20/04/2024 - Edição 540

Especial

Estatuto da família

Publicado em 26/06/2015 12:00 -

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O projeto de lei do Estatuto da Família (PL 6.583, de 2013), do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), em discussão no Congresso, define família “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher por meio de casamento ou união estável, ou ainda formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Além disso, propõe modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente para exigir que as pessoas que queiram adotar um filho sejam, necessariamente, casadas civilmente ou que mantenham uma união estável. O projeto foi desenterrado em 2014 pelo presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que desde então vem tentando acelerar o processo de aprovação do estatuto.

Nesta semana, com a participação maciça de integrantes das bancadas evangélica e católica, a comissão especial que trata do projeto na Câmara realizou uma audiência pública marcada por divergências entre os debatedores. O projeto foi criticado pelo ativista e doutor em educação Toni Reis, que a considera discriminatória em relação a outras formas de arranjo familiar. Segundo ele, caso a iniciativa seja aprovada, 25% da população brasileira estará fora do conceito de família.

“Não queremos um estatuto monolítico, temos vários tipos de família e seria muito importante que o estatuto contemplasse os vários tipos. Não queremos ser discriminados”, ponderou Reis, que há 25 anos é casado com David Harrad. Em 2011, Reis ficou conhecido após uma decisão da ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), reconhecendo o direito à adoção por ele e seu companheiro. Atualmente, o casal tem três filhos. O mais velho, com 14 anos, chegou a passar por sete abrigos.

“Temos a família tradicional, a família ampliada, as famílias recompostas (frutos de vários casamentos), famílias monoparentais, adotivas, homoparentais, etc. Nós defendemos as famílias, o que nos separa é um S. Colocar a família como uma única constante no tempo pode ser mais um prejulgamento que a realidade”, disse Reis, que defendeu ainda o estado laico. “No estado laico as religiões não dizem o que é lei, e o Estado não diz o que é pecado”, segundo ele.

Escalado para defender a proposta, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, criticou o que chamou de "ativismo gay". Ele criticou o STF ao abordar a decisão concedida a Reis e seu companheiro. “Não vem aqui com citações de STF, que me parece que STF não legisla coisa nenhuma. Isso é uma afronta ao Parlamento”, disse.

Os deputados – em uma audiência marcada pela presença forte de evangélicos e católicos, que se revezavam para debater na audiência – também apoiavam o projeto. Para o deputado Marcelo Aguiar (DEM-SP), a adoção por casais do mesmo sexo não seria boa para a criança. “Se a família tem dificuldade de criar uma criança no formato natural, que já é difícil, imagina as condições para criar crianças nesse formato (homoafetivo)”, duvidou.

“Os ativistas LGBT se apegam apenas ao artigo 2, que diz que a família é formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Este texto nada mais é que o artigo 226 da Constituição. Ninguém diz que a Constituição é preconceituosa. Não adianta tentar me rotular como fundamentalista ou homofóbico. Faço a minha defesa dentro dos preceitos cristãos em que acredito, mas de acordo com o que diz a Constituição”, afirma o autor do projeto, deputado Anderson Ferreira.

Única a se posicionar contra a iniciativa durante o debate, a deputada Erika Kokay (PT-DF) disse que ao não considerar restringir o conceito de família, o projeto “joga outros arranjos afetivos num processo de discriminação que é extremamente doído. Existem vários tipos de família, e todas as famílias precisam ser protegidas”, resumiu.

“As famílias foram se transformando ao longo do tempo, por liberdade, vontade e até pela imposição da fatalidade, quando um ou mais dos seus membros morrem e aquela família se reorganiza com base naquilo que realmente fundamenta o grupo familiar – aquela palavra de quatro letras que desapareceu do vocabulário dos defensores do Estatuto da Família – o amor.  O que digo aqui não é exagero. Quem abrir o Estatuto da Família, de autoria de um membro da bancada fundamentalista, e buscar a palavra ‘amor’, ou mesmo ‘cuidado’, não irá encontrar”, afirma o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ).

De fato, o projeto é polêmico. Movimentos LGBT e defensores de direitos humanos têm feito campanhas contra a aprovação do estatuto com as hashtags #emdefesadetodasasfamílias e #nossafamíliaexiste, mas, em uma enquete no site da Câmara, 53% dos participantes votaram a favor do projeto.

O resultado da consulta pública e a multiplicação das propostas conservadoras representam o avanço da chamada bancada evangélica no Congresso. Hoje, há 78 parlamentares da ala evangélica, oito a mais do que em 2010. Sem contar a presidência da Câmara, assumida por Eduardo Cunha.

