, no entanto, não é sinônimo de irresponsabilidade jornalística. Pelo contrário! O jornalismo deve dar vazão à pluralidade, à qualidade da informação (sem o mito de que a informação de qualidade é aquela, como os saponáceos, dotada de neutralidade) e, sobretudo, aos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Todo discurso de ódio, de difamação e de ameaça deve ser combatido e expelido sob pena de ressuscitar preceitos que marcaram na carne a atividade jornalística plural nos anos de chumbo de nossa história recente. Mas não nos enganemos. Toda narrativa social, para todos os lados, somente se dissemina se encontrar algum respaldo; e, infelizmente, toda narrativa intimidatória por trás do anonimato dos avatares digitais constitui um dos sintomas de nosso tempo.

Atinge-se os signos da modernidade (iphones, googleglasses, hilluxes, corner-shots e tarjas pretas), mas não seus valores de cidadania e democracia. Como nas palavras sociólogo José de Souza Martins, tratam-se de tempos de uma “modernidade inconclusa”, lógica anômala gravemente manifestada no cotidiano sul-mato-grossense. Que as instituições democráticas (dentre elas a própria imprensa) permaneçam atentas.

Sim, este texto é uma manifestação de apoio e solidariedade à jornalista e minha ex-orientanda Izabela Sanchez.

Marcos Paulo da Silva – Coordenador do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul


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