Meia Pala Bas
Publicado em 24/04/2015 12:00 - Rodrigo Amém
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Eu estava com paciência zero e pressa mil. Precisei pegar um táxi. Túnel engarrafado, fiquei à mercê do piloto. E ele parecia saído de um filme do Leandro Hassum. Rayban, bigodão e palito no canto da boca.
– Tá complicado hoje, doutor – falou o motorista, me encarando pelo retrovisor.
Eu fiz um muxoxo positivo. Não vejo muito sentido em falar sobre o trânsito, sobre o tempo, sobre o vento. Mas o taxista estava disposto.
– Isso é uma pouca vergonha, né não?
Levei alguns segundos para entender que o assunto já era outro.
– Essa coisa desse traveco que arrancou a orelha do guarda. Pouca vergonha. Viu a foto?
– Não… – tentei desconversar.
– Rapá, escracharam o viadinho. Rasparam a cabeça, quebraram a cara todinha dela. Deixaram ela jogada, com as teta de fora. Foi pouco.
Não consegui responder.
– Ah, bichinha sem noção. O cara tá lá trabalhando e ele arranca a orelha do cara. Pô! E tu sabe por que ela tava presa? Por que bateu numa velhinha. Encheu a velhinha de porrada. Mandou pro hospital!
Não sei se é influência das crendices e superstições que fazem parte da identidade cultural do brasileiro. Mas sempre que um caso de violência é justificado pelo “merecimento” da vítima, o cheiro de farinha frita, catupiry e frango desfiado preenche minhas narinas. Mas eu já aprendi que argumentos não interessam a quem só tem certezas. Peguei um desvio.
– Rapaz, nem me fala – me joguei – só matando um elemento desses.
– Não é? Eu não sei como essa praga tá viva! – meu piloto mordia a isca lindamente.
– Esse é o problema desse país. Por isso que tá tudo assim. Ninguém se dá ao respeito. Se eu fosse presidente, não essa “presidanta”, não seria assim.
– Com certeza! Esse PT só quer saber de roubar! Ninguém tá nem aí pro povo.
– Ah, eu resolvia fácil. Pelotão de fuzilamento.
– Claro! – vibrou o motorista.
– Matou policial? Tiro na cara!
– Tá certo!
– Abusou de criança? Tiro na cara! Ficou de viadagem em lugar de família? Tiro na cara!
– Tenho nojo dessas bicha, dotor!
– Isso é falta de pai nessas famílias, meu amigo. Filho meu não vira veado: vira defunto.
– Eu, graças a Deus, nunca vou passar por isso! – o motorista levou às mãos pro céu.
– Filho meu é comedor, não é boiola!
– Ah, com certeza! Filho tem que ser macho!
– É o que eu falo pro meu filho. “Muleque, menininha de vestido curto na rua tá querendo. Não perdoa. Chega chegando.”
O motorista só balançou a cabeça, menos enfático.
– Aí agora tem essa frescura de assédio sexual, de estupro. Se não quisesse tomar rola, não tava quase pelada na rua, não é? É que nem o traveco. Tomou porrada porque mereceu. Não é?
– Pô, mas aí…
– É claro, parceiro! Se apanhou é porque mereceu. Se foi currada é porque fez por onde. Direitos humanos pros humanos direitos. Boiola e biscate não é gente de bem. Não tem que ter direito, não. Tem mais é que apanhar, mesmo. Tamo junto!
O motorista não respondeu. Esticou o braço para aumentar o som do rádio. A tatuagem de nome de menina em letra cursiva apareceu debaixo da manga da camisa. Eu, mau caráter caviar, desviei meus olhos e meu discreto sorriso para a Lagoa, ao som de Paulinho da Viola.
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