28/03/2024 - Edição 540

Especial

Apagão cultural

Publicado em 23/04/2015 12:00 -

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Sete entre cada dez brasileiros não leram um livro sequer no ano passado, revelou recente pesquisa da Federação do Comércio do Rio de Janeiro (Fecomércio – RJ). Feito com mil pessoas, em 70 cidades de nove regiões metropolitanas, o estudo procurou compreender os hábitos culturais da população, e revelou um consumidor sem muito entusiasmo pela arte e pela literatura. Cerca de 55% dos brasileiros responderam que não participaram de nenhuma atividade cultural em 2014. Em 2013, essa porcentagem era de 49%. A leitura de livros caiu de 35% para quase 30% dos entrevistados.

O cenário da pesquisa reitera trabalhos anteriores, especialmente a 3ª pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro (IPL), que ouviu mais de 5 mil pessoas em 315 municípios. Divulgada em 2012, a pesquisa – feita em parceria com a Câmara Brasileira do Livro (CBL), Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) – apontou que o número de brasileiros considerados leitores – aqueles que haviam lido ao menos uma obra nos três meses que antecederam a pesquisa – caiu de 95,6 milhões (55% da população estimada), em 2007, para 88,2 milhões (50%), em 2011. De acordo com o levantamento nacional o brasileiro lê em média quatro livros por ano (dois completos e dois incompletos), especialmente obras religiosas e didáticas. O número de pessoas que gostam de ler no tempo livre diminuiu, segundo a pesquisa: de 36% em 2007 para 28% em 2011.

Segundo o doutor em Letras pela Universidade do Estado de São Paulo (UNESP) Cláudio José de Almeida Mello, os índices são muito baixos, bem distantes de números como os da Espanha, onde são mais de 10 livros lidos por ano. O Brasil perde também para seus vizinhos sul-americanos, Argentina e Chile, que têm a média de 4,6 e 5,4 livros lidos anualmente por cada habitante. Almeida Mello ressalta ainda a taxa de não leitores: “50% dos entrevistados no Brasil se identificaram como não leitores, cinco vezes mais que os 10% de não leitores espanhóis”.

Um fator preocupante sobre o hábito de leitura dos brasileiros é que, de acordo com a pesquisa do IPL, 75% das pessoas nunca frequentaram uma biblioteca. “Certamente nós, brasileiros, frequentaremos mais as bibliotecas à medida que tivermos mais apreço pelos livros, pela leitura, pela literatura, desde que as bibliotecas existam, é claro”, afirma Mello.

Um levantamento recente do Instituto Ecofuturo – que há 15 anos promove ações de incentivo à leitura – revelou a influência das bibliotecas sobre os potenciais leitores. De acordo com o levantamento, estudantes de escolas próximas a bibliotecas comunitárias obtêm desempenho superior ao de alunos que frequentam regiões sem biblioteca. Nesses casos, o índice de aprovação chega a ser 156% superior, e a taxa de abandono cai até 46%. "Ainda temos uma desafio grande a ser enfrentado, já que grande parte das escolas da rede pública não contam com biblioteca", diz a socióloga e diretora de educação e cultura do Instituto, Christine Castilho Fontelles. Uma lei aprovada em 2010 obriga todas as escolas a ter uma biblioteca até 2020. Na época, o movimento independente Todos Pela Educação estimou que, para cumprir com a exigência, o país teria de erguer 24 bibliotecas por dia.

Tecnologia e economia

As tecnologias estão afetando vários segmentos da sociedade, inclusive a forma como as pessoas se relacionam com a cultura. Além de ler menos, em 2014 o brasileiro foi menos ao cinema e a shows musicais do que em 2013, segundo a pesquisa da Fecomercio – RJ. Por outro lado, aumentou a quantidade de pessoas que foram ao teatro e a espetáculos de dança.

Segundo Christian Travassos, gerente de economia da Fecomércio – RJ, esse movimento está ligado ao acesso à internet. Ele afirma que "a leitura é um hábito majoritariamente caseiro e outras pesquisas mostram que o brasileiro está cada vez mais conectado, o que interfere em outras atividades". Por outro lado, "a popularização de conteúdos como comédias Stand Ups e similares via Web, ao contrário do que muitos imaginavam, acabou por incentivar a ida das pessoas ao teatro", avalia.

