19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

O cromatismo que nega o negro

Publicado em 14/10/2015 12:00 -

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População. Esta palavra, assim no singular, com todo o reducionismo que ela sugere é talvez a peça de ficção mais bem reproduzida na história do Brasil ao longo dos séculos, consolidada teoricamente durante grande parte do século XX e que o começo do século XXI trata de colocar em causa. “A população sempre foi um mistério no Brasil”, aponta o professor e pesquisador Mozart Linhares da Silva. Some-se à negação das singularidades que compõem as inúmeras populações brasileiras à complexidade de nossas sociedades e um certo desejo de eugenia que via na mestiçagem uma forma de “branquear” os negros. “O que é interessante neste arranjo nacionalista/eugenista, calcado na mestiçagem e seleção de imigrantes, é o meio pelo qual o Estado produzirá uma narrativa unificadora da nação. E esta nação unificada será instituída, ainda, sob a égide do não racismo. O mestiço é a ‘prova’ do convívio pacífico das ‘raças’ e está na base do que se chamará ‘ideologia’ da democracia racial”, apresenta o professor.

 

Em que medida a racialização do Brasil é uma das expressões da biopolítica?

 

Considero que a racialização no Brasil é um fenômeno que ocorre no contexto pós-abolição, quando há um deslocamento das questões atinentes ao estatuto jurídico do escravismo para as questões antropológicas relacionadas à população, ou melhor, a forma como a população deveria ser constituída. É importante observar que desde os anos 1870 o darwinismo, o evolucionismo e o positivismo passam a orientar a intelligentsia nacional. E, considerando os aspectos do biodeterminismo deste período, a miscigenação era vista na perspectiva do degeneracionismo. No período inicial da República assistimos a uma geração de intelectuais e cientistas que tomaram para si a “responsabilidade” de rediscutir a nação e problematizar a possibilidade de uma “identidade nacional”. É neste período que a população suscita, efetivamente, interesse. Figurarão neste grande debate sobre a população eugenistas medelianos e lamarckianos, sanitaristas, intelectuais, médicos, juristas e educadores de feição liberal ou mesmo fascista, entre outros. O Estado que emerge deste debate vai tomar forma a partir de 1930, nomeadamente com o Estado Novo. O que temos então? Por conseguinte, o que temos aqui é o momento em que a população passa a entrar no cálculo político do Estado, com claro propósito de reconstruí-la.

O que o proselitismo da mestiçagem propõe é o seu desaparecimento. Este é o sentido da eugenia brasileira.

A população sempre foi um mistério no Brasil.

Sim. E ela começa a fazer sentido a partir da publicação, em 1902, da obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, e do relatório das viagens médico-científicas de Belisário Penna e Artur Neiva, intitulado Viagem Científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, Sul do Piauí e de Norte a Sul de Goiás, de 1916. Estas obras apresentaram o sertanejo ao país e serviram como esteio de uma postura intelectual e científica que caminhará cada vez mais para o sanitarismo em detrimento de uma eugenia ortodoxa. É somente nos anos 1930 que esta massa disforme — que era a população brasileira — passa a reclamar metodologias e cálculos estatísticos mais precisos. Este é o sentido da criação, em 1936, sob a direção do nacionalista Teixeira de Freitas, do Instituto Nacional de Estatística, renomeado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1938. Desse modo, o que encontraremos nos anos 1930 em diante, grosso modo, é a construção de uma narrativa nacional desdobrada das estratégias biopolíticas do Estado que tomou para si a responsabilidade de dar a forma à nação/população.

Vem daí a questão da política de branqueamento?

Sim. Esta forma será tributária de uma leitura heterodoxa da eugenia, que transforma a mestiçagem de algo que condenava a nação em uma perspectiva redentora, que constituirá a base da política de branqueamento da população. O que é interessante neste arranjo nacionalista/eugenista, calcado na mestiçagem e seleção de imigrantes, é o meio pelo qual o Estado produzirá uma narrativa unificadora da nação. E esta nação unificada será instituída, ainda, sob a égide do não racismo. O mestiço é a “prova” do convívio pacífico das “raças” e está na base do que se chamará “ideologia” da democracia racial.

O que nos revela esta mestiçagem no âmago do “discurso” do Estado?

Ela não apenas funciona como amortecedor das relações raciais anulando conflitos, como integra o negro na narrativa da nação através de sua exclusão, pois, de fato, o que o proselitismo da mestiçagem propõe é o seu desaparecimento. Este é o sentido da eugenia brasileira. Biopolítica de branqueamento desdobrada em democracia racial, entendida aqui como um dispositivo de segurança que permite um processo de inclusão-exclusiva do negro no corpo espécie da população. Este era o cerne da famosa conferência de Batista de Lacerda intitulada Sur les metis au Brésil por ocasião de sua participação, como enviado oficial do governo brasileiro no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911. Em um século, esperava ele, o Brasil seria uma nação branca, livre tanto de negros como de mestiços. O mestiço é uma categoria de passagem, assim como o pardo, nos censos, uma categoria que anuncia a indecidibilidade racial, ou melhor, a desracialização do sujeito negro.

A mestiçagem vai funcionar como um discurso poderoso de conformação do branqueamento da nação ao mesmo tempo que anula a possibilidade do conflito racial no país.

Nesse sentido, podemos compreender a racialização brasileira como uma tecnologia de classificação/exclusão dos sujeitos?

Sim, considerando as colocações acima, a mestiçagem vai funcionar como um discurso poderoso de conformação do branqueamento da nação ao mesmo tempo que anula a possibilidade do conflito racial no país. Se observarmos os censos de 1940 em diante, teremos a nítida evidência de como o corpo espécie da população foi sendo construído a partir da gestão da mestiçagem como elemento de negação das polaridades, sobretudo do sujeito negro, na conformação da nação. No censo de 1940 temos 21,2% de pardos; em 1990, 42,45%; e em 2010, 43,1%. E, neste sentido, podemos apontar para um processo de construção do sujeito negro, ou melhor, da população negra, em população-sacer, para tomar de empréstimo a expressão de Agamben. Esta seria a silenciosa eugenia brasileira.

Em que medida a categoria raça foi ressignificada pelo Movimento Negro em nosso país?

Na medida em que se procurou reestruturar a própria categoria raça no campo político de uma afirmação de existência. O Movimento Negro (seria mais apropriado movimentos negros) entendeu que todo o processo de luta pela afirmação do negro no Brasil deveria considerar o desmantelamento da chamada “democracia racial” e, neste sentido, foi ao âmago da narrativa nacional, que o incluiu nesta narrativa pela sua exclusão. Não é sem sentido que a afirmação da negritude passa pela negação da mestiçagem como possibilidade identitária. Para o Movimento Negro não se deve separar em duas categorias “pretos e pardos”, como faz o IBGE nos censos, e sim considerar como negro a soma de pretos e pardos. Considerando o último censo, o Brasil tem 43,1% de pardos e 7,6% de pretos. Somando-se estas categorias, teríamos uma maioria negra no Brasil, com 50,7%. Trata-se, como estamos vendo, de uma disputa pela nomeação, pela conformação da população.

Para o Movimento Negro não se deve separar em duas categorias ‘pretos e pardos’, como faz o IBGE nos censos, e sim considerar como negro a soma de pretos e pardos.

Quando tem início este processo de desconstrução da “ideologia da democracia racial”?

Começa a ocorrer a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Até então a imagem que o Brasil mostrava ao mundo era a de um paraíso racial, um modelo de solução multirracial. Depois dos horrores racistas da Guerra, a Unesco, com o objetivo de entender melhor o caso brasileiro (um possível modelo ao mundo), apoiou uma série de pesquisas sobre relações raciais no Brasil entre 1950 e 1952. Ao contrário das expectativas, as pesquisas apresentaram um país marcado profundamente pelo racismo e pela tradição escravista. A dita democracia racial não se refletia numa democracia social, ao contrário, as desigualdades sociais eram resultado também do racismo. Os resultados das pesquisas sobre relações raciais no país suscitaram vários outros projetos de investigação nos anos 1960, como é o caso das obras de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, 5ª ed), Octavio Ianni, As Metamorfoses do Escravo (São Paulo: Hucitec/Curitiba: Scientia et Labor, 1988, 2ª ed), e Florestan Fernandes, A integração do Negro na Sociedade de Classes (Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008). Se do ponto de vista acadêmico o mito passou a ser refutado, do ponto de vista do Estado ele se mantinha inalterado. Com a Ditadura Militar, a “ideologia da democracia racial” foi reafirmada, até porque servia bem à política de negação dos conflitos no país, seja de classe ou raça. Somente no final dos anos 1970, com a decadência do regime militar, as coisas começaram a mudar. Lutar contra o regime era também lutar, evidentemente, contra as ideias que o sustentavam. E, dentre elas, a “democracia racial”. Não é sem sentido que em 1979 seja criado o Movimento Negro Unificado (MNU) e instituído o 20 de Novembro como o Dia da Consciência Negra, data alusiva à morte de Zumbi dos Palmares.

Na segunda metade dos anos 1970, com a abertura dos dados censitários aos pesquisadores, até então interditados pelo regime militar, novas pesquisas atestaram a falácia do mito, sustentando a plataforma de lutas dos movimentos sociais antirracismo.

Estas pesquisas estatísticas do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a exemplo das investigações de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, mostram, em números, um país marcado pelo racismo. É evidente que o Movimento Negro vai se abastecer destas pesquisas e fortalecer assim seu discurso de ataque à democracia racial. Será cobrado do Estado, também, que reconheça o racismo, o que ocorre em 1996, com FHC. Em 1995 é criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da População Negra, vinculado à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH). Este grupo possibilitou a articulação política do MNU e abriu o debate sobre as ações afirmativas, que seria intensificado e ampliado no governo Lula, com a criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). A partir deste contexto teremos, portanto, um grande debate no país, que nos chega ainda hoje e que coloca em pauta cotidianamente a discussão sobre relações raciais e racismo.


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