19/04/2024 - Edição 540

Especial

Relógio macabro

Publicado em 14/05/2015 12:00 -

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Cerca de cento e vinte pessoas morrem todos os dias no Brasil, vítimas de armas de fogo. São cinco mortes por hora. Os dados são de 2012 e fazem parte do Mapa da Violência 2015, divulgado na última quinta-feira (14). Esse é o pior resultado de toda a série histórica iniciada em 1980.

Elaborado com base nos dados do Subsistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, que registra as declarações de óbito expedidas em todo o país, o levantamento mostra que 94,5% dessas mortes, mais de 40 mil ao todo, resultaram de homicídios. As demais causas são: acidente (284), suicídio (989) ou indeterminada (1.066). Do total de vítimas de arma de fogo, 94% são do sexo masculino.

De acordo com o Mapa da Violência, entre 1980 e 2012, mais de 880 mil pessoas morreram vítimas de disparo de arma de fogo. Esse número saltou de 8.710, em 1980, para 42.416 em 2012 – um crescimento de 387%. A taxa de crescimento populacional no mesmo período foi de aproximadamente 61%.

Considerando a taxa de mortalidade por armas de fogo – que leva em conta o crescimento da população –, o ano de 2012 registrou o segundo pior resultado em toda a série histórica, com 21,9 óbitos para cada 100 mil habitantes. Esse dado coloca o Brasil na 11ª posição entre 90 países analisados pelo estudo. Estão na frente do Brasil, segundo a taxa de mortalidade por arma de fogo, Venezuela, Ilhas Virgens, El Salvador, Trinadad e Tobago, Guatemala, Colômbia, Iraque, Bahamas, Belize e Porto Rico. A pior taxa de mortalidade no Brasil foi verificada em 2002, quando o índice ficou em 22,2 mortes para cada 100 mil habitantes.

No caso dos homicídios praticados com armas de fogo, a taxa de mortalidade de 2012 ficou em 20,7 para cada grupo de 100 mil habitantes – a mais elevada desde o início da série histórica.

Violência regionalizada

Das cinco regiões do país, apenas o Sudeste registrou queda no número de vítimas de armas de fogo no período entre 2002 a 2012. Enquanto as regiões Norte (135,7%), Nordeste (89,1%), Centro-Oeste (44,9%) e Sul (34,6%) tiveram altas expressivas no número de mortes, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo reduziram esse tipo de mortalidade em quase 40% no período.

Se for considerada a taxa de mortes por arma de fogo por estado – índice que leva em consideração a população – São Paulo, Rio de Janeiro, Roraima e Pernambuco lideram o ranking de estados que conseguiram diminuir o número de vítimas. Na extremidade inversa da lista, estão o Maranhão, Ceará, Amazonas e Rio Grande do Norte, estados com maior crescimento nos índices.

O resultado positivo da Região Sudeste, que reduziu as mortes por arma de fogo em 39,8%, foi impulsionado pela melhora dos índices de São Paulo, cujos números em 2012 caíram 58,6% com relação ao ano de 2002 e também Rio de Janeiro, com queda de 50,3%. Minas Gerais teve aumento de 53,7% e o Espírito Santo, elevação de 10,3%.

O resultado negativo da Região Norte entre 2002 e 2012 foi impulsionado pelos aumentos de 298,2% de vítimas de arma de fogo no estado do Amazonas, 204% no Pará e 120,8% no Amapá. Em uma década, a região mais que duplicou o número de vítimas por arma de fogo. Em contrapartida, Roraima e Rondônia reduziram do número de mortes em 38,6% e 12,5%, respectivamente. Tocantins e Acre registraram incremento de 81% e 18,2%, respectivamente, nesse tipo de morte.

