19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Nosso futuro depende dos desobedientes

Publicado em 11/06/2015 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A construção permanente da cidadania é o trabalho silencioso e diário da multidão nas metrópoles, afirma o advogado e cientista social Adriano Pilatti. Os desafios de ser livre em um espaço-tempo onde as subjetividades parecem ser absorvidas pela estética capitalista dizem respeito às lutas pelo bem “comum”, ou seja, aqueles bens que não pertencem nem ao Estado nem à iniciativa privada. Nesse sentido, a busca pela liberdade pressupõe encarar criticamente o nosso trabalho gratuito para as instituições que tornam o comum um bem privado.  Na opinião de Pilatti, o Estado e sua “ordem pública” tem sido mais garantidor dos interesses privados que do bem-estar social.

Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), com Pós-Doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte — Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 — Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).

 

Como se caracterizam as políticas da Multidão?

Podemos entender multidão como um conceito de classe, a classe trabalhadora de nosso tempo, encarnada na multiplicidade de singularidades que cooperam, produzem, criam, reivindicam uma diversidade de formas de ser, estar, sentir e pensar. E buscam uma vida boa sem incorrer na exploração e no comando do trabalho alheio, nem na subjugação das subjetividades alheias. Se a entendermos assim, como a classe dominada, subordinada e explorada pela classe dominante, então as políticas da multidão são as lutas pela liberação, são as lutas por direitos.

Lutas pelo direito de afirmar suas subjetividades, seja no sentido de lutar pelo direito de ser quem se é, seja no sentido de lutar pelo direito de tornar-se outro ou outra. Lutas pelo direito de trabalhar, produzir e criar, livres de qualquer forma de comando ou exploração.

Lutas pelo direito aos bens da vida, pela fruição das riquezas ditas naturais e das riquezas socialmente construídas. Lutas pelo direito aos serviços básicos de educação, saúde, transporte, lazer, moradia, saneamento, energia; pelo direito à água, ao ar limpo, às paisagens, à arte, à cultura, ao esporte e ao pensamento.

Lutas pelos chamados bens comuns, enfim: pelos bens que não pertencem nem podem pertencer ao Estado, nem às empresas, nem a quaisquer sujeitos privados isoladamente, porque são herdados pela espécie humana ou porque são produzidos em comum, e de sua fruição depende a possibilidade de viver dignamente. Para a multidão, assim como para os indígenas do poema de Gonçalves Dias, viver é lutar, e suas políticas são lutas por direitos fundamentais.

De que modo a Metrópole se configura em um espaço genuíno da Multidão?

Comecemos acacianamente: “cidadão” é um termo que vem de “civitas”, cidade; “política” é um termo que vem de “polis”, cidade. As cidades são, desde sempre, o cenário próprio da vida política, do exercício da cidadania, das lutas por outros ordenamentos e instituições possíveis. De Alexander Hamilton a Karl Marx e Alexis de Tocqueville, independentemente das valorações, sempre se compreendeu a tendência ao isolamento e ao conservadorismo que é inerente à vida camponesa no regime da propriedade privada, em contraste com a tendência à comunicação, à cooperação, à agitação, à organização e à mobilização que é própria da vida urbana, com sua concentração territorial de trabalhadores.

As grandes e mais positivas mudanças são feitas por quem ousa desobedecer. Nosso futuro depende dos desobedientes.

Em nosso tempo, as metrópoles são, por assim dizer, as grandes unidades produtivas, o núcleo central de toda a economia contemporânea. Ocupam hoje, de certo modo, o próprio lugar da fábrica na antiga economia fordista, em sua centralidade para os processos produtivos. Um índice disso são as “externalidades” de que falam os economistas, o cenário de riqueza natural ou socialmente produzida que chega a determinar as escolhas de localização dos empreendimentos privados: nível de educação, infraestrutura de transportes, abastecimento etc.

