19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Terceirização vai facilitar fraudes contra o trabalhador

Publicado em 15/04/2015 12:00 -

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“A terceirização é um facilitador da fraude trabalhista e contribui não apenas para o desmonte da CLT, mas também para a desefetivação da própria Justiça do Trabalho”, adverte o sociólogo Giovanni Alves ao analisar as causas que levaram à aprovação do PL 4330 e as possíveis consequências da lei da terceirização. Segundo ele, desde 1990, a partir dos governos Collor e FHC, “ocorre um processo lento e progressivo de desmonte da CLT”, e a aprovação do PL 4330 na Câmara dos Deputados “dá apenas o ‘tiro de misericórdia’ no modelo ‘rígido’ de regulação do trabalho no Brasil”.

Giovanni Alves é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. É autor de diversas obras entre elas “Dimensões da precarização do trabalho – Ensaios de sociologia do trabalho” (Bauru: Projeto Editorial Praxis, 2013).

 

O que a aprovação do PL 4330 sinaliza acerca do trabalho no Brasil?

Desde 1990, a partir dos governos Collor e FHC, ocorre um processo lento e progressivo de desmonte da CLT. O PL 4330 dá apenas o tiro de misericórdia no modelo rígido de regulação do trabalho no Brasil, adequando-o às novas condições históricas de acumulação flexível do mercado mundial. Na verdade, nosso mercado de trabalho sempre teve uma flexibilidade estrutural, pelo menos desde 1964, quando os militares instauraram o FGTS em troca da estabilidade no emprego. Na década de 1990, a terceirização e a flexibilização laboral disseminaram-se, atingindo hoje cerca de 30% do mercado de trabalho formal. Alta rotatividade laboral, baixos salários e informalidade estrutural compõem hoje o quadro do mundo do trabalho precário, quadro social que deve se agravar com a aprovação do PL 4330 que regulamenta a terceirização. A aprovação do PL 4330 trata tão somente da afirmação do modelo social de superexploração da força de trabalho que caracteriza nossa formação social capitalista. Enfim, com a vigência plena da terceirização alteram-se as condições materiais — objetivas e subjetivas — da luta de classes no Brasil. O novo cenário de precariedade salarial deve provocar novas estratégias sindicais. Vai exigir que o sindicalismo rompa com práticas burocrático-corporativas e organize mais a classe trabalhadora no plano horizontal.

Que a reação se espera dos trabalhadores diante este quadro?

A lei da terceirização vai exigir de nós reflexão crítica e capacidade de resposta radical, forçando os sindicatos a investirem mais na formação política dos quadros sindicais e na perspectiva da formação da consciência de classe sob pena de eles irem à ruína como instituição social relevante; ou educam-se as massas ou viveremos no pior dos mundos possíveis. Não podemos nos iludir — capitalismo global é isso aí. Caso a lei da terceirização seja instaurada, a resposta dos setores trabalhistas e popular na sua luta contra a exploração deve adquirir cada vez mais um caráter político de médio e longo prazo. Deve procurar unificar a classe sob pena de a luta sindical não ter eficácia. Poderíamos dizer a todos nós, brasileiros, caso a terceirização se generalize, as mesmas palavras do personagem Morpheus no filme “Matrix" (1999): bem-vindo ao Inferno do Real (do capital do século XXI).

Quais os efeitos da terceirização para o trabalhador?

Os estudos sociológicos e da economia do trabalho demonstram, há mais de vinte anos, que terceirização significa redução de salários — pelo menos em 1/3; extensão da jornada de trabalho semanal (em pelo menos 5 horas); aumento de acidentes do trabalho (com consequente aumento dos gastos previdenciários); corrosão da identidade e representação sindical; degradação dos serviços e qualidade dos produtos; espoliação de direitos historicamente conquistados (13º Salário; férias; etc.). Podemos salientar também aumento da corrupção, principalmente no setor público, e o provável aumento do trabalho análogo à escravidão. Terceirização possui também um recorte de gênero, pois deve atingir mais as mulheres que os homens, aumentando mais ainda a precariedade laboral entre o gênero feminino.

Desde 1990, a partir dos governos Collor e FHC, ocorre um processo lento e progressivo de desmonte da CLT. O PL 4330 dá apenas o tiro de misericórdia no modelo rígido de regulação do trabalho no Brasil.