Na Região Nordeste, apenas Pernambuco, com queda de 33,4%, conseguiu reduzir o número de vítimas entre 2002 e 2012. Maranhão (331,8%) e Ceará (287,9%) praticamente quadruplicaram as mortes por arma de fogo no período. Rio Grande do Norte, com crescimento de 206,9%, mais que triplicou, enquanto a Paraíba (179,4%), a Bahia (148,3%), Alagoas (140%), e o Piauí (123,4%) mais que duplicaram o número de vítimas.

Na Região Centro-Oeste, o crescimento das mortes por arma de fogo entre 2002 e 2012 foi alavancado pelo aumento desse tipo de morte registrado em Goiás, que mais que duplicou o número de vítimas (107,6%). O Distrito Federal ficou atrás com 41,1%, seguido por Mato Grosso (8,6%). Mato Grosso do Sul conseguiu reduzir em 24,5% as mortes decorrentes de disparo de arma de fogo.

O estado do Paraná, com crescimento de 55,3% no número de mortes entre 2002 e 2012, liderou o resultado negativo da Região Sul. Santa Catarina teve crescimento de 34,2% e o Rio Grande do Sul, 15%.

Considerando a população nas cinco regiões do país, as taxas de óbito para cada 100 mil habitantes no Brasil permaneceram praticamente idênticas nos anos extremos da década: 21,7 homicídios por 100 mil habitantes, em 2002, e 21,9, para cada 100 mil habitantes, em 2012.

A idade da violência

Uma em cada duas vítimas de armas de fogo no Brasil, em 2012, tinha idade entre 15 e 29 anos. De acordo com o Mapa da Violência 2015, das 42.416 pessoas que morreram no país em decorrência do disparo de algum tipo de arma de fogo, 24.882, ou seja, 58%, eram jovens.

O número é o pior da série histórica iniciada em 1980 e corresponde a um crescimento aproximado de 10% em relação a 2011, quando 22.433 jovens foram vítimas de armas de fogo. Em 33 anos, o total de óbitos na faixa etária de 15 a 29 anos saltou de 4.415  (1980) para 24.882, um crescimento de 463,6%. No conjunto da população, o total de mortes por arma de fogo cresceu 387% no período, passando de 8.710 para 42.416. Entre 1980 e 2012, a taxa de crescimento populacional foi de aproximadamente 61%.

De acordo com o levantamento, o crescimento do número de mortes por armas de fogo entre os jovens resulta da elevação dos casos de homicídio nessa faixa etária. Se na comparação entre 2011 (21.594) e 2012 (23.867) os homicídios cresceram cerca de 10% entre os jovens, do início da série histórica (1980) até 2012, o total de assassinatos de jovens por arma de fogo cresceu 655,5%.

Para o sociólogo e autor do levantamento, Julio Jacobo Waiselfisz, o crescimento expressivo do percentual de jovens mortos por armas de fogo ao longo dos anos no Brasil decorre do “abandono” de políticas públicas voltadas para essa parcela da população.

“Basicamente, há todo um processo de abandono de políticas públicas dirigidas à juventude. Por exemplo, a educação: nos últimos dez anos, o número de matrícula de jovens [nas escolas] praticamente permaneceu constante, não acompanhou o crescimento populacional. Tem muito jovem fora da escola, onde deveria estar”, disse Jacobo.

Segundo o Mapa da Violência, se for considerada a taxa de mortalidade de jovens por arma de fogo – índice que leva em consideração o crescimento populacional – 2012 também representa o pior resultado, com 47,6 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. Antes, a taxa de mortalidade juvenil mais elevada havia sido registrada em 2003, quando o índice ficou em 46,5 para cada 100 mil.

No conjunto da população, a taxa de mortes por armas de fogo, que em 1980 era de 7,3 por 100 mil habitantes, passa para 21,9 em 2012, um crescimento de 198,8%. Entre os jovens, o crescimento foi bem maior. As taxas passaram de 12,8 óbitos por 100 mil jovens para 47,6 em 2012, um crescimento de 272,6%.