O trabalho invade hoje todo o tempo que vivemos e todos os espaços que percorremos, estamos a trabalhar quando e onde quer que estejamos, o trabalho nos acompanha. Ou estamos trabalhando ao menos parcialmente em nosso próprio proveito, quando somos de algum modo remunerados por parte desse esforço, ou estamos trabalhando em proveito alheio: trabalhamos de graça para o dono do banco ou do supermercado quando eles se apropriam de nosso tempo e esforço nas filas, poupando-se de contratar mais trabalhadores; trabalhamos de graça para os concessionários de transporte público quando esperamos pela condução ou nos esforçamos para nos manter à tona e não surtar nas conduções superlotadas, poupando-os de investir em estrutura e pessoal; trabalhamos até quando assistimos a anúncios comerciais na TV, garantindo o lucro da emissora.

Isso significa que a capacidade de comando e exploração do trabalho vivo pelo trabalho morto, também conhecido como Capital, transbordou os limites da fábrica ou empresa, fugiu para fora delas e se entranhou em todos os espaços da cidade. E onde estão o comando e a exploração estão também a resistência e o desejo de liberação dos que vivem. É nessa onipresença da resistência e do desejo, correspondente à onipresença do comando e da exploração, que está potencialmente dada a possibilidade de mobilização e organização da multiplicidade de singularidades que constituem a multidão. Se a metrópole dispersa, despersonaliza e isola, ela também permite os encontros, a comunicação, as trocas, a cooperação e a luta.

Quais são os limites da construção de instituições e práticas alternativas frente às categorias da modernidade, como, por exemplo, a democracia representativa?

A rigor esses limites estão por ser testados. Para onde quer que se olhe, a impressão é que as capacidades multitudinárias de organização e mobilização de sua potência constituinte ainda estão aquém do que os sistemas estabelecidos parecem dispostos a consentir. É preciso avançar até ao menos esse ponto, com a construção de propostas exequíveis de deliberação alternativa. A crise da representação política é global, em todos os sistemas ditos democráticos o poder popular foi efetivamente usurpado pelo poder econômico. A representação que se tem é a representação do dinheiro, do grande capital, que financia partidos, candidatos, campanhas, eleições, imprensa e linhas editoriais.

Miseria comune mezzo gaudio”, dizem os italianos: estamos todos enredados numa grande farsa, pela representação teatral de uma falsa representação social, “everywhere”, o que não deixa de ser um amargo consolo. Daí o clamor, sobretudo nos mais jovens, especialmente nos jovens metropolitanos de todo o mundo, pela construção de formas de democracia direta, de ampliação dos foros de participação popular efetiva nos processos decisórios, pela ampliação do universo de questões a serem decididas participativamente.

As grandes e mais positivas mudanças são feitas por quem ousa desobedecer. Nosso futuro depende dos desobedientes.

Nesse sentido, o finado Decreto nº 8.243/14, editado pela presidente da República, era um bom começo de conversa, tão mal compreendido quanto desconhecido. Mas, ao que tudo indica, nem mesmo a autora o levava muito a sério, parece que a ideia foi mesmo do ex-ministro Gilberto Carvalho e foi adotada preventivamente para reduzir insatisfações que pudessem comprometer a consumação do meganegócio da “Copa das Tropas”.

Ao mesmo tempo, os diversos movimentos por meio dos quais a multidão se expressa entre nós não se capacitaram do valor intrínseco daquela proposta e abdicaram de tomá-la para si, exigindo sua implementação. Um erro, que só facilitou seu sepultamento pelo atual Congresso, um dos mais negocistas, antipluralistas e obscurantistas que já tivemos, eleito pelos senhores empresariais e neopentecostais do dinheiro para representá-los. E o governo não parece ter feito qualquer esforço perceptível para evitar que a proposta fosse sepultada. O que, paradoxalmente, talvez seja um índice da positividade dos mecanismos participativos ali previstos. Nunca será tarde para revisitar seu conteúdo, e eventualmente retomá-lo.

Um outro obstáculo mastodôntico às mobilizações autenticamente multitudinárias é o sequestro da informação e do debate pelo curral da comunicação social, os cabrestos radiofônicos e televisivos controlados pelo Capital e pelas seitas neopentecostais, que se dedicam a propagar discursos obscurantistas e elitistas, discursos de ódio contra o que quer que, vindo “de baixo”, represente um desvio em relação ao modelo patológico de normalidade que veiculam. Tenho insistido há muito tempo neste ponto: uma reforma política autenticamente democrática deve começar por aí, pelo controle social dos meios de comunicação, pela quebra do monopólio da informação e da opinião, que faz da decantada liberdade de expressão um privilégio de algumas famílias e quadrilhas que odeiam o povo, os pobres, e temem loucamente sua capacidade de organização e mobilização autônomas. Penso que essas duas questões, criação de mecanismos de participação direta e democratização dos meios de comunicação, seriam um bom começo na tentativa de pensar uma outra “polis” possível entre nós.

