28/03/2024 - Edição 540

Especial

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Publicado em 02/09/2015 12:00 -

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A morte do índio terena Oziel Gabriel, 35, durante conflito entre indígenas e policiais durante a desocupação da Fazenda Buriti, em Sidrolândia (MS), na última quinta-feira, 30, é uma tragédia anunciada. Na terça-feira, 28, quando representantes do agronegócio sul-mato-grossense e parlamentares do Estado reuniram-se em Brasília com a ministra Gleisi Hoffmann (Casa Civil) e representantes do governo federal – entre eles os ministros Luís Inácio Adams (Advocacia-Geral da União), José Eduardo Cardozo (Justiça) e Pepe Vargas (Desenvolvimento Agrário) – a possibilidade de um conflito grave em Mato Grosso do Sul já estava posta em pauta e, conforme tem sido a prática do Estado brasileiro, foi empurrada com a barriga.

As previsões mais pessimistas, no entanto, se concretizaram com a morte de Oziel. Auxiliar de serviços gerais na Prefeitura de Sidrolândia e estudante do ensino médio, ele era natural da aldeia Córrego do Meio e estava acampado na Fazenda Buriti desde o dia 15. Há dois meses participou da retomada da Fazenda Santa Helena, uma das áreas da Terra Indígena Buriti, cujos 17.200 hectares têm pouco mais de mil ocupados pelos indígenas. Na quinta-feira, ele foi atingido por um tiro no abdômen, que lhe trespassou o fígado saindo pelas costas. Oziel deixou esposa e dois filhos.

Com os dois parágrafos acima a revista Semana On abria sua reportagem de capa da edição número 77, em 1º de junho de 2013. Impossível não traçar um paralelo com a morte do índio Semião Fernandes Vilhalva, 24 anos, no último sábado (29), em mais um conflito de terras em Mato Grosso do Sul. Desta vez, o cenário foi a Fazenda Piquiri, no município de Antonio João – 279 km da capital, Campo Grande.

São muitas as reportagens que, nas últimas décadas, poderiam ter sido iniciadas da mesma forma na imprensa sul-mato-grossense. Doze lideranças indígenas foram assassinadas no Estado nos últimos 31 anos. No próximo dia 25 de novembro, por exemplo, completam-se 32 anos do assassinato de Marçal de Souza, líder da etnia Guarani Ñhandeva, conhecido também como Marçal Tupã-i, um dos símbolos da luta indígena no Mato Grosso do Sul.

Em janeiro 2003 foi assassinado, aos 72 anos, o kaiowá Marcos Veron, que dedicou sua vida a recuperar a terra ancestral de seu povo na área chamada de Taquara, no município de Juti. Em 2009, o “desaparecimento” dos irmãos kaiowá Genivaldo Vera e Rolindo Vera, após confronto com seguranças de uma fazenda em Paranhos, deu sequencia ao ciclo de violência contra as populações indígenas no Estado. O corpo de Genivaldo foi encontrado, o do irmão, ainda está desaparecido.

Em novembro de 2011, em Aral Moreira, foi a vez do kaiowá Nísio Gomes. Ele tinha 59 anos de idade e morreu na terra Guaiviry. Mesmo sem encontrar o corpo, a polícia concluiu o inquérito e o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 23 pessoas. Dois anos depois, em maio de 2013, o índio terena Oziel Gabriel, de 36 anos, foi morto durante reintegração de posse da fazenda Buriti, em Sidrolândia. O crime permanece impune.  

O Conselho do Povo Terena classifica a violência no campo em Mato Grosso do Sul como “agrobanditismo” e aponta, ainda, a morte de Dorival Benites, 36 anos, (2005); Dorvalino Rocha, 39 anos (2005); Xurite Lopes, 73 anos (2007); Ortiz Lopes, 46 anos (2007); Oswaldo Lopes (2009) e Teodoro Ricarde (2011).

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No último dia 22 de agosto, índios guarani-kaiowá invadiram a fazenda Primavera, na cidade de Antonio João. Eles lutam pela demarcação do território “Ñande Ru Marangatu”, cujos 9.317 hectares foram homologados pelo ex-presidente Lula em 2005.

Quatro dias depois, a invasão se estendia por seis fazendas na região, que faz fronteira com o Paraguai. No dia 26, cerca de 60 famílias fugiram de suas casas no distrito de Campestre sob a alegação de que os índios ameaçaram atear fogo nas propriedades. No dia seguinte (27), o senador Waldemir Moka (PMDB-MS) alertou as autoridades federais em Brasília sobre o clima de tensão entre produtores rurais e índios, no sul do Estado. A esta altura, os produtores haviam fechado rodovias em protesto contra a invasão de cerca de três mil índios a 10 mil hectares de terras da região. 

