29/03/2024 - Edição 540

Especial

O fracasso da representatividade

Publicado em 14/10/2015 12:00 -

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O Brasil é a quarta democracia do mundo em número de eleitores. No entanto, só 20% dos deputados federais são negros — entre a população, eles são mais de 50%. No caso das mulheres, a situação é ainda pior: elas são 51% dos brasileiros, mas apenas 9,9% do parlamento. Os empresários, sozinhos, ocupam mais de 40% das cadeiras. Não por acaso, os depu­tados eleitos no ano passado foram imediatamente colocados contra a parede para realizar mudanças no sistema eleitoral.

Eduardo Cunha (PMDB-RJ), promovido a presidente da Câmara em fevereiro, logo tratou de encaminhar votações para propostas de reforma política que alterariam o formato das eleições. E, de fato, os principais projetos que Cunha tentou aprovar estavam muito mais para contrarreforma política: o distritão, derrubado pelos deputados, favoreceria os candidatos mais ricos e faria pouca diferença na prática. A institucionalização de doações de empresas aos partidos, que contribui para que a “casa do povo” continue como um puxadinho para construtoras, bancos e outras megacorporações, acabou sendo vetada pela presidente Dilma Roussef.

“A reforma política é acompanhada de um clamor, como se fosse uma solução mágica. A verdade é que posso construir paredes na minha casa ou destruí-las e ainda assim será uma reforma”, diz Cláudio Gonçalves Couto, professor do departamento de gestão pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Cunha discorda. “Não acho que há muitos políticos representando empresários, ao contrário, acho até que tem muito mais gente representando os trabalhadores”, disse o presidente da Câmara. Nas eleições do ano passado, ele recebeu R$ 6.832.480 de doações de empresas como os bancos Safra e Pactual, Bradesco Vida e Previdência e até a Coca-Cola. Logo tratou de recuperar os investimentos milionários, com medidas como a regulamentação da terceirização, que interessa a todas as grandes empresas.

Democracia

Em seus primórdios, na Grécia antiga, a democracia funcionava como uma grande reunião de condomínio: da mesma forma como todos os moradores podem ir ao salão de festas do prédio opinar sobre a reforma do elevador ou o som alto do vizinho, todos os cidadãos gregos podiam ir à assembleia popular debater os rumos da pólis. Esse sistema só era viável porque, como apenas cerca de 10% dos moradores da cidade se encaixavam na condição de “cidadãos”, ficava fácil reunir todo mundo em um mesmo espaço físico.

Cerca de dois mil anos depois a humanidade concluiu que valia a pena incluir trabalhadores e mulheres no processo democrático. Só que aí já não dava mais para reunir todo mundo em um lugar só. A alternativa encontrada foi a democracia representativa, em que cada cidadão tinha o direito de votar em um representante que supostamente seria seu elo de ligação com o governo. O voto seria, portanto, a forma de garantir que todo mundo tivesse seus interesses representados. Mas, como agora já deve estar claro, essa garantia isolada na verdade não garante coisa nenhuma.

“O voto é um meio muito pouco expressivo de participação política. Ele tem limitações que são claras”, diz Luis Felipe Miguel, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).

Hoje, os eleitores têm menos liberdade do que parecem ter na hora de decidir quais números vão digitar na urna eletrônica. O voto de cabresto continua existindo — só ficou mais discreto. Ninguém vai até a cabine eleitoral para garantir que você votou em determinado candidato, o que não significa que você não tenha sido influenciado de muitas outras formas. “A democracia eleitoral se baseia na presunção de que cada um tem um entendimento esclarecido de suas próprias preferências. Mas essa presunção, que até faz sentido na teoria, é pouco defensável na prática”, explica o professor da UnB.

Basicamente, os ricos e poderosos têm mais condições de influenciar outras pessoas e fazer que seus pontos de vista prevaleçam. “A classe política profissional é, da perspectiva social, uma elite que tem recursos, e por isso ela é majoritariamente formada por brancos, homens, empresários. Todos os grupos privilegiados são super-representados pelo Congresso”, diz Cláudio Gonçalves Couto.