De que maneira se opõem a Multidão e o Estado Soberano?

Em geral e salvo situações e momentos excepcionais, o Estado, concebido soberanamente à imagem e semelhança da onipotência, onisciência e onipresença divinas, tem sido um avalista fiel da relação de capital, do comando e da exploração capitalistas. “A polícia existe para proteger os crimes dos capitalistas”, diz o personagem Abelardo I, o Rei da Vela de Oswald de Andrade. Secularmente, o Estado e sua “ordem pública” tem sido uma garantia de poderosos interesses privados contra os interesses comuns dos trabalhadores. Isso é visível, por exemplo, na atuação conjugada das forças de repressão federal, estadual e municipal no Rio para garantir os meganegócios que favorecem os grandes grupos empresariais e/ou criminosos em seu esforço de apropriação privada de bens públicos, de predação territorial às custas das populações pobres e do meio ambiente, de sucateamento dos serviços de bem-estar e de agigantamento das estruturas de repressão. Talvez por isso a intensidade e a duração das contestações no Rio tenham sido tão grandes em 2013; a multidão jovem intuía a dimensão do saque, da desfaçatez e do desastre.

O Estado e seus soldados – fardados, engravatados e togados – tem garantido, como regra, os interesses de poucos em detrimento de muitos sob o manto virginal do idílico Estado Democrático de Direito e equivalentes, com a repressão e o terror atuando nas franjas, ou ostensivamente quando necessário. Nesse sentido, o Rio foi e tem sido uma espécie de laboratório macabro de compatibilização da repressão social, política e econômica com as formas do Estado de Direito. E isso com a cumplicidade da mídia, do próprio governo federal e de seu suposto partido, do Judiciário e do Ministério Público.

O kafkiano “processo dos 23”, estendido há um ano para servir de advertência e meio de dissuasão, é um eloquente exemplo disso, e as receitas produzidas nesse laboratório dantesco estão sendo aplicadas em outros estados. O Paraná é hoje um triste exemplo de repetição dessas práticas infames contra a multidão e a democracia.

As políticas da multidão são as lutas pela liberação, são as lutas por direitos. Lutas pelo direito de afirmar suas subjetividades, seja no sentido de lutar pelo direito de ser quem se é, seja no sentido de lutar pelo direito de tornar-se outro ou outra.

Sem dúvida houve alguns períodos excepcionais em que o Estado brasileiro abriu-se ao clamor dos pobres, e que coincidem, no âmbito federal, com alguns mandatos presidenciais: os governos Jango e Lula, e o governo constitucional de Getúlio. E em alguns governos estaduais, como os de Arraes, Brizola, Montoro, Requião.

Sempre parcialmente, sempre de forma insuficiente. Como regra, a divinal soberania do Estado, aqui e alhures, tem sido apenas a sombra política da hegemonia da ordem dominante. Não é de estranhar que boa parte dos movimentos desobedientes busca substituir esse Estado por outra coisa, menos soberana e mais democrática.

De que ordem são as novas e múltiplas formas de produção cooperativa? Como elas tensionam o capitalismo e de que forma produzem subjetividades alinhadas à perspectiva da Metrópole?

Penso que, para além dos movimentos tradicionais que não se deixaram domesticar e, por assim dizer, estatizar nos últimos anos, devemos prestar muita atenção nos novos movimentos e coletivos que têm surgido nesta década, e que se expressaram e afirmaram de modo potente no ciclo de lutas de 2013. Os movimentos pelo passe livre, os coletivos de mídia livre, os movimentos das chamadas minorias de gênero, religiosas etc., as experiências de produção cooperativa das mais diversas ordens, a exemplo das chamadas ecovilas, e os experimentos de ocupação produtiva de espaços degradados ou simbólicos. Apesar de toda repressão e da aparente invisibilidade, temos, por exemplo, hoje no Rio dezenas de coletivos se organizando e produzindo no sentido de fruir e compartilhar bens comuns, sobretudo na Zona Norte, e que estão fora dos radares da atenção pública. Aí estão os esboços de uma outra metrópole possível, de uma outra democracia, de outros modos de produção de subjetividade nas lutas.