O clima se acirrou no sábado, dia 29 de agosto, quando, durante uma reunião no Sindicato Rural de Antonio João, entre produtores rurais, políticos de Mato Grosso do Sul e representantes de órgãos de segurança pública, um grupo de fazendeiros abandonou a reunião com a promessa de que retomariam as fazendas invadidas.

Na tarde do mesmo dia – apesar da presença de equipes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), da Polícia Militar e da Força Nacional no local – produtores rurais entraram em conflito cos índios guarani-kaiowá. A organização não-governamental (ONG) Aty Guaçu, que defende os interesses dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul, publicou em sua página no Facebook:

“Mais de 200 pistoleiros armados, paramilitares das fazendas, atacaram a tiros, massacraram de forma terrorista as comunidades guarani-kaiowá no Tekoha Marangatu, em Antonio João. Há massacre dos indígenas, coordenado pela fazendeira Roseli Silva [Roseli Maria Ruiz, presidente do Sindicato Rural de Antonio João e proprietária de uma das áreas ocupadas]. Não sabemos ainda quantos indígenas foram assassinados, torturados, feridos e agredidos”.

O comandante do DOF em Dourados, coronel Ary Carlos Barbosa, que estava à frente do comando no local, disse que, apesar do clima não ser de calma, estava longe do cenário de guerra alertado pelas redes sociais, e afirmou não ter havido mortes na região. “São apenas especulações", garantiu.

Conflito previsível

Na tarde do dia 29, no entanto, um confronto na Fazenda Piquiri resultou na morte do índio Semião Fernandes Vilhalva, 24 anos. O deputado federal Luiz Henrique Mandetta (DEM) testemunhou o conflito.

Acompanhado por dois jornalistas da região, tentava apaziguar os ânimos. “Fiquei com flecha a um palmo do olho, enquanto tentava mediar a conversa. De repente, os fazendeiros entraram com os carros por uma lateral da sede e foram descendo dos veículos próximo a casa. Neste momento iniciou o confronto. Era índio e produtor correndo. Teve paulada, pedrada e até barulho de tiro, mas ninguém ferido gravemente”.

Ainda segundo o deputado, depois de retomada a sede da fazenda, por volta das 14h30, cerca de 50 homens do DOF e da Força Nacional chegaram em camionetes. Com o reforço, um grupo de fazendeiros se deslocou para outra propriedade, na tentativa de resguardar uma ponte, pois havia a informação de que os índios colocariam fogo para derrubá-la.

No local, conforme o deputado, aconteceu novo conflito. Mandetta afirmou ter visto armas de fogo nas mãos dos índios e dos produtores rurais. “De repente ouvi o barulho de um tiro de arma de pequeno calibre próximo a casa em que estavam os indígenas. Em seguida, os índios vieram em nossa direção carregando um corpo”.

O corpo era de Vilhalva. A perícia constatou que ele foi morto com um tiro no rosto.

No dia 31, o diretor de diálogos sociais da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gustavo Augusto Gomes Moura chegou à região atendendo a pedido do Ministro Miguel Rosseto. "A gente lamenta muito. Não havia necessidade de violência. A sociedade tem outros mecanismos que podem ser usados nessa situação, por meio do diálogo. Estou aqui justamente para que não ocorra mais isso", afirmou.

No dia 1º, Militares do Exército iniciaram a Operação Dourados, deflagrada em quatro cidades de Mato Grosso do Sul para evitar mais conflitos entre indígenas e proprietários rurais. A ação vai durar 30 dias e abrangerá as cidades de Antônio João, Aral Moreira, Bela Vista e Antonio João A operação será executada pelo Comando Militar do Oeste (CMO), com o emprego de tropas que já estão na região do conflito.  Inicialmente, a mobilização contará com homens do Exército, porém se houver necessidade, o Ministério da Defesa, poderá empregar tropas da Marinha e da Aeronáutica. 

Guerrilha Paraguaia?

O governador Reinaldo Azambuja (PSDB) externou a preocupação de que pessoas de outras nacionalidades estejam entrando no território brasileiro para incitar conflitos por terras entre indígenas e produtores rurais.