Travassos acredita que o resultado da pesquisa confirma o senso comum de que as pessoas gastam menos com lazer quando a economia não vai bem, apesar do preço não ser o fator mais citado.

Entre as principais razões apontadas pelos entrevistados para não praticar uma atividade cultural, estão a falta de hábito ou gosto por esse tipo de programa, que, juntos, respondem por 76% das citações. Essas são as principais razões desde a primeira edição da pesquisa, em 2007.

Crescimento tímido

Enquanto o PIB brasileiro cresceu 41,82% na última década, a indústria editorial aumentou seu faturamento em apenas 7,34%. 

Segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, divulgada no ano passado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livro (SNEL), o faturamento das editoras de livros no Brasil alcançou R$ 5,36 bilhões em 2013, o que representa um crescimento nominal de 7,52% em relação ao ano interior. Descontada uma inflação de 5,91% (IPCA), o crescimento real foi de 1,52%.

O crescimento de 2013 deve-se ao aumento das compras governamentais que chegaram a R$ 1,47 bilhão contra R$ 1,32 bilhão em 2012. Trata-se de um crescimento nominal de 12,04% e, uma vez deflacionados os números, de um aumento real de 5,79%. Em 2013, 27,51% do faturamento das editoras foi oriundo de compras governamentais, comprovando a dependência do setor no governo. Mas por que isto seria uma má notícia? A razão é simples: enquanto o governo aumentou suas compras, as vendas dos editores ao mercado privado ficaram praticamente estagnadas.

A conclusão parece ser evidente: o brasileiro não tem o hábito da leitura. Um faturamento inferior a R$ 4 bilhões no mercado privado é raso para um país com 200 milhões de habitantes. Isso representa um gasto bruto anual de apenas R$ 20 per capita, ou seja, praticamente nem um livro por pessoa.

Outro aspecto a ser levado em conta é a qualidade da leitura, nos casos em que ela existe. Os livros de autoajuda representam cerca de metade do total vendido.

Afinal, o brasileiro lê?

Para Danilo Venticinque, jornalista especializado em literatura, os números podem ser enganosos. Segundo ele, há diversos fatores que contrapõe a ideia de que o brasileiro não lê.

– A quantidade de livros produzidos no Brasil só cresceu nos últimos anos. Na pesquisa mais recente da Câmara Brasileira do Livro, a produção anual se aproximava dos 500 milhões de exemplares. Seriam aproximadamente 2,5 livros para cada brasileiro. 

– O país é o nono maior mercado editorial do mundo, com um faturamento de R$ 6,2 bilhões. Editoras estrangeiras têm desembarcado no país para investir na publicação de livros para os brasileiros que não leem. Uma das primeiras foi a gigante espanhola Planeta, em 2003.

– Desde 2004 o preço médio do livro caiu 40%, descontada a inflação. Entre os motivos para a queda estão o aumento nas tiragens, o lançamento de edições mais populares e a chegada dos livros a um novo público.

– A coleção de livros de bolso da L&PM, conhecida por suas edições baratas de clássicos da literatura, vendeu mais de 30 milhões de exemplares desde 2002. Com seu sucesso, os livros conquistaram pontos de venda alternativos, como padarias, lojas de conveniência, farmácias e até açougues.

– Best-sellers têm surgido entre autores brasileiros. Uma delas, a carioca Thalita Rebouças, já vendeu mais de um milhão de exemplares. Seus textos são escritos para crianças e adolescentes. Outro exemplo é Eduardo Spohr, que se tornou um fenômeno editorial com seus romances de fantasia.

Falta grana?

Outro dado apontado pelos que descordam da ideia de que o brasileiro não se dá bem com os livros vêm dos resultados do Vale Cultura, relativos ao movimento acumulado de janeiro a junho de 2014: 88,01% dos R$ 13,65 milhões consumidos no período pelos portadores dos 215.249 cartões emitidos referem-se à compra de livros, jornais e revistas. Seguem-se o cinema (9,26%), instrumentos musicais e acessórios (1,32%), CDs e DVDs (0,66%) e artes cênicas, espetáculos e demais atividades culturais (0,75%).

Observa-se nessas estatísticas oficiais do Ministério da Cultura que, em números absolutos, os beneficiários do programa aplicaram pouco mais de R$ 12 milhões em leitura nos primeiros seis meses de sua execução prática.

“O paradigma de que o brasileiro não gosta de ler vai sendo derrubado à medida que a população tem mais acesso a livros, jornais e revistas. Estamos assistindo a uma paulatina mudança histórica. São várias as causas dessa transformação, dentre elas a democracia, a liberdade de imprensa e expressão, a estabilidade da moeda, a maior inclusão socioeconômica, programas como o Vale Cultura e de distribuição de obras didáticas, literárias e paradidáticas aos alunos das redes públicas dos ensinos fundamental e médio”, afirma Karine Pansa, presidente da Câmara Brasileira do Livro.

Para ela, é preciso aproveitar essa tendência, criando-se um círculo virtuoso impulsionado pela cultura e apropriação do conhecimento pelos brasileiros. “Isso é determinante para o desenvolvimento nacional, cuja conquista ainda temos um longo caminho a percorrer no tocante ao aperfeiçoamento do Estado, à retomada de níveis mais consistentes e duradouros de crescimento econômico, à distribuição de renda e à democratização das oportunidades. Como se observa, a leitura é protagonista dessa história”, afirma.

Infraestrutura

O hábito de leitura é um dos ingredientes mais importantes para o desenvolvimento econômico, científico e social de um país, defende Cláudio Mello. No entanto, para o doutor em Letras, ainda falta infraestrutura e formação para melhorar a leitura no Brasil. De acordo com ele, é necessário um investimento maciço em bibliotecas públicas e escolares com acervo e equipamentos de qualidade, além de se promover a valorização dos profissionais da área de educação “a fim de que a carreira se torne atrativa e receba pessoas com bom rendimento”.

Em relação à formação profissional, Cláudio destaca a necessidade de melhorar a especialização dos educadores, professores e outros mediadores da leitura. O professor explica que as universidades brasileiras ainda “formam esses profissionais com lacunas científicas, pedagógicas e didáticas, com pouca prática profissional, muitas vezes em paradigmas de ensino ultrapassados”. Por fim, ele lembra que nas escolas “os alunos são expostos a metodologias que os impedem de apropriar-se do mundo fantástico da literatura e acabam se afastando dela”.

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil indicou que a falta de hábito de leitura é especialmente grave na faixa etária entre 5 e 17 anos. Cerca de 64% dos alunos ouvidos declararam que não leram nenhum livro por iniciativa própria, apenas motivados pelo dever escolar. Para a socióloga Zoara Failla, coordenadora do estudo, reverter este quadro é responsabilidade da sociedade, não somente dos governos. “Quando muda a gestão pública, as grandes iniciativas acabam engavetadas. É preciso implementar soluções permanentes, com planos do livro e da leitura institucionalizados, que permitam dar continuidade às realizações.”, explica.

O cenário preocupa vários setores da cadeia do livro. Para Wellington de Melo, escritor, professor e coordenador de Literatura na Secretaria de Cultura de Pernambuco (Secult-PE), o momento principal para a formação de leitores é a escola, tanto na rede pública como na privada. A questão é ampliar essa formação para além de aulas de disciplinas específicas.

Não se trata apenas de vender ou distribuir mais obras literárias. “O desafio passa pela construção do hábito de leitura, não é simplesmente ampliar o consumo de livros. Não se pode atrelar a compra de livros diretamente ao hábito de ler. Talvez mais importante seja investir na leitura dentro de escolas e bibliotecas, transformar esses espaços para serem mais do que ambientes de estudo”, destaca. Ele lembra também que, quando os pais não leem, os filhos costumam repetir o hábito.

Para Marina Carvalho, supervisora da Fundação Educar DPaschoal, que trabalha com programas de incentivo à leitura, uma das razões para a queda no hábito de leitura entre o público infanto-juvenil é a falta de estímulos vindos da família. "Se em casa as crianças não encontram pais leitores, reforça-se a ideia de que ler é uma obrigação escolar. Se existe uma queda no número de leitores adultos, isso se reflete no público infantil", diz a especialista. "As crianças precisam estar expostas aos livros antes mesmo de aprender a ler. Assim, elas criam uma relação afetuosa com as publicações e encontram uma atividade que lhes dá prazer."


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