Investimento bom

Em abril de 2014, o Congresso votou a Medida Provisória 627, criada para regulamentar os impostos sobre os lucros obtidos por multinacionais brasileiras no exterior. A medida provisória funciona mais ou menos como um projeto de lei criado pelo executivo federal, e só vira lei de fato se for aprovada pelo Congresso. Deputados e senadores podem alterar o projeto antes de aprová-lo. Essas alterações são as famosas “emendas”, e a MP 627 recebeu nada menos que 513 delas. Uma dessas emendas operou praticamente um milagre: transformou um inocente projeto sobre impostos em perdão de uma dívida de R$ 2 bilhões dos planos de saúde (porque, sempre que tomassem 50 multas pelo mesmo motivo, as empresas precisariam pagar apenas duas). O relator da MP era justamente Eduardo Cunha, que na época ainda não era presidente da Câmara. E um dos principais patrocinadores da campanha milionária de Cunha nas últimas eleições foi justamente o Bradesco Saúde, um dos maiores planos do Brasil.

A campanha de todos os partidos nas eleições de 2014 custou mais de R$ 5 bilhões. Construtoras como Andrade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão e Odebrecht, empresas de bebidas como Ambev e Cervejaria Petrópolis e bancos como BTG Pactual e Bradesco despejaram mais de R$ 3 bilhões nas contas dos partidos. A JBS, dona da Friboi, lidera as doações, com mais de R$ 365 milhões investidos. O resto do dinheiro veio de contribuições de pessoas físicas e do Fundo Partidário, recurso público repassado mensalmente aos 32 partidos políticos registrados no país. Só no ano passado, R$ 365 milhões foram distribuídos às legendas, que recebem sua parte de maneira proporcional ao tamanho da bancada na Câmara dos Deputados.

“Algumas empresas fizeram estudos prévios para investir seu dinheiro em candidatos competitivos. Candidatos homens têm maior prevalência que mulheres, e os empresários também recebem mais recursos”, afirma Wagner Mancuso, professor de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP).

Como em uma corrida de cavalos, a aposta era feita em quem tinha mais chance de vencer e, assim, garantir o retorno do investimento. Às vezes, não necessariamente por métodos legais: as empreiteiras OAS e Andrade Gutierrez são investigadas na Operação Lava-Jato justamente por conta das doações que fizeram aos maiores partidos brasileiros. Com propriedade de causa, Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras envolvido no esquema de corrupção, deu sua opinião sobre o financiamento privado em vídeo gravado pela Procuradoria Geral da República: “Nenhuma empresa vai doar 2, 3, 4, 5 milhões de reais porque gosta de fulano de tal. Todas as doa­ções, sejam oficiais ou não, são empréstimos. A empresa está emprestando para o cara e depois vai cobrar dele”.

Em campanhas cada vez mais profissionalizadas, que investem pesado em recursos audiovisuais e obrigam o candidato a se deslocar para diferentes localidades, o dinheiro torna-se um diferencial na hora da eleição. Uma pesquisa realizada pelo Estadão Dados estimou que candidatos a deputado federal com verba de campanha superior a R$ 5 milhões têm nada me­nos que 100% de chance de se eleger. Já quem investe menos de R$ 500 mil tem apenas 3% de possibilidade de chegar à Câmara.

Mui amigos

Os 32 políticos filiados ao Partido Progressista (PP) que são investigados na Operação Lava-Jato não assustam Paulo Maluf, líder histórico da legenda. O deputado federal, que é ex-prefeito paulistano, ex-governador paulista e ex-candidato à presidência da República e atualmente figura na lista de procurados da Interpol por “apropriação indébita de fundos”, disse em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo que se orgulhava de pertencer há 48 anos ao “melhor partido do mundo”. Sucessor da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido oficial da ditadura militar, o PP ainda abriga políticos ligados ao regime, caso do deputado federal fluminense Simão Sessim e do próprio Maluf, além de congressistas como o militar da reserva Jair Bolsonaro.

É de imaginar, portanto, que uma reunião entre membros do partido com lideranças do Partido dos Trabalhadores não seria lá muito amigável. Mas que nada: em 2012, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad, na época pré-candidato à prefeitura de São Paulo, visitaram a mansão de Maluf e selaram o acordo entre os dois partidos com um caloroso aperto de mãos. Em 2014, a dobradinha se repetiu e o PP apoiou a candidatura de Dilma Rousseff, que na juventude pegou em armas e foi torturada para combater a ditadura sustentada pela Arena.