Apesar de o Estado brasileiro ser laico – imparcial em assuntos religiosos e sem a interferência da religião em assuntos sociopolíticos –, os membros da bancada evangélica são conhecidos por interpretar a Constituição com um viés influenciado por suas crenças.

Diferentes arranjos

Nos últimos anos, os direitos LGBT também têm ganhado força no Brasil, com autorizações de adoção e união estável, além da popularização na mídia, com episódios como o do beijo gay na novela Babilônia (veja a linha do tempo abaixo). É também um reflexo do aumento das relações abertamente homoafetivas. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, há ao menos 60 mil casais homossexuais brasileiros. Para cada mil casamentos heterosse­xuais, há três uniões civis entre pessoas do mesmo sexo – para adotar, o casal precisa de algum tipo de contrato de união.

A família brasileira passou por mudanças profundas nas últimas décadas, e o núcleo formado por um casal e filhos já não é mais a regra. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, esse tipo de arranjo corresponde hoje a cerca de 50% das famílias brasileiras, uma taxa bem inferior à dos anos 1980, quando correspondia a 66%. Vários fatores estão envolvidos nessa redução, como a diminuição do percentual de casais com filhos (de 57,6% para 49,8% entre 1995 e 2005, segundo o IBGE) e o aumento do número de divórcios e separações e dos chamados arranjos monoparentais, ou seja, lares formados apenas por mães ou pais e seus filhos.

“Hoje vemos novos arranjos, gays e lésbicas que adotam ou pessoas solteiras que adotam ou criam uma criança da família, porque a família vai mudando. Tem gente que morou um tempo com os pais, um tempo com a avó, tiveram agregados morando junto, um tio, um parente, tudo isso foi alterando os arranjos familiares”, diz Heloísa Buarque de Almeida, antropóloga da Universidade de São Paulo (USP) especializada em gênero e família. Segundo Heloísa, todos que ajudam na criação das crianças podem ser considerados parte do grupo. “Nas classes populares as crianças circulam; na classe média você tem a empregada doméstica, a avó que busca e leva, uma rede de pa­rentes que não moram junto, mas fazem parte do apoio.”

Para a antropóloga, a ideia de que família deve ser formada por um pai, uma mãe e filhos é um ideal de sociedades urbanas do século 20 que se tornou senso comum, mas não necessariamente representa a realidade, e sim um modo de consumo. “É um ideal de mercado, quando os arquitetos desenham modelos de casas para as pessoas morarem, é o que eles imaginam. E está em uma estrutura social múltipla: na religião, no atendimento médico (no hospital sempre perguntam quem é o pai e quem é a mãe), na mídia, na novela, na propaganda, inclusive no poder, é o ideal de um juiz por exemplo”, diz Heloísa.

Em uma palestra no TED, o premiado escritor americano Andrew Solomon falou sobre amor e aceitação, contando um pouco de sua história pessoal – ele vive com o marido e um filho biológico gerado em parceria com uma amiga lésbica. Solomon passou dez anos entrevistando pais que lidam com filhos excepcionais para escrever o livro Longe da árvore: pais, filhos e busca da identidade (Companhia das Letras), e concluiu que são as diferenças e a negociação das diferenças que unem as pessoas.

“Há gente que pensa que a existência da minha família de alguma forma denigre, enfraquece ou prejudica suas famílias. E há gente que pensa que famílias como a minha não deveriam existir. Eu não aceito modelos subtrativos de amor, apenas modelos aditivos. Acredito que, assim como precisamos de diversidade de espécies para garantir que o planeta continue a existir, também precisamos dessa diversidade de afeto e de família para reforçar a ecosfera de bondade”, afirma.

Ditadura da minoria?

O deputado federal Ronaldo Fonseca (PROS-DF) tem recorrido a um argumento polêmico para defender o Estatuto da Família. Na avaliação do parlamentar, a sociedade não pode aceitar a “ditadura de uma minoria”, referindo-se aos homossexuais. Segundo ele, a população está “clamando” por participar da discussão sobre o tema. “Nós vivemos em sociedade, e ela precisa concordar com os atos do cidadão. Não podemos aceitar a ditadura de uma minoria”, disse Fonseca.

O deputado Jean Wyllys, por sua vez, recrimina o termo usado pelo colega. “Recorrer à expressão ‘ditadura de minoria’ é jogar sujo. Essas pessoas (os homossexuais) não são uma ditadura e têm vínculos de amor, como os heterossexuais. Elas não querem impor conceitos nem acabar com a família tradicional. Querem ser contempladas pela lei porque existem de fato e não vão deixar de existir por vontade de fundamentalistas religiosos do Congresso”.

O parlamentar do PSOL disse ainda que os diferentes arranjos familiares, entre pais e mães solteiros, divorciados e casais sem filhos, não causam prejuízo algum à sociedade. “Houve um tempo em que diziam que o divórcio estragaria a família e não estragou. E, pelo que sei, o deputado Fonseca é casado pela segunda vez”, argumentou.

Fonseca nega ser fundamentalista religioso, mas se define como “conservador”. Para ele, a família natural é formada por “papai homem e mamãe mulher”. Segundo o deputado, embora o STF tenha reconhecido a união homoafetiva, o Congresso é o responsável pelas leis do país: “O STF não tem a palavra final. Não é rebeldia em relação ao Supremo, quem legisla é o Congresso”.

Pelo mundo

Enquanto no Brasil setores conservadores tentam restringir direitos da comunidade LGBT, na maior parte do mundo civilizado a tendência é o oposto. Nesta sexta-feira (26), uma votação histórica da Suprema Corte dos EUA tornou o casamento entre pessoas do mesmo sexo legal em todos os estados do país.

A Justiça definiu como inconstitucional toda e qualquer tentativa de estados conservadores de banir a união oficial entre gays. Trata-se da mais significativa mudança de leis sobre matrimônio desde que o supremo acabou com as barreiras aos casamentos entre pessoas de raças diferentes, há 50 anos.

"Na formação de uma união conjugal, duas pessoas se tornam algo maior do que eram antes", escreveu o juiz associado da Suprema Corte Anthony Kennedy na revisão do tribunal. "Seria entender mal estes homens e estas mulheres dizer que eles desrespeitam a ideia de casamento. (…) Sua esperança é não serem condenados a viver na solidão, excluídos de uma das mais antigas instituições da civilização. Eles pedem igual dignidade aos olhos do lei. A Constituição confere-lhes esse direito."

Cinco dos nove membros da corte americana determinaram que o direito de se casar é garantido pela 14ª emenda da constituição do país, que engloba todos os cidadãos sem distinção.

Um total de 36 estados americanos já permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que significa 70% da população americana. A nova decisão significa que os outros 14 estados não podem mais criar obstáculos legais para essas uniões. Após a votação desta sexta, o matrimônio entre gays se torna legal também nos estados de Alabama, Arkansas, Georgia, Kentucky, Louisiana, Michigan, Mississippi, Missouri, Nebraska, Dakota do Norte, Ohio, Dakota do Sul, Tennessee e Texas.

"Hoje foi um grande passo na nossa marcha rumo à igualdade. Casais gays agora tem o direito de se casar, assim como qualquer pessoa #Amorvence", escreveu Barack Obama no Twitter.

A decisão acompanha uma mudança da opinião pública ao longo dos últimos 20 anos. Em 1996, uma pesquisa Gallup dava conta de que somente 27% dos americanos apoiavam o casamento gay. A mesma consulta feita no mês passado, entretanto, mostrou que 60% do país aprova o reconhecimento legal do amor entre pessoas do mesmo sexo.

Casamentos Homoafetivos

A Dinamarca foi o país pioneiro a aprovar a união estável entre pessoas do mesmo sexo, em 1989. Outros países, gradativamente, seguiram seu exemplo, como a África do Sul, Argentina, Brasil, Canadá, Espanha, França, Holanda, Islândia, México, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Suécia e Uruguai, além de alguns estados estadunidenses.

No Brasil, a união estável homoafetiva foi regulamentada pelo STF em maio de 2011, no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 427710 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 13211, conhecidas como ADI 4277 e ADPF 132. A partir de então, as uniões entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser juridicamente reconhecidas no Brasil, equiparando-se às uniões estáveis entre homens e mulheres.

Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 175, que determina a todos os Cartórios de Títulos e Documentos no território brasileiro a habilitarem ou celebrarem casamento civil ou, até mesmo, converterem união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo, removendo assim, possíveis obstáculos administrativos à efetivação de direitos.

De acordo com as Estatísticas do Registro Civil 2013, divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil, naquele ano, tinha mais de 60 mil casais homoafetivos autodeclarados no Censo. Dentre os 3 701 registros de casamentos entre cônjuges de mesmo sexo, o que representa 0,35% do total de casamentos no país, verificou-se que 52% eram entre cônjuges femininos e 48% entre cônjuges masculinos. A região Sudeste, com 65,1%, concentrava o maior percentual de casamentos homoafetivos, seguido pelas regiões Sul (com 14,2%), Nordeste (13,4%), Centro-Oeste (5,8%) e Norte (1,5%). Segundo a distribuição percentual regional, no Estado de São Paulo, se evidenciou a maior concentração percentual de casamentos homoafetivos, registrando 80,8% do total.


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