29/03/2024 - Edição 540

Especial

Maioridade penal

Publicado em 02/04/2015 12:00 -

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A aprovação da proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos – votada na Câmara Federal no último dia 31 – trouxe o debate novamente para a esfera pública. Afinal, a medida agride os direitos fundamentais de adolescentes ou cria mecanismos para responsabilizá-los por seus atos?

Estes e outros aspectos da proposta serão debatidos por uma comissão especial que será criada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), na próxima quarta-feira (8), e que terá, em média, 40 sessões (cerca de três meses). Esse colegiado pode manter ou alterar o texto original, estabelecendo, por exemplo, que a imputação penal a partir dos 16 anos valerá para determinados crimes graves, como os hediondos. Há quem defenda, no entanto, a diminuição da maioridade para todos os crimes.

A comissão vai analisar a proposta de emenda à Constituição (PEC 171/1993) apresentada há 22 anos. Junto a esse texto foram agrupadas outras 37 proposições com o mesmo teor, que serão analisadas em conjunto. O texto original é de autoria do ex-deputado Benedito Domingos (PP-DF), e altera a redação do artigo 228 da Constituição Federal, com o objetivo de reduzir de 18 para 16 anos a idade mínima para a responsabilização penal.

A comissão especial vai consolidar um relatório para ser analisado no plenário da Câmara, tendo que passar por duas votações e receber pelo menos os votos de 308 dos 513 deputados para ser aprovado. Com a aprovação da Câmara, a PEC segue para o Senado,  onde também será analisada pela CCJ da Casa e passará por mais duas votações em plenário, onde são exigidos 49 votos entre os 81 senadores.

O que diz a proposta

Em meio ao debate ideológico e passional que se instalou acerca do tema, onde quem é contra acusa quem é a favor de fascismo e outras diatribes; e quem é a favor acusa quem é contra de conivência com a criminalidade e outras bobagens, a formação de um juízo sobre o tema acaba sendo prejudicada.

Afinal, o que a proposta pretende modificar?

Hoje, de acordo com o artigo 228 da Constituição Federal, "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial". A redação proposta pela PEC sugere que o artigo seja substituído por: “São penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

A legislação especial a qual a Constituição se refere é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um conjunto de normas aprovadas em 1990 para proteger a infância, elogiado internacionalmente como uma das legislações mais modernas do mundo.

Segundo o estatuto, o adolescente menor de 18 anos que pratica ato infracional pode ter, como medida socioeducativa, desde advertência e prestação de serviços à comunidade até a internação em estabelecimento educacional, uma “medida privativa da liberdade”.

A internação, segundo o ECA, só deve ocorrer em casos de ato infracional considerado violento ou com grave ameaça, quando há reincidência de infrações consideradas graves ou quando há descumprimento de medida socioeducativa anterior. A legislação determina que a internação não pode durar mais de três anos e a liberação é obrigatória aos 21 anos de idade.

A PEC não altera o ECA, mas, conforme a proposta, as punições estabelecidas no estatuto, que são válidas para adolescentes que praticam atos infracionais, só valeriam para quem tem até 15 anos.

A justificativa da PEC alega que a maioridade penal foi fixada em 1940, quando os jovens – segundo ela – tinham "um desenvolvimento mental inferior aos jovens de hoje da mesma idade".

De acordo com o deputado Benedito Domingos, "o acesso à informação, a liberdade de imprensa, a ausência de censura prévia, a liberação sexual, dentre outros fatores", aumentaram a capacidade de discernimento dos jovens para "entender o caráter delituoso" e, por isso, capazes de serem responsabilizados criminalmente.

"Se há algum tempo atrás se entendia que a capacidade de discernimento tomava vulto a partir dos 18 anos, hoje, de maneira límpida e cristalina, o mesmo ocorre quando nos deparamos com os adolescentes com mais de 16", afirma o texto.

Desde 1940, quando a legislação brasileira estipulou a maioridade penal, qualquer jovem com idade inferior a 18 anos é considerado “incapaz”. Em outras palavras, o Estado entende que ele não tem condições de fazer as próprias escolhas nem de assumir as consequências de seus atos. É esse o conceito que tem praticamente assegurado a impunidade a adolescentes criminosos que cometem atos bárbaros e que estimula o crime organizado a recrutar cada vez mais crianças para suas fileiras. Mas será que um jovem de 16 anos em 2013 tem o mesmo amadurecimento e acesso à informação que tinha um adolescente da mesma idade em 1940?

