19/04/2024 - Edição 540

Especial

Maldade infantojuvenil

Publicado em 04/06/2015 12:00 -

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Na última semana um caso chocante chamou a atenção dos moradores de Campo Grande (MS) e acabou ganhando repercussão nacional. Uma cadelinha teve as pernas quebradas e o couro arrancado à faca por jovens de um bairro da capital sul-mato-grossense. Este caso não é uma exceção. O índice de crueldade entre jovens e adolescentes é demonstrado com bastante incidência nos noticiários de todo mundo e não está, necessariamente, ligado a questões sociais, culturais, econômicas ou religiosas.

Mas, então, o que determina a maldade infanto-juvenil? Ao longo de muito tempo, se questionou se é possível que meninos e meninas nasçam malvados, ou se a crueldade seria invariavelmente fruto do ambiente ou da criação. O neurologista Ricardo de Oliveira Souza é categórico na resposta.

“É claro que é possível. Existem crianças que nascem más, que serão más, e não há nada que possamos fazer para modificar este comportamento. A sociedade é romântica e tem dificuldade em aceitar esta possibilidade. Mas, sinto muito, é assim que funciona”, afirma.

Para a psicanalista Júlia Bárány, a psicopatia surge desde que o bebê vem ao mundo, como é o caso daquelas crianças que desde muito cedo torturam animais e outras crianças. No geral, explica a especialista, os primeiros sinais se manifestam junto com o desenvolvimento da interação com as pessoas, e o alvo elementar de uma criança psicopata é quase sempre a própria mãe.

“Ela faz de tudo para irritar a mãe porque tem prazer com isso. Se a criança descobriu que a mãe fica perturbada com alguma coisa específica, ela vai fazer justamente aquilo para provocar. Ela tem todas as reações de uma criança birrenta, mas, neste caso, não é birra, e sim indício de que não há nenhuma conexão com o outro”, afirma.

Os psicopatas começam a dar sinais de sua personalidade problemática desde muito cedo, afirma a psiquiatra e escritora Ana Beatriz Barbosa Silva, autora do best-seller Mentes Perigosas – O Psicopata Mora ao Lado. Por isso, é preciso estar atento, pois nem toda travessura de criança é tão inocente assim.

Em seu livro, a psiquiatra relaciona a psicopatia com o bullying. Ela diz que crianças e adolescentes com perfil psicopático costumam intimidar os colegas. Quando isso ocorre no ambiente escolar, pode ser considerado bullying. É importante ressaltar, no entanto, que não é porque um jovem pratica bullying que ele é ou vai se tornar um psicopata.

Estima-se que haja 69 milhões de psicopatas no mundo, e que as taxas do transtorno variem entre 0,5% a 3%. De acordo com dados do estudo americano The Epidemiology of Antisocial Behavior in Childhood and Adolescence (A Epidemia do Comportamento Antissocial na Infância e na Adolescência, em tradução livre), de 1991, a psicopatia é mais comum em crianças do sexo masculino, independentemente da idade.

Seja em meninos ou meninas, o transtorno é diagnosticado por meio de critérios de uma lista com 15 possibilidades de comportamento, utilizada pelos psiquiatras. Mas, de acordo com Ricardo de Oliveira, mesmo antes do teste definitivo os médicos já acendem o sinal de alerta ao se deparar com dois sintomas muito característicos da psicopatia: a desconsideração por regras e hierarquia, e a agressão física contra os pares.

Sintomas

Crianças psicopatas não reagem a castigos, por exemplo. Cometem os erros, e, mesmo depois de receber uma punição por eles, acabam reincidindo ao repetir a mesma falta, como explica a psicanalista Júlia.

“Ela não aprende o que é certo ou errado. Pode até parar de fazer aquilo, mas só porque não quer o castigo de novo, e não porque entendeu a lição. São crianças que agridem os irmãos. Não têm compaixão, e podem machucar animais de maneira extrema, estraçalhando-os. A criança psicopática mente mesmo quando não precisa. Todas as crianças mentem para escapar da bronca, para não magoar os pais, mas as psicopáticas mentem porque isso faz elas se sentirem dominando o ambiente. Elas não têm nenhum problema em fazer alguma coisa errada, elas não se arrependem, isso não as afeta”, explica.

Além do comportamento dentro de casa, Júlia alerta que é preciso que os pais também fiquem atentos à conduta dos filhos na escola. “Uma criança psicopata pode causar muitos danos. Já ouvi casos extremos como o de uma que colocou uma bomba na secretaria para explodir os documentos, porque não queria que suas notas ruins fossem conhecidas pelos pais”.

Segundo o psiquiatra Fábio Barbirato, chefe do setor de Neuropsiquiatria da Infância e da Adolescência da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, algumas características são marcantes entre as crianças com transtorno de conduta.

“São crianças que têm comportamentos perversos, agressivos. São aquelas que, quando podem roubar um brinquedo de alguém, vão lá e roubam. Aquelas que batem ou mordem os amigos, mas que fazem de modo que ninguém veja. São crianças que manipulam os adultos. Normalmente, elas são muito sedutoras, conseguem transformar a situação a seu favor. São extremamente inteligentes”.

“Arte” e psicopatia

Claro que nem toda criança levada, seja no ambiente escolar ou em casa, é necessariamente uma criança psicopata, mas o inverso é certo: adultos psicopáticos foram, com toda certeza, garotas ou garotos complicados.

A única situação em que o diagnóstico da psicopatia infantil pode ser duvidoso é em casos de abuso ou maus tratos. Indícios da doença podem, na verdade, ser uma reprodução de experiências vividas previamente pela criança, conforme explica Júlia.

“A criança pode imitar o que fizeram com ela. O psiquiatra tem que ter uma atitude quase como de um detetive, vendo com cuidado o histórico da criança na família, se há casos de maldade camuflada gerando uma criança traumatizada e não psicótica. No entanto, quando os traços psicopáticos aparecem em um ambiente familiar saudável, é preciso ficar de olho”.

Estudos em gêmeos idênticos e não idênticos criados separadamente desde cedo apontam uma herança maior que 50%, o que significa que o transtorno pode ser transmitido entre parentes, de acordo com o que explica o neurologista Oliveira Souza. Se vasculhadas suas gerações anteriores, famílias com crianças psicopatas muito provavelmente apresentarão outros membros também afetados pela psicopatia, de pais e mães a até tios, avós e bisavós.

“A pessoa já nasce psicopata, ela não se torna um psicopata. Há um único caso na literatura médica de um paciente com as mesmas reações de psicopata, mas apenas após ter seu cérebro perfurado por um objeto afiado que atingiu uma região responsável pela conexão das emoções. No psicopata, esta área é inoperante porque o cérebro deles não processa as emoções”, afirma.

Oliveira Souza define o diagnóstico da psicopatia infantil como “maldito”, e emenda: “Não vejo como esta notícia não ser preocupante e mesmo desesperadora para a família”.

A agonia de ouvir as palavras de um médico em casos como esse se deve, principalmente, ao fato de que a psicopatia é uma doença sem cura. A psicanalista Júlia Bárány explica que, embora até hoje não se tenha encontrado um tratamento, existem medicamentos que ajudam no controle do transtorno.

“Dá para dar remédios que acalmam um pouco a excitabilidade do psicopata, porque ele é uma pessoa que está sempre em busca de emoções fortes que machuquem o outro. Como ele morre de tédio, tem uma vida muito maçante porque é um ser sem emoções, ele busca tê-las ao ver o outro sofrer”.

Educação mais rígida

Os especialistas avaliam que, além da ação farmacológica, a disciplina rígida também é de suma importância no controle do comportamento de crianças psicopatas, já que, segundo eles, são indivíduos incapazes de ser ensinados a se portar dentro do que é aceito pela sociedade, como reforça Júlia.

“Os pais têm que ficar alertas 24 horas por dia. Se perceberem que há algum perigo, têm que proteger todo mundo, inclusive eles mesmos. Infelizmente é uma vida que sai do curso normal de uma família”.

O psicólogo Christian Costa, do Centro de Estudos de Comportamento Criminal (Ceccrim) ressalta, no entanto, que o diagnóstico de psicopatia não pode ser feito em crianças, apenas depois dos 18 anos. “Antes dos 18 anos, apenas podemos dar diagnóstico de transtorno de conduta. Os pais que perceberem isso devem buscar ajuda de profissionais da área de psicologia, da psiquiatria e ficar atentos. E isso não significa que ela será uma psicopata! É importante que fique muito claro”.

A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva defende que o melhor, caso uma criança receba o diagnóstico de transtorno de conduta, é que haja um entendimento de pais, educadores e familiares para que todos se comprometam a estabelecer uma educação com limites bem marcados. “Não violenta! De jeito nenhum violenta fisicamente. Mas não deixar que ele possa manipular os familiares mentindo para um e outro para obter tudo o que quer”.

A escritora ressalta que a educação é importante porque pode diferenciar a gradação de uma possível psicopatia, determinando se ela será mais severa ou não.

Assim como o ambiente social de uma criança propensa à psicopatia pode levá-la a se tornar um perigoso delinquente na vida adulta, um ambiente favorável e uma educação rigorosa podem levar a um grau mais leve do transtorno.

“Quando os pais se deparam com isso, é um momento muito difícil. A maioria nega esse tipo de comportamento dos filhos, tenta atribuir a alguma influência de amiguinhos ou alguma coisa que viram na televisão, esse tipo de coisa”.

Segundo a autora, a estrutura familiar e o ambiente social, por si só, não são capazes de transformar ninguém em um psicopata.

Ciência

De fato, a maldade não é mais segredo para ciência. Hoje em dia, os pesquisadores já sabem que a crueldade se manifesta de forma biológica, como uma falha nos circuitos cerebrais, e que pode ser influenciada por fatores sociais e genéticos. O psiquiatra Fábio Barbirato explica como essa maldade aparece nas crianças.

Ele reforça a ideia de que a maldade pode ser definida como falta de empatia e que isso pode ser explicado cientificamente. “Quando você provoca algo mal a alguém, é porque você não está muito preocupado com que essa pessoa venha se machucar fisicamente ou emocionalmente. Isso significa que você não se importa com o outro. A gente sabe que essa falta de empatia está ligada a algumas áreas do cérebro, como o córtex frontal. Ela também está ligada, em seus casos mais extremos, ao que os antigos chamavam de psicopatia e hoje nós chamamos de personalidade antissocial. O termo utilizado para definir essa mesma falta de empatia em uma criança é transtorno de conduta. Esse transtorno começa na infância e pode ser diagnosticado até os 17 anos”.

Este comportamento se caracteriza justamente pela falta de empatia e remorso. “Um paciente meu, por exemplo, foi proibido pela mãe de sair de casa porque tirou notas baixas. Ele pegou o cachorro da mãe e enfiou várias agulhas nele. Outro paciente pegou o cachorro da mãe e colocou dentro do microondas. E eles não se arrependem disso, falam sem nenhum tipo de remorso. A violência dessa criança pode ser física, ele pode ser aquele garoto que junta uma galera pra bater em outro menino porque ele é mais pobre ou negro, ou tem características homossexuais. Mas essa violência pode aparecer de outras formas – ele pode ser aquela criança que rouba a prova do amigo, por exemplo. Essa violência pode ser observada partir dos 5 anos de idade”, afirma.

Anjinhos?

Por volta da década de 70 do século passado, teorias sociais e psicanalíticas tentaram vincular esse comportamento perverso à educação e à sociedade. Nos últimos anos, porém, os avanços da neurologia sugerem a existência de um fenômeno físico: imagens mostram que, nas pessoas com personalidade antissocial, o sistema límbico, parte do cérebro responsável pela ia e pela solidariedade, está desconectado do resto.

Um obstáculo para o tratamento de crianças com sinais de transtorno de conduta é o próprio tabu da maldade infantil. O senso comum afirma que as crianças são inocentes – uma crença que resulta da evolução histórica da família. Até o século XVII as crianças eram consideradas pequenos adultos e muitas nem sequer eram criadas pelos pais. No século XVIII, isso mudou.

A família burguesa fechou-se em si mesma, dentro de casa. O lar virou um santuário e a criança o centro dos cuidados e das atenções. Foi o nascimento do sentimento de infância, dentro de um grupo que agora tinha como laços o afeto e o prazer da convivência. Se a criança é o eixo do sentimento moderno de família, ela não pode ser má. Eis o tabu.

“Não é fácil para a sociedade aceitar a maldade infantil, mas ela existe”, diz  Barbirato.


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