Um caso de esquecimento seletivo, esquizofrenia coletiva ou um bom jeitinho para se adaptar ao nosso sistema eleitoral? As três respostas estão corretas, mas a maneira como as coligações se formam para disputar eleições ajuda a explicar por que partidos sacrificam seus programas de governo — aqueles que usaram para ganhar o seu voto — e se aliam a outras legendas com programas completamente diferentes. É que, se eles não fizerem isso, fica impossível conseguir o mínimo de apoio necessário para aprovar qualquer projeto. Quem se dá bem com essa bagunça são os partidos pequenos, que podem negociar seu apoio tanto com a situação quanto com a oposição. Aliás, a pulverização partidária na Câmara — 28 legendas elegeram pelo menos um deputado — não é tão difícil de ser explicada quando observamos as mordomias reservadas aos parlamentares: cada deputado federal recebe um salário de R$ 33.763 (maior que o da presidente), auxílio moradia de R$ 4.272,99 e uma verba de R$ 92.005 para contratar até 25 funcionários de sua confiança.

Para complicar um pouco mais, o sistema brasileiro privilegia o voto proporcional. Isso significa que seu voto conta ao mesmo tempo para o candidato e para a legenda. Se você votar no candidato fulano e ele não for eleito, seu voto não é jogado fora: ele pode ajudar a eleger outros candidatos do mesmo partido ou da mesma coligação (quando vários partidos se juntam para disputar a eleição). Mas o sistema proporcional também tem falhas. Uma delas é a possibilidade de que os partidos pequenos invistam nos chamados “puxadores de votos”. São figuras como Tiririca (PR-SP), que recebem uma votação monstruosa e acabam elegendo outros candidatos da mesma coligação. Em 2010, quando concorreu pela primeira vez, o humorista recebeu mais de 1 milhão de votos. Teoricamente, seus eleitores estavam protestando contra “tudo o que está aí”. Mas o partido de Tiririca estava coligado com o PT, e os votos dados ao humorista na verdade ajudaram a eleger o petista José Genoíno, posteriormente condenado no processo do Mensalão.

Por mais bem-intencionado que um chefe de Estado seja, ele tem que dialogar com os partidos no Congresso. “Você não muda uma estrutura de poder com pessoas isoladamente: os partidos são imperfeitos, como é a sociedade, mas é necessário valorizar o componente programático do nosso voto”, diz o deputado Henrique Fontana.

Recall

Em fevereiro deste ano alguns deputados pediram o desarquivamento de um projeto de lei (PL) apresentado por 127 parlamentares em setembro de 2013. Tratava-se de uma proposta de reforma política que, entre outras coisas, previa o fim do financiamento privado de campanha e uma espécie de recall para legisladores — os deputados poderiam ser afastados se os eleitores concluíssem que eles não estavam agindo de acordo com o que prometeram. O pedido de desarquivamento foi negado, e a explicação foi constrangedora: não havia como desarquivar um projeto que nunca tinha sido arquivado.

O projeto, organizado por entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi levado ao plenário em 2013 pela então deputada Luiza Erundina. Desde então, ele está mofando em algum canto da Câmara — aparentemente com a condescendência do presidente Eduardo Cunha.

“É curioso que as pessoas tenham aprendido rapidamente a reclamar quando um eletrodoméstico estraga ou a entrega do jornal atrasa, só que o sistema político não desperta o mesmo interesse”, diz Jairo Nicolau, pesquisador da UFRJ. Mas a verdade é que os eleitores que querem mudar de opinião a respeito do voto dado a um político que não cumpriu suas promessas estão de mãos atadas.

A democracia representativa não prevê qualquer contato direto entre eleitores e eleitos. “Existe um elemento elitista na defesa da manutenção da distância entre representantes e representados”, diz Luis Felipe Miguel, da UnB. “Precisamos ter mecanismos de interlocução capazes de permitir que os representantes respondam aos interesses que vão se formando na base inclusive ao longo dos mandatos.”

Curiosamente, o PL 6.316 é fruto de um dos raros “mecanismos de interlocução” que existem hoje entre a sociedade e o Congresso. Trata-se dos chamados “projetos de lei de iniciativa popular”. Se conseguir a assinatura de 1% dos eleitores brasileiros, algo como 1,5 milhão de pessoas, você pode “obrigar” a Câmara a debater qualquer proposta. Parece bom. Mas aí sempre pode acontecer o mesmo que aconteceu com o PL 6.316: nada.

“Vamos exigir que o PL 6.316 seja apreciado, apesar de o presidente [Cunha] o desvalorizar a ponto de ter dito, em reunião de líderes, que ‘assinatura de apoio qualquer um pega na esquina’”, afirma o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). Um dos idealizadores do projeto, o jurista Ives Gandra Martins, da OAB, acha que ele só tem chances reais de ser apreciado se houver pressão popular: “Só com manifestações de rua teremos uma reforma política adequada. Os políticos não aprovariam por conta própria mudanças em leis que os beneficiam”.

Eles e nós

A democracia, por definição, pressupõe a igualdade política de todos os cidadãos. Mas o sistema representativo divide automaticamente a população em um pequeno grupo de tomadores de decisões e um grande conjunto de governados cuja influência sobre essas decisões é quase nula. “A igualdade de voto não consegue se traduzir em igualdade de representação, e muito menos de influência política”, diz Luis Felipe Miguel.

Hoje, cientistas políticos e ativistas do mundo todo buscam formas de tornar a democracia representativa um pouco mais participativa. “Precisamos criar instituições mais abertas às demandas das ruas. O parlamento está longe de esgotar toda a representação da sociedade, e os partidos também”, diz Chico Alencar.

Na Espanha, o partido Podemos, criado no início do ano passado por professores universitários, reuniu mais de 100 mil filiados em 20 dias e conseguiu eleger cinco representantes para o Parlamento Europeu poucos meses depois da sua fundação. A estrutura do Podemos reproduz o sistema grego da antiguidade: todos os filiados se reúnem em assembleias pelo país e ajudam a decidir tanto os candidatos quanto as posições do partido em relação a determinados assuntos. Além das assembleias, voluntários — filiados ou não — também se reúnem em “círculos”, grupos de discussão que debatem questões que podem ser territoriais (relativas a um bairro ou cidade) ou setoriais (condições de trabalho de uma categoria específica, por exemplo) e repassam suas conclusões à cúpula do partido.

Já o Partido de la Red, da Argentina, tem uma pro­posta mais radical: a ideia é que os eleitores escolham não um representante, mas um “delegado” que estará no Congresso apenas para votar de acordo com o que foi decidido pela maioria em discussões feitas pela internet. Essas discussões acontecem em uma plataforma de código aberto chamada DemocracyOS, criada pela desenvolvedora argentina Pia Mancini. Além do Partido de la Red, a Legislatura de Buenos Aires, o equivalente da nossa Câmara de Vereadores, também aderiu à plataforma para pedir a opinião da população sobre assuntos como o horário de funcionamento do metrô e a criação do Dia da Trabalhadora Sexual.

Se ainda não foi encontrada uma solução definitiva para a crise da democracia representativa, o Podemos e o Partido de la Red surgem como alternativas para tornar a relação de poder entre os eleitores e seus representantes um pouco menos desigual. “Sempre será necessário ampliar a capacidade de supervisão dos representados sobre os representantes, não só porque isso contribui para a promoção da igualdade política, mas sobretudo por uma questão de realismo”, explica Luis Felipe Miguel. “Só há uma lei universalmente válida que a ciência política foi capaz de estabelecer em toda a sua história: se dependermos da boa vontade de quem tem poder sobre nós, estamos lascados.”

Aplicativos e sites para que você não dê bobeira nas próximas eleições.

VOTE NA WEB

Apresenta de forma simplificada os projetos em tramitação e incentiva a participação dos usuários, que votam sim ou não e discutem as propostas. Os resultados são encaminhados ao Congresso.

BOLETIM DA CÂMARA

Por incrível que pareça, o próprio site da Câmara oferece aos eleitores a opção de receber um boletim por e-mail que mostra todas as propostas, discursos e votos dos seus representantes em Brasília.

NEWSLETTER INCANCELÁVEL

O eleitor recebe mensalmente uma newsletter com as notícias mais relevantes sobre o seu candidato — e não tem a opção de cancelá-la até que o mandato acabe.

QUEM ME REPRESENTA?

Saiba quais deputados se parecem com você de acordo com as votações da câmara. Dê sua opinião nos temas listados e os deputados serão ordenados pela semelhança com a sua opinião dada.

ÀS CLARAS

Base de dados mantida pela ONG Transparência Brasil com informações sobre o financiamento das campanhas eleitorais.

EXCELÊNCIAS

Mantido pela ONG Transparência Brasil o site traz projetos, votações, gastos e assiduidade dos deputados federais e senadores do seu Estado, além de informações sobre todos os parlamentares em exercício em cada momento na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.


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