A responsabilidade pelos direitos trabalhistas fica com quem?

O pior do PL 4330 é que ele retira da empresa tomadora dos serviços a responsabilidade solidária pelo pagamento dos salários, 13º Salário, férias, quando a empresa fornecedora desses trabalhadores deixa de cumprir suas obrigações legais (a responsabilidade da empresa será apenas subsidiária e não mais solidária, fazendo com que o problema seja discutido com base no Código Civil, no âmbito da Justiça Comum, e não mais na Justiça do Trabalho. Trata-se, portanto, de um retrocesso de mais de 70 anos, pois o STF desde 1941 reconhecia que a competência para julgar questões trabalhistas é a Justiça do Trabalho). A terceirização é, portanto, um facilitador da fraude trabalhista e contribui não apenas para o desmonte da CLT, mas também para a desefetivação da própria Justiça do Trabalho. É necessário hoje que se crie, por exemplo, um Observatório da Terceirização em que possamos verificar onde ela está sendo adotada e denunciarmos condições precárias de trabalho e fraude de direitos trabalhistas.

Estamos diante de um retrocesso no que se refere à garantia dos direitos trabalhistas no Brasil?

É preciso entender a conjuntura do capitalismo global no qual o Brasil se insere. Hoje, nosso país é um dos importantes territórios periféricos de acumulação de valor. Desde o governo Collor nos inserimos efetivamente na mundialização do capital. O Brasil é hoje uma das áreas privilegiadas de atração de investimentos externos e acumulação do capital no plano mundial. A pressão empresarial pela terceirização é compreensível pela necessidade do capital social total em aumentar a taxa média de exploração e incrementar a massa de mais-valia social no país, como condição para a retomada do crescimento da economia brasileira.

É um fenômeno mundial?

O capital só investe na medida em que encontra condições favoráveis para explorar a força de trabalho. Num cenário de aumento da concorrência internacional, crise estrutural de valorização do capital e afirmação histórica da tendência de equalização decrescente da taxa diferencial de exploração — isto é, na medida em que a referência-padrão da taxa média de exploração do capital global é a China, existe uma poderosa pressão do mercado mundial para equalizar as taxas de exploração de cada país capitalista às taxas de exploração da China e Sudeste Asiático. Não é apenas o Brasil que sofre essa ofensiva do capital global — a vemos atuando há décadas nos países capitalistas centrais — União Europeia, EUA e Japão e depois na América Latina. Portanto, a lei da terceirização e a resistência do empresariado em ampliar direitos trabalhistas e reduzir jornada de trabalho, por exemplo, fazem parte de um fenômeno mundial próprio da temporalidade histórica do capital em sua fase de crise estrutural — com nuances locais.

Terceirização significa redução de salários, aumento de acidentes do trabalho, corrosão da identidade e representação sindical, degradação dos serviços e qualidade dos produtos, espoliação de direitos historicamente conquistados.

Curioso que isso esteja ocorrendo agora, durante o legado político petista.

Desde 2013, quebrou-se o ovo da serpente, criada pela própria dinâmica neodesenvolvimentista. O Congresso Nacional eleito em 2014 é flagrantemente conservador sob hegemonia das forças políticas reacionárias. Por exemplo, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), eleito presidente da Câmara dos Deputados, representa o líder supremo das forças conservadoras em aliança com a direita reacionária. O PMDB, pelo menos desde 2013, sofreu um deslocamento político que implodiu a frente política do neodesenvolvimentismo. O governo Dilma eleito em 2014 está politicamente paralisado. Alterou-se a correlação de forças no Congresso Nacional com a derrota contundente dos setores de esquerda, incluindo o PT. A rigor, o governo é do PMDB e não do PT. Aliás, nunca foi um governo do PT, mas sim o governo de uma coalizão neodesenvolvimentista, onde a esquerda do PT sempre esteve isolada ou numa posição minoritária. A direção majoritária do PT, lastro do lulismo, é que operava a frente neodesenvolvimentista, articulando com o PMDB e pequenos partidos conservadores, o primado da governabilidade capaz de garantir o “reformismo fraco", isto é, programas sociais de transferência de renda visando reduzir as desigualdades sociais e a pobreza extrema.