Este é apenas um dos muitos pontos de discórdia entre quem defende e quem condena as modificações propostas.

Prós e contras

Entre os argumentos elencados pelos que apoiam a redução da maioridade penal, cinco se destacam:

– A mudança do artigo 228 da Constituição de 1988 não seria inconstitucional. O artigo 60 da Constituição, no seu inciso 4º, estabelece que as PECs não podem extinguir direitos e garantias individuais. Defensores da PEC 171 afirmam que ela não acaba com direitos, apenas impõe novas regras;

– A impunidade gera mais violência. Os jovens "de hoje" têm consciência de que não podem ser presos e punidos como adultos. Por isso continuam a cometer crimes;

– A redução da maioridade penal iria proteger os jovens do aliciamento feito pelo crime organizado, que tem recrutado menores de 18 anos para atividades, sobretudo, relacionadas ao tráfico de drogas;

– O Brasil precisa alinhar a sua legislação à de países desenvolvidos com os Estados Unidos, onde, na maioria dos Estados, adolescentes acima de 12 anos de idade podem ser submetidos a processos judiciais da mesma forma que adultos;

– A maioria da população brasileira é a favor da redução da maioridade penal. Em 2013, pesquisa realizada pelo instituto CNT/MDA indicou que 92,7% dos brasileiros são a favor da medida. No mesmo ano, pesquisa do instituto Datafolha indicou que 93% dos paulistanos são a favor da redução.

Quem é contra também aponta motivos contundentes para justificar a manutenção da maioridade penal em 18 anos de idade:

– A redução da maioridade penal fere uma das cláusulas pétreas (aquelas que não podem ser modificadas por congressistas) da Constituição de 1988. O artigo 228 é claro: "São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos";

– A inclusão de jovens a partir de 16 anos no sistema prisional brasileiro não iria contribuir para a sua reinserção na sociedade. Relatórios de entidades nacionais e internacionais vêm criticando a qualidade do sistema prisional brasileiro;

– A pressão para a redução da maioridade penal está baseada em casos isolados, e não em dados estatísticos. Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, jovens entre 16 e 18 anos são responsáveis por menos de 0,9% dos crimes praticados no país. Se forem considerados os homicídios e tentativas de homicídio, esse número cai para 0,5%;

– Em vez de reduzir a maioridade penal, o governo deveria investir em educação e em políticas públicas para proteger os jovens e diminuir a vulnerabilidade deles ao crime. No Brasil, segundo dados do IBGE, 486 mil crianças entre cinco e 13 anos eram vítimas do trabalho infantil em todo o Brasil em 2013. No quesito educação, o Brasil ainda tem 13 milhões de analfabetos com 15 anos de idade ou mais;

– A redução da maioridade penal iria afetar, preferencialmente, jovens negros, pobres e moradores de áreas periféricas do Brasil, na medida em que este é o perfil de boa parte da população carcerária brasileira. Estudo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) aponta que 72% da população carcerária brasileira é composta por negros.

Debate

O ministro do STF Marco Aurélio Mello disse que a redução da maioridade penal não resolveria o problema da criminalidade. De acordo com ele, medidas alternativas, como a ampliação do tempo de internação de menores deveriam ser discutidas antes de eventuais alterações na Constituição. "Não vamos dar uma esperança vã à sociedade, como se pudéssemos ter dias melhores alterando a responsabilidade penal, a faixa etária (…). Cadeia não conserta ninguém".

O advogado Carlos Velloso, ex-presidente do STF, discorda. Para ele, a redução da maioridade penal vai inibir jovens e criminosos. “O jovem de hoje é diferente do jovem de 1940, quando essa maioridade penal (de 18 anos) foi instituída. Agora, ele é bem informado, já compreende o que é uma atitude delituosa. Muitos jovens com 16 anos já estão empregados no crime organizado. A redução vai inibir os adolescentes e criminosos que aliciam menores.”

Já o advogado Marcos Fuchs, 51, diretor da ONG Conectas, afirma ser contra a redução da maioridade penal porque isso colocaria adolescentes num ambiente prisional controlado por criminoso. “Se diminuir, iremos contra uma resolução da ONU que pede para proteger os adolescentes. Isso não acontece quando você os coloca em um sistema prisional que é controlado por criminosos. Criaremos marginais. Apenas cerca de 1% dos crimes cometidos por menores são hediondos. Quanto mais se encarcera, mais aumenta a violência, isso já é comprovado pelo sistema prisional adulto.”

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou nota, assinada pelo representante do órgão no Brasil, Gary Stahl, em que se declara contra a redução. No documento, Stahl classificou como "pertubardor" o fato de que o Brasil "esteja tão preocupado em priorizar a discussão sobre punição de adolescentes" e não em "impedir assassinatos brutais de jovens cometidos todos os dias".

De acordo com a nota do Unicef, o Brasil está diante "de um grave problema social" que poderá ser agravado "se tratado exclusivamente como caso de polícia". Stahl afirmou também que a redução, "além de não resolver o problema da violência", penalizará uma população de adolescentes "a partir de pressupostos equivocados".

Cláusula pétrea?

A admissibilidade da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos encontra resistência entre juristas. Para alguns eles, a maioridade penal é uma cláusula pétrea da Constituição. Na opinião do professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio, Thiago Bottino, apesar de não constar no Artigo 5º da Constituição Federal, a definição de maioridade é imutável.

“A questão a menoridade está no Artigo 228, mas eu entendo que isso não pode ser alterado. A gente tem na Constituição cláusulas pétreas, que são determinados direitos e garantias que não podem ser modificados. As cláusulas pétreas não estão apenas no Artigo 5º, existem outras com a mesma configuração. Entretanto, eu sei que isso é discutível, porque não é uma coisa expressa, é uma forma de ler a Constituição”, explicou.

A doutora em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e professora de direito penal, Soraia da Rosa Mendes, segue o mesmo raciocínio. Além de frisar que existem cláusulas pétreas em outros artigos, ela lembra que o Brasil firmou compromissos com a comunidade internacional para proteger crianças e adolescentes.

“O Brasil é signatário de tratados internacionais de proteção a crianças e adolescentes. O país não pode retroceder nesses tratados internacionais. Esse direito fundamental é a maioridade aos 18, levando em consideração todo o complexo de normas que constam no nosso ordenamento jurídico”, analisou.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) divulgou nota no mesmo tom. No entendimento do presidente da AMB, João Ricardo Costa, a redução é um retrocesso. Segundo ele, o Artigo 288 da Constituição Federal, que torna penalmente inimputáveis menores de 18 anos, não pode ser alterado, por tratar-se de cláusula pétrea.

O ministro Marco Aurélio Mello discorda. Ele comparou o caso a um outro, da chamada PEC da Bengala, que eleva de 70 para 75 anos a idade máxima de que magistrados podem ficar no cargo antes de se aposentar compulsoriamente. Como o ministro é favorável à elevação, também disse que, em tese, a redução poderia ser válida. "Eu não vejo como cláusula pétrea, se não a expulsão aos 70 anos também se consubstanciaria em cláusula pétrea", disse.

Impunidade

Pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha mostra que 93% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal para 16 anos. Querem que o adolescente capaz de cometer atos hediondos seja tratado como adulto.

Será que o rapaz de 17 anos, 11 meses e 27 dias que covardemente atirou na cabeça do universitário Victor Hugo Deppman (veja o vídeo abaixo), de 19 anos, depois de lhe roubar o celular, não sabia das consequências de seus atos? Victor foi morto por um criminoso que já tinha passagem pela Fundação Casa, onde havia cumprido apenas 45 dias por outro roubo. Estava na rua, armado, porque não pode receber uma pena maior.

No Senado, uma emenda constitucional de Aloysio Nunes (PSDB-SP) também propõe reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. A aplicação da medida seria restrita aos crimes hediondos, não às infrações médias ou leves (furtos e roubo simples). Se medidas como essa estivessem em vigor, o universitário Victor não teria cruzado com o jovem criminoso que o matou na porta de casa.

