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Putin estimula choque cultural da Rússia com países ocidentais

Publicado em 04/07/2015 12:00 -

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Durante grande parte do século 20, a Rússia foi um Estado revolucionário cujo objetivo era a disseminação global da ideologia comunista. Já no século 21, ela transformou-se no mais proeminente poder contrarrevolucionário.

A escalada do conflito entre o Ocidente e Moscou é apresentada como uma questão política, militar e econômica. Na verdade, é algo mais profundo. É cultural. O presidente Vladimir Putin diz ser o guardião contra aquilo que a Rússia enxerga como uma cultura ocidental predatória e relativista.

Ouvir intelectuais russos pró-Putin é se submeter a uma ladainha de queixas contra o "revolucionário" Ocidente, com sua adesão irreligiosa ao casamento gay, ao feminismo radical, à eutanásia, à homossexualidade e a outras manifestações da "decadência".

Segundo eles, o Ocidente pretende globalizar valores "subversivos", muitas vezes sob o disfarce da promoção da democracia e dos direitos humanos.

A Rússia de Putin, por outro lado, é retratada por eles como um baluarte contra o abandono dos valores religiosos e também como nação cada vez mais devota ao cristianismo ortodoxo — um país convencido de que nenhuma civilização sobrevive "relativizando" verdades sagradas.

Mais do que a anexação da Crimeia por Putin ou o fato de ele ter estimulado uma guerra no leste da Ucrânia, o que indica que o confronto com a Rússia irá durar décadas é a decisão de Putin de desafiar culturalmente o Ocidente. O comunismo era uma ideologia global. O putinismo é menos do que isso. Porém, uma batalha de ideias começou, e nela a contrarrevolução contra o Ocidente ímpio e aliciante é uma pedra angular da ideologia russa.

Até certo ponto, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, partilha da opinião de Putin sobre o Ocidente. A China, por sua vez, vê utilidade nesse pensamento.

Foi-se a ilusão do pós-Guerra Fria de uma convergência benigna pela interdependência. Algo fundamental mudou, e isso vai muito além da disputa territorial. Putin decidiu definir seu poder pelo conflito com o Ocidente. A única pergunta é se ele tem em mente um conflito total ou limitado.

A decisão russa tem implicações estratégicas que o Ocidente mal começou a digerir. Putin está atualmente mais interessado na Organização para a Cooperação de Xangai, cujo núcleo é composto por China e Rússia, do que na cooperação com o G8 (do qual a Rússia foi suspensa) ou com a União Europeia.

A China, até certo ponto, retribui esse interesse, porque uma Rússia hostil ao Ocidente é útil na defesa do seu próprio modelo político autoritário e porque ela vê oportunidades econômicas na Rússia e nos antigos países soviéticos da Ásia Central. Mas o feroz ímpeto modernizador chinês não pode ser concretizado com uma Rússia retrógrada. Há limites claros para a atual reaproximação sino-russa.

Como comentou um alto funcionário europeu que participava de uma conferência organizada pelo Centro Weatherhead de Assuntos Internacionais, da Universidade Harvard, a Rússia representa um "desafio do perdedor" para o Ocidente, porque ela desistiu da modernização e da globalização, ao passo que a China constituiu potencialmente um "desafio do vencedor", porque está apostando tudo numa tecnologia moderna e altamente tecnológica.

Claro que, sendo irracionais e quixotescos, os desafios feitos pelos derrotados são particularmente perigosos. Putin engoliu um pedaço da Ucrânia depois de tentar selar um acordo comercial com a União Europeia. Ele diz que está somando 40 mísseis balísticos intercontinentais ao arsenal russo. Ele aumentou os voos de bombardeiros com capacidade nuclear. A mensagem é clara: estamos nos inclinando pelas armas nucleares.

Como o Ocidente deve reagir? Ele não pode alterar a atração que o resto do mundo sente por seus valores -basta ver as hordas de pessoas que morrem tentando entrar na União Europeia (e os russos ricos que também afluem ao Ocidente em busca do Estado de direito). Por isso, o que a Rússia enxerga como "subversão" ocidental vai —e precisa— continuar.

O Ocidente deve proteger o direito dos povos nas terras que ficam entre o Leste e o Oeste. Os cidadãos de Ucrânia, Moldávia, Armênia, Geórgia e outros Estados têm o direito de alcançar a prosperidade ocidental por meio de instituições ocidentais, se assim desejarem. A Polônia e os Estados bálticos, agora protegidos pela Otan, inevitavelmente funcionam como ímãs para eles.

Essa nova proteção deve se basear nas políticas que guiaram a proteção da Alemanha durante a Guerra Fria: firmeza aliada ao diálogo. O Ocidente, nas palavras de Tomasz Siemoniak, ministro polonês da Defesa, está sendo "excessivo" em sua cautela.

Já é alguma coisa realizar exercícios da Otan na Letônia, criar uma nova força de reação rápida da aliança, com 5.000 soldados para servirem como "ponta de lança", e deslocar 250 tanques e outros equipamentos para bases temporárias em seis países do Leste Europeu.

No entanto, para mandar uma mensagem a Putin, é necessário mobilizar armas pesadas na região, de forma permanente e em volume significativo, além de ampliar o gasto europeu em defesa e assumir um claro compromisso de manter sanções enquanto a Ucrânia não for reconstituída integralmente, com controle total sobre suas fronteiras.

No fim das contas, as próprias ideias e instituições ocidentais que Putin despreza serão a maior força do Ocidente para o longo combate à contrarrevolução russa que se prenuncia.


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