Segundo o estudo, no recorte por idade, há um pico de mortalidade por arma de fogo entre os jovens com 19 anos de idade – com taxa de mortalidade de 62,9 para cada grupo de 100 mil pessoas.

De acordo com Jacobo, a aprovação do Estatuto do Desarmamento, no final de 2003, conseguiu interromper a trajetória de crescimento da taxa de mortalidade por arma de fogo na população em geral e também entre os jovens nos anos de 2004 e 2005. No entanto, a partir de 2006, o número de mortes voltou a crescer.

Violência em preto e branco

Maioria na população brasileira, os negros também são as principais vítimas das mortes provocadas por arma de fogo no país, conforme o levantamento. Das 39.686 vítimas de disparo de qualquer tipo de arma de fogo, em 2012, 28.946 eram negros e 10.632, brancos – a diferença nos números mostra que as vítimas desse tipo de morte foram 2,5 vezes mais de negros do que de brancos.

Para o determinar o recorte racial das vítimas de armas de fogo, o estudo considera as opções dadas pelos entrevistados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – branca, preta, parda, amarela ou indígena – na elaboração dos censos demográficos. Enquanto a série histórica do Mapa da Violência compreende o intervalado entre 1980 e 2012, a classificação das mortes por arma de fogo conforme a cor da pele é feita desde 2002.

Na comparação por unidades da Federação, Alagoas e Paraíba destacam-se pela "seletividade racial" nos homicídios por arma de fogo. Nesses locais, a diferença superou 1.000%. “Para cada branco vítima de arma de fogo nesses estados, morrem proporcionalmente mais de 10 negros, vítimas de homicídio intencional”, informa trecho do levantamento. “Não preocupa só a trágica seletividade de negros e de jovens nesses homicídios, incomoda muito mais verificar a tendência crescente dessa seletividade ao longo dos últimos anos”, destaca o documento. Das 27 unidades federativas, de acordo com o Mapa da Violência 2015, apenas no Paraná o número de brancos vítimas de armas de fogo é maior do que o de negros.

Para Waiselfisz, a prevalência das mortes violentas da população negra está relacionada à falta de políticas públicas de proteção dessa parcela da população e ao recrudescimento das políticas de desarmamento. “[A morte de jovens negros] está associada a várias coisas, à falta de políticas públicas de proteção da população, que são direcionadas àqueles setores mais ricos que são, majoritariamente, brancos. Ali tem mais policiamento, mais proteção, enquanto nos bairros das periferias urbanas não têm segurança pública nem privada. É um salve-se quem puder”, disse o sociólogo.

“Com esse ritmo marcadamente diferencial, a vitimização negra do país, que em 2003 era de 72,5%, em poucos anos duplica: em 2012 já é de 142%”, destaca o levantamento, elaborado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil.

“São jovens pobre, negros, da periferia urbanas, sujeitos ao arbítrio das polícias, das balas perdidas entre traficantes ou a eles mesmos, em uma das poucas alternativas de trabalho e ocupação que é o próprio tráfico de drogas. Há uma constelação de fatores que está levando que nossa juventude, a juventude negra seja um material de consumo dessa chacina”, disse o sociólogo.

Estatuto sob ameaça

Eventuais mudanças nas regras do Estatuto do Desarmamento com o intuito de flexibilizar a venda e o porte de armas poderão provocar a "explosão" do número de mortes no país, avalia Jacobo. Ele critica a proposta do Congresso Nacional de alterar a atual regra.

"Todos os especialistas e aqueles que não têm comprometimento com a indústria do armamento, que financiou a campanha de muitos parlamentares, têm convicção de que estimular o armamento da população irá resultar em uma chacina em nível nacional. Vai explodir [o número de] homicídios no Brasil", defendeu o especialista.

A Câmara dos Deputados instalou uma comissão especial para debater o Projeto de Lei (PL) 3.722/12, que disciplina as normas sobre aquisição, posse, porte e circulação de armas de fogo e munição. O projeto visa a alterar o Estatuto do Desarmamento que definiu critérios mais rigorosos para a comercialização de armas.