Ainda segundo a proposta apreciada pelos deputados, quando for diagnosticada doença mental, o juiz poderia indicar tratamento ambulatorial ou internação compulsória por prazo indeterminado, com reavaliações a cada seis meses. A medida tornaria legal, por exemplo, a situação de Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha. Ele vive em um limbo jurídico desde 2003, quando liderou o grupo responsável por assassinar o casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, em São Paulo – a adolescente Liana também foi vítima de estupro coletivo, num crime que horrorizou o País. Na época, Champinha tinha 16 anos, a mesma idade da estudante que matou. Há dez anos, o criminoso está internado na Unidade Experimental de Saúde

Alvo de uma investigação do Ministério Público Federal por oferecer tratamento “medieval” aos detentos o equipamento do governo estadual teria o objetivo de tratar jovens de alta periculosidade com graves patologias, mas não chega nem perto disso. Esse é um problema a ser enfrentado. Especialistas em educação asseguram que não adianta reduzir a maioridade penal nem aumentar as penas se o Estado não for capaz de oferecer condições para que os jovens tenham um futuro digno. “Se um jovem falhou, a sociedade, a família e a escola devem ter falhado também”, diz Cosete Ramos, doutora em educação pela Flórida State University.

Organizações de defesa dos direitos humanos e organismos internacionais de atenção às crianças entendem que a diminuição da idade penal não resolve o problema da violência juvenil. Argumentam que os adolescentes ainda não estão completamente formados e que as mudanças devem ocorrer nas razões sociais que levam ao crime. “Reduzir a maioridade penal não resolve. Ou agimos nas causas da violência ou daqui a pouco veremos o tráfico estar recrutando crianças com 14, 12 ou 10 anos”, diz Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República.

O promotor Thales Cezar de Oliveira, da Vara da Infância e Juventude de São Paulo, discorda. Segundo ele, os jovens de 16 anos têm total consciência dos delitos que cometem. “Eles sabem que nada vai acontecer se matarem e roubarem, a ficha estará limpa aos 18 anos, quando saírem da Fundação Casa”, diz Oliveira. O promotor acrescenta que, quando pegos, a primeira coisa dita pelos infratores à polícia é: ‘sou de menor’. “É inadmissível a quantidade de pessoas honestas e famílias inteiras sendo destruídas, enquanto apenas discutimos a redução da maioridade penal.”

O que diz a ciência

O mesmo Estado que patina ao definir uma nova legislação capaz de punir menores que cometam crimes hediondos vem, ao longo dos anos, assegurando novos direitos aos jovens de 16 anos. A Justiça Eleitoral, por exemplo, permite a obtenção do título de eleitor e a participação nas urnas já nessa idade. Ou seja, o Estado entende que o jovem de 16 anos é capaz de formar consciência política e votar para presidente.

No Brasil, eles também podem trabalhar com carteira registrada e, com autorização dos pais, casar e ser emancipados. Internacionalmente não há um consenso jurídico ou científico que determine em qual idade uma pessoa deixa de ser criança e está apta a responder como um ser maduro. Na Inglaterra é possível prender um infrator de dez anos. Nos Estados Unidos, é permitido tirar licença de motorista aos 16, mas fica proibido de consumir bebidas alcoólicas antes dos 21.

Com tantas incertezas, cabe à neurociência dar algumas pistas sobre comportamentos característicos dessa faixa etária, como a impulsividade. Diversas pesquisas apontam que o cérebro demora até os 25 anos para se formar por completo. O córtex pré-frontal é a última parte desse processo, mas responde por toda a nossa cognição: tomada de decisão, capacidade de avaliar riscos, planejamento de estratégias, etc. Só ao longo do desenvolvimento biológico ele aprende até onde é possível empurrar limites e ignorar regras. Por isso, um adolescente tende a fazer escolhas baseado mais na intensidade das emoções do que em análises racionais.

“Eles são mais reativos, levam menos em conta as consequências de seus atos”, afirma o neurocientista André Frazão Helene, do Laboratório de Ciências da Cognição da Universidade de São Paulo (USP). “Mas, aos 16 anos, o cérebro já sabe diferenciar o certo do errado, tanto no sentido do que é moral quanto legalmente aceito.”

O amadurecimento biológico, porém, varia de pessoa para pessoa – assim como algumas meninas menstruam aos 10 e outras, aos 15. O córtex pré-frontal também está ligado às relações interpessoais, à capacidade de se colocar no lugar do outro. Seja para compreender uma opinião divergente seja para se identificar com a dor alheia. Para a psicóloga Maria Alice Fontes, especialista em neuropsicologia, o desenvolvimento cerebral explica certas atitudes da puberdade, mas não justifica todas elas. “Não dá para usar o cérebro como desculpa para dizer que o jovem nesta idade não tem nenhum discernimento e, portanto, não pode assumir as responsabilidades pelo que faz”, afirma.


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