Que alternativas se desdobram no horizonte de novas políticas baseadas na liberação dos sujeitos e como o Podemos e o Syriza atualizam estas possibilidades?

Penso que abordei panoramicamente algumas dessas alternativas nas respostas anteriores, é por aí. As experiências em curso na Espanha, especialmente na Catalunha, na Grécia, na Turquia, com os movimentos que emergiram em 2013 e com os curdos, tudo isso aponta para uma possível virada de página.

No Brasil, os levantes multitudinários de 2013 não se traduziram até agora na constituição de processos equivalentes em força, adesão, persistência e extensão. Por uma série de razões, entre elas a repressão estatal e midiática, de um lado, e a vastidão territorial com as distintas temporalidades políticas regionais, de outro. São alguns dos fatores que dificultam a construção de projetos autônomos duradouros em nível nacional entre nós.

Creio que devemos acompanhar e estudar essas experiências externas, refletir sobre elas, buscar ali inspiração, mas não modelo. Embora a lógica das metrópoles e do Capital sejam as mesmas em todo lugar, cada cenário tem as suas especificidades, e as nossas são muitas. O Brasil não é a Espanha, o Rio não é Barcelona, São Paulo não é Istambul nem Atenas, e o chamado Brasil profundo é gigantesco em comparação com nossos horizontes metropolitanos. Precisamos trabalhar com “um olho no gato e outro no peixe”, identificar os elementos comuns às lutas planetárias sem descurarmos da singularidade brasileira e das nossas múltiplas singularidades regionais.

Quais são os desafios para manter a liberação da multiplicidade das singularidades a partir da institucionalização de novas políticas?

A calmaria das ruas é apenas aparente entre nós. Como formiguinhas que não abrem mão de ser cigarras, há uma multidão jovem a desenvolver múltiplas e fecundas experiências aqui e agora, na surdina, mas com obstinação e audácia. Devemos tentar compreender essas dinâmicas sem a pretensão vanguardista e centralista de organizá-las de fora para dentro, sem permitir que sejam capturadas ou organizadas pelos novos disfarces aparentemente autônomos que encobrem velhos interesses de aprovação privada ou partidária. Devemos respeitá-los em suas singularidades e tentar promover a cooperação e o diálogo entre eles.

Trabalhamos de graça para o dono do banco ou do supermercado quando eles se apropriam de nosso tempo e esforço nas filas, trabalhamos de graça para os concessionários de transporte público quando esperamos pela condução. Trabalhamos até quando assistimos a anúncios comerciais na TV, garantindo o lucro da emissora.

Deseja acrescentar algo?

Há uma horda de farsantes a colonizar a representação. Há uma tentativa de construir uma hegemonia conservadora e obscurantista. Há uma perplexidade evidente nas velhas esquerdas, da qual não estão imunes as novas.

Há jovens pobres sendo mortos como moscas pelo Estado. Há um processo midiático de imbecilização e embrutecimento dos pobres. Há terreiros sendo destruídos por fanáticos neopentecostais. Há uma inacreditável predação privada de recursos naturais protegida e subsidiada pelo Estado.

Há mulheres e homossexuais sendo trucidados pela perversa agressividade dos trogloditas. Há jovens presos e submetidos a julgamento pelo Estado, e linchamento pela mídia, pura e simplesmente por exercerem o sagrado direito de lutar por um mundo melhor e uma vida menos ordinária.

Mas há também milhões de vidas que se recusam a morrer, milhões de pessoas que se recusam a viver palidamente. Há uma inegável beleza nos rostos, nos olhares e nas mãos dos que lutam por seus direitos. Há comoventes gestos de solidariedade individual e coletiva. Há quem não se ajoelhe, nem se conforme, nem se cale. Há uma incrível perseverança em transformar sonhos generosos em realidades efetivas.

As grandes e mais positivas mudanças são feitas por quem ousa desobedecer. Nosso futuro depende dos desobedientes.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *