20/04/2024 - Edição 540

Palavra do Editor

O fanático

Publicado em 26/02/2014 12:00 -

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Nas ideologias revolucionárias sustentadas nos últimos 150 anos, a individualidade só adquire sentido na medida de seu engajamento na construção do porvir, da sociedade ideal. Para que este objetivo seja alcançado, violência, fraude, crime, genocídio são tolerados como percalços de um caminho pedregoso. Não há virtude fora da fidelidade partidária.

Inserido neste contexto emerge a figura do fanático, cuja individualidade, imersa na ideologia coletiva, não consegue compreender e respeitar a individualidade alheia. Para o fanático, só há um objetivo: as metas do seu partido ou seita. As pessoas são boas ou más conforme se ajustem ou se afastem destes objetivos, e, mais importante, dos meios adotados para alcançá-los.

Aos que insistem em reafirmar seus próprios critérios, independentemente do serviço ou desserviço que prestem às metas políticas do partido, o fanático reserva um sólido desprezo. Suas convicções são para ele irrelevantes. Os seus objetivos não são metas vitais. Provém daí sua incapacidade de compreender os outros em suas próprias particularidades. É preciso traduzi-los a partir de seu próprio ideal, reduzi-los a amigos ou inimigos do partido, da seita, e julgá-los em função disso.

O que o fanático nega aos demais seres humanos é o direito de apresentar-se segundo suas próprias categorias. Para ele, o outro não existe como indivíduo, mas como tipo.

O que o fanático nega aos demais seres humanos é o direito de apresentar-se segundo suas próprias categorias. Para ele, o outro não existe como indivíduo, mas como tipo: "amigo" ou "inimigo". Classificado como "inimigo", torna-se idêntico e indiscernível de todos os demais "inimigos".

O fanático não admite virtude maior que a de aderir à sua causa, nem pecado mais terrível do que o de renegá-la. Para ele, “bom” é quem está do seu lado, “mau” é quem está contra. “Boa” é toda a ação que parta de seu grupo político, “má” é toda a ação que parta do opositor. Mesmo que esta seja, de alguma forma, parte da práxis do partido do fanático. Para ele, o que importa é a classificação e a divisão do mundo entre “nós” e “eles”. Sem esta dicotomia, o fanático se perde, não compreende o mundo à sua volta.

Esta ironia é expressa claramente em Bertolt Brecht: "Se eram inocentes, mais ainda mereciam ser condenados". Trata-se de um cinismo cujas consequências são terríveis. "Mentir em favor da verdade", propunha o dramaturgo alemão. Quantos fanáticos que pululam nas redes sociais se enquadrariam em máximas leninistas como "fomentar a corrupção e denunciá-la", ou "acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é"?

O fanático não admite virtude maior que a de aderir à sua causa, nem pecado mais terrível do que o de renegá-la. Para ele, “bom” é quem está do seu lado, “mau” é quem está contra.

E não vemos hoje esta prática sendo moldada diariamente nos debates políticos? Não é esta mesma guerra simétrica – explicada por Jacques Baud – que outorga a um dos lados o direito incondicional a todos os crimes, brutalidades e baixezas, e desarma o outro por meio de cobranças morais? Não é exatamente isso que vemos hoje na Venezuela chavista, na Ucrânia, no Brasil?

Frei Beto disse certa vez que não há nada mais parecido a um esquerdista fanático que um direitista visceral. “Os dois padecem da síndrome de pânico conspiratório. O direitista, aquinhoado por uma conjuntura que lhe é favorável, envaidece-se com a claque endinheirada que o adula como um dono a seu cão farejador. O esquerdista, cercado de adversários por todos os lados, julga que a história resulta de sua vontade”, afirmou.

Sejam de esquerda ou de direita, é preciso desarmar os fanáticos, isolá-los em suas próprias armadilhas retóricas, sob a pena de sermos todos enredados em suas tramas.


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