16/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Expectativas Açucaradas

Publicado em 16/10/2015 12:00 - Rodrigo Amém

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Era uma quinta-feira quente de outubro. Para ser mais sincero, era ontem. A caminho de casa, passei por um supermercado e me lembrei das ausências incômodas da despensa. Entre gastar alguns minutos na fila por uma caixa de sabão em pó ou fazer alguma combinação criativa de roupas ainda limpas, escolhi ser diligente: mergulhei nas galerias. Mas foi um mergulho curto, de fim abrupto.

Três passos dentro do mercado, meu corpo congelou, atônito. Na prateleira diante de mim, empilhadas em pequenas torres, caixas de panetone com motivos natalinos se ofereciam, desejando "boas festas" em letras douradas e vermelhas. Em outubro. Recuei.

Meu cérebro tentava processar aquela distorção da realidade. Não estávamos ainda sequer sob o horário de verão. Ainda não tinha visto a primeira cabeça de abóbora, nem o primeiro cartaz de "Halloween é o cacete. Vive a cultura nacional". Sequer tínhamos celebrado o dia de Finados e os quitutes natalinos já se acumulavam sem pudor. As embalagens explodiam em representações de trenós, velhos barbudos, bolas vermelhas e neve. Flocos de neve no inverno de 43 graus do Largo do Machado.

Comemos o panetone planejando os ovos de páscoa e vice-versa. Por que tanta pressa? Só pode ser um sinal.

Para que aqueles panetones estivessem disponíveis no meio de outubro, sua produção deve ter começado muito, muito antes. Talvez na segunda-feira após a Páscoa os designers já pensavam as artes das novas embalagens. A incerteza que nos oprime parece ter condenado o comércio a um círculo perpétuo de expectativas açucaradas. Comemos o panetone planejando os ovos de páscoa e vice-versa. Por que tanta pressa? Só pode ser um sinal.  

Um sinal de que a crise econômica, política e moral está deixando as pessoas – e o comércio – acuadas. O inconsciente coletivo deseja o fim do ano. Desejamos que a esperança, a renovação, o alívio do final do ano recaia sobre nós. Se não podemos adiantar o calendário, adiantamos os preparativos. E comeremos panetone em outubro. E penduraremos as luzes piscantes em novembro. E contaremos as horas até que dezembro traga aquele que veio para nos salvar do sufoco, do desespero e da incerteza: o décimo terceiro salário.

Então meus ouvidos entraram em alerta: Simone poderia estar à espreita no sistema de som do estabelecimento. Corri para casa e esqueci o sabão em pó.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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