No dia 28 de agosto o Governo do Estado solicitou a presença do exército na região, para, segundo o secretário de Governo e Gestão Estratégica, Eduardo Riedel, preservar a soberania nacional. Segundo ele, relatos de produtores rurais davam conta de que indígenas paraguaios faziam parte do movimento na região de Antonio João.

Na mesma linha, a deputada federal Tereza Cristina Corrêa Dias (PSB-MS) acusou o Conselho Indiginista Missionário (Cimi) de ser um “braço armado das Farc” em Mato Grosso do Sul.

A deputada estadual Mara Caseiro (PT do B) obteve nesta semana as assinaturas necessárias para criar, na Assembleia Legislativa, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o Cimi. Ela quer saber se o órgão é o responsável por incitar a violência entre índios e fazendeiros. "Temos que saber quem são os elementos que estão incentivando o conflito, por que o Cimi não foi criado com essa intenção, tanto que recebem recursos de instituições até de fora do país, mas não fizeram nenhuma política para melhorar a situação dos índios", critica.

A abertura da CPI é incerta, pois parlamentares do PT e entidades ligadas aos direitos humanos contestam sua pertinência.

Em defesa do Cimi, o deputado estadual Pedro Kemp (PT) leu trecho de carta envida pelo bispo Dom Dimas Lara Barbosa à presidente Dilma Rousseff (PT). “Dom Dimas fala que a Polícia Federal há muito tempo investiga o Cimi em relação à questão de incentivar conflito no campo. Mas que o verdadeiro responsável pelo conflito são os três poderes, principalmente o federal, que tem prerrogativa de chegar a uma solução. Ainda quando o Estado era Mato Grosso titulou terras indígenas, o que gerou todo o problema agora”, diz Kemp.

O coordenador do Cimi, Flávio Machado, afirma que a CPI tem a intenção de “tirar o foco” do problema no campo e que o organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não tem nada a esconder, pois têm ações transparentes. Ele ressaltou que vai esperar para saber qual é o respaldo e conteúdo contra o órgão. Ainda segundo Flávio, não é a primeira vez que o Cimi vai ser investigado, com tentativa de criminalizá-lo. “Somos uma instituição religiosa, que tem um compromisso histórico. Tivemos no passado missionários que até foram assassinados e iremos nos defender de qualquer acusação”.

Para o juiz federal Odilon de Oliveira, há uma possibilidade de que a guerrilha paraguaia esteja se imiscuindo em questões agrárias e indígenas em Mato Grosso do Sul. Segundo ele, há indícios de que o Exército do Povo Paraguaio (EPP) possa estar fomentando essas invasões e até treinando indígenas da região.

“O Brasil não pode subestimar o EPP quanto à sua capacidade de rápido crescimento e de tentar se infiltrar em movimentos ocorrentes no ambiente rural da fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Em respeito à nossa soberania, temos que descer a lenha nesses terroristas do EPP e rechaçar qualquer tentativa dessa gente desordeira”, afirmou o juiz em recente artigo.

Apuração

Mais de 40 entidades se reuniram na sede do Ministério Público Federal de Campo Grande para protocolar um documento pedindo que sejam tomadas providências quanto à morte de Semião Fernandes Vilhalva.

Conforme o documento, o Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso já havia sido informado da situação por meio de um ofício que alertava que Mato Grosso do Sul se encontra em "quadro mais grave de violações de direitos humanos dos povos indígenas no Brasil" e das responsabilidades do ministro quanto a demarcações das terras indígenas e a segurança pública.

O documento foi entregue ao procurador Emerson Kalif Siqueira, pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), e será encaminhado para a procuradoria da república em Ponta Porã.

Segundo o presidente da Central Única dos Trabalhadores no estado (CUT-MS), Genilson Duarte, todas as entidades sindicais, movimentos sociais e estudantis que estiveram hoje no MPF, cobram apoio aos índios e exigem providências sobre o caso.

"A Polícia dá proteção aos fazendeiros, mas não dão a mesma proteção para os índios e para aqueles que querem ajudá-los. Nós estamos apoiando essa luta e somos solidários à causa indígena", afirma.

O deputado federal Zeca do PT comentou que a responsabilidade da ocupação de terras é do Governo Federal e a solução seria comprar as terras de conflito indenizando a terra e benfeitoria para aqueles que têm título de boa fé. "Essas pessoas compraram essas terras, seja do governo federal ou estadual, então precisam der indenizadas, como o governo federal não toma iniciativa expõe esse conflito e quem paga o pato são os índios", comentou.

Das seis fazendas ocupadas pelos índios Guarani Kaiowá no início do conflito, três permanecem sob o seu controle: as fazendas Primavera, Cedro e Fronteira. Essas propriedades fazem divisa com a aldeia Marangatu.

Solução improvável

O ministro da Justiça José Eduardo Cardoso veio a Campo Grande na última quarta-feira (2). Ele se reuniu com produtores rurais e lideranças indígenas. Mas, ao que parece, a reunião não rendeu frutos.

O ministro disse que não vai tolerar a incitação a violência nas áreas de conflitos indígenas de Mato Grosso do Sul. “Não aceitaremos incitação a violência, seja de qualquer parte. E não toleraremos desrespeito a ordem pública em hipótese alguma. O que eu faço é um apelo pela mediação, com a presença das partes envolvidas, governo estadual e federal, Funai, Advocacia Geral da União (AGU), Ministério Público federal (MPF) e judiciário”, afirmou.

No entanto, o anuncio da aprovação do Projeto de Emenda Constitucional 71/2011 (PEC 71/2011), que autoriza a União a indenizar os produtores pelo valor da “terra nua” – medida que poderia evitar novos confrontos entre populações indígenas e produtores rurais – que havia sido anunciada pelo senador Delcídio do Amaral (PT-MS), líder do governo no Senado, não foi confirmada pelo ministro.

“Saímos do nada para lugar nenhum”, disse Luana Ruiz, filha dos donos da Fazenda Primavera, onde Vilhalva foi morto no sábado. Segundo ela, para conversar com o ministro, os ruralistas queriam a garantia prévia de reintegração de posse da área, o que foi negado.

O deputado estadual Zé Teixeira (DEM) deixou o local dizendo que a reunião foi “igual a todas as outras” das quais participou, enquanto o colega Márcio Fernandes (PTdoB) confirmou não ter havido “nada de concreto” no encontro.

História escrita com sangue

O extremo sul de Mato Grosso do Sul convive com a questão das áreas indígenas há décadas. Os municípios fronteiriços ficam em terras tradicionalmente ocupadas por povos nativos, mas nos últimos cem anos foram ocupados pelos brancos com aval do poder público e à base da expulsão velada e da favelização dos índios. Após anos de espera, os Guarani-Kaiowá estão decididos a retomar as ‘tekohá’, como chamam, no idioma nativo, o “espaço onde se vive”.

A relação conflituosa com os índios faz parte do processo de colonização em Mato Grosso do Sul. São comuns os relatos nas rodas de tereré de fazendeiros da fronteira sobre como alguns grupos de índios eram “ensinados a respeitar a cerca”.

“Os bugres sempre viveram assim, soltos por ai que nem bicho. Meu avô contava que direto eles tinham que espantar a bugrada das terras aqui quando via que eles tavam se ajuntando demais. Agora, quando é pouco, a gente nunca ligou não”, conta um filho de fazendeiro. Ele vive em Paranhos, mas, assim como os índios que faz questão de chamar ‘bugres’, nasceu na região de Arroyo Corá.

Com a falta de espaço sem cercas, muitos índios acabaram se mantendo nas terras dos ancestrais como empregados dos fazendeiros. “Antigamente não tinha esse negócio de fazenda. Isso foi invenção dos brancos, e pra muitos, o jeito foi trabalhar de peão de fazenda pra ficar por aqui mesmo. Com meu pai foi assim, com muito parente foi assim”, relata um descendente de guarani que participa da retomada na tekohá.

A culpa é do Governo

Boa parte das propriedades rurais em Mato Grosso do Sul foi distribuída aos fazendeiros pelo próprio Governo Brasileiro como parte de programas de colonização ou de reforma agráriao. Mas ninguém levou em conta que as áreas já eram ocupadas por outros povos desde antes da chegada dos espanhóis e portugueses.

Durante séculos, os moradores originais das terras que atualmente compõem o território sul-mato-grossense sobreviveram à margem da colonização realizada pelos brancos, e mantiveram patrimônio cultural como os idiomas, tradições e modo de vida, que permitem, ainda hoje, identificar povos indígenas distintos.

Com a Constituição de 1988, o Governo Brasileiro reconheceu que direitos dos índios foram desrespeitados desde que a nau de Pedro Álvares Cabral ancorou no litoral baiano, mas os políticos não deixaram claro como seria feita a compensação e começou uma disputa fundiária na qual todos se consideram vítimas do poder público.

A morte de Semião Fernandes Vilhalva marca mais um capítulo desta história.


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