Para o autor do levantamento as mortes por armas de fogo estão associadas diretamente ao total de armas em circulação no país. De 1980 até 2003, frisou o sociólogo, houve um aumento constante e sistemático desse tipo de morte, ciclo interrompido a partir de 2004, quando começou a valer o Estatuto do Desarmamento, aprovado no final de 2003.

“Essa queda se explica pelo desarmamento. Em 2004 e 2005 houve quedas. A partir de 2005, no entanto, houve uma estagnação [do total de mortes] e depois começou a aumentar levemente e, nos últimos anos, continuou aumentando. Se compararmos 2003, antes do estatuto, e 2012, as taxas são praticamente idênticas”, explicou Jacobo.

Segundo Jacobo, o Estatuto do Desarmamento não conseguiu manter a redução das mortes por arma de fogo no longo prazo, mas conseguiu estabilizar esse número, mesmo que em patamares elevados. “O estatuto é uma parte. Há uma série de reformas necessárias, como as do Código Processual, do Código Penal, das polícias e uma maior eficiência policial. O estatuto, pelo menos, [provocou] a estagnação, mas faltam muitas coisas por parte do Poder Público para podermos reduzir esse tipo de morte.”

“Nos primeiros anos do Estatuto do Desarmamento tirou de circulação mais de 500 mil armas de fogo. Em todo o tempo restante, de 2005 até 2012, não foram retiradas 150 mil armas. Ou seja, em um ano ou dois anos se retirou quatro, cinco vezes mais armas de circulação do que nos oito, nove anos restantes. Foi feito um processo sério de desarmamento da população nos dois primeiros anos do Estatuto do Desarmamento e depois apenas campanhas, tipo maquiagem, enfeite, para dar conta de algo que não está existindo”, completou Jacobo.

Em meio à retomada do debate sobre as alterações no Estatuto do Desarmamento, a diretora da Área Programática da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Marlova Noleto, reforçou a ideia de que o aumento da circulação de armas de fogo na sociedade causará mais mortes.

A diretora da Unesco disse, ainda, que Brasil vive um “cenário desolador”, com a “banalização” das mortes, principalmente, de jovens. “Não é possível que nós sejamos coniventes com tantas mortes, sobretudo as precoces, quando falamos em 116 mortes por dia. Um número bem maior do que o de muitos países que vivem conflitos armados”, afirmou a diretora da Unesco.

“Sabemos por meio de dados de várias pesquisas que, quando nós armamos a sociedade, criamos condições para mais violência e mais morte. O discurso de que os cidadãos de bem estão desarmados e os bandidos armados não se sustenta em nenhum dado científico. O que sabemos é que quanto mais armas em circulação, mais mortes”, acrescentou Marlova Noleto.

Quadro desesperador

A secretária nacional de Segurança Pública, Regina Miki, reconheceu que o país enfrenta um quadro “desesperador” em relação ao número de mortes por armas de fogo e homicídio. “O problema existe, está colocado, não há contestação [por parte do governo federal]. É uma coisa que o governo já vem apontando há tempo, razão pela qual decidamos trabalhar, junto com os governos dos estados, em um pacto para redução dos homicídios”, disse Regina.

Ela também criticou a possibilidade de flexibilização do Estatuto do Desarmamento, ressaltando que as armas de fogo tem como única finalidade provocar morte. “A arma que mais mata no Brasil não é aquela que vem de fora, mas é a fabricada no Brasil. Os dados mostram que 85% das mortes por arma de fogo no país são com [revólver de calibre] 38 fabricado no país. Ou seja, nós mesmo somos aqueles que fabricamos, desviamos o caminho dessas armas. Temos que mudar isso.”

O Mapa da Violência 2015 – Mortes Matadas por Armas de Fogo é uma parceria da Secretaria-Geral da Presidência da República, da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil e da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO).


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