É uma encruzilhada, visto que estas políticas de inclusão social dependem do crescimento da economia.

O lulismo não funciona num cenário de conflito distributivo acirrado. A crise da economia brasileira da década de 2010 corroeu as bases do lulismo e implodiu a frente política do neodesenvolvimentismo. Desde 2013, pelo menos, explicitam-se os limites do neodesenvolvimentismo. Com o cenário de desaceleração da economia, em parte devido à conjunção de efeitos do aprofundamento da crise mundial, o apagão de investimentos privados e esgotamento do ciclo de crescimento via oferta de crédito e consumo, e ainda somando-se a desaceleração da economia, o repique inflacionário, presenciamos o aumento da insatisfação das camadas médias urbanas, incrementando-se a eficácia política da ofensiva midiática da direita reacionária que, desde 2003, golpeava o setor dirigente majoritário do PT que articulava o lulismo — primeiro, com o “mensalão" e depois com a Operação Lava Jato.

Quais devem ser as consequências da terceirização para a CLT?

A CLT vai se tornar um regime de contratação “nobre”. Quem diria, hein! Há algumas décadas, a esquerda criticava a CLT como uma peça autocrática-fascista oriunda do governo Vargas. Hoje, tornou-se um bote salva-vidas de direitos trabalhistas em extinção. Eis o sintoma da barbárie salarial que caracteriza o capital em sua fase de crise estrutural: o rebaixamento civilizatório. Vivemos, hoje, no Brasil e no mundo uma crise civilizatória.

A rigor, o governo é do PMDB e não do PT. Aliás, nunca foi um governo do PT, mas sim o governo de uma coalizão neodesenvolvimentista, onde a esquerda do PT sempre esteve isolada ou numa posição minoritária.

Além da aprovação do PL 4330 na Câmara, no final do ano passado, a presidente editou as MPs 664 e 665, que mudam as regras previdenciárias e trabalhistas.

As MPs 664 e 665 são medidas “corretivas" de direitos trabalhistas, sendo parte integrante do ajuste fiscal do Ministro Joaquim Levy. Elas não extinguem direitos, mas restringem e dificultam seu acesso. Num cenário de desemprego crescente, restringir e dificultar a acesso a direitos é perverso. Minha crítica é que medidas que atingem direitos previdenciários e trabalhistas deviam ser negociados com as centrais sindicais, mas não foram. O ajuste fiscal não foi discutido com o movimento sindical e popular e com as instâncias da sociedade civil organizada.

Faltou maior interlocução da presidente com a sociedade?

Este foi o maior erro da presidenta Dilma. Logo após ser eleita, não conversou com a sociedade brasileira sobre a necessidade do ajuste fiscal e não buscou construir caminhos concertados com os trabalhadores e movimentos sociais, visando penalizar no ajuste fiscal aqueles que sempre ganharam neste país: o capital rentista-parasitário. Enfim, o governo Dilma conduziu a construção do ajuste fiscal de forma atabalhoada — ou míope. Preferiu um ajuste fiscal pela direita — o que não poderia ser diferente, tendo em vista que o Ministro da Fazenda é um representante legítimo dos interesses do capital financeiro.

Quais as perspectivas acerca do trabalho no Brasil?

As perspectivas não são promissoras. A última metade da década de 2010 será uma metade de “década infernal”. Tenho dito que os limites do neodesenvolvimentismo devem produzir cenários bizarros de fascismo social por conta do alavancamento da manipulação social que visa derrubar o governo Dilma (um fascismo social meio carnavalesco, estúpido, bizarro, como tem sido as manifestações dos “coxinhas" e seus intelectuais orgânicos). Não se iludam, a direita reacionária — apoiada pelas forças ocultas do imperialismo norte-americano — quer chegar ao governo do Brasil de qualquer modo até 2018.

Ao quebrar a coalizão neodesenvolvimentista, hegemonizando os conservadores fisiológicos no Congresso Nacional, principalmente o PMDB; e atrair setores da baixa classe média, que cresceu nos últimos anos, e inclusive setores trabalhistas organizados e populares, para o campo da reação liberal, criaram-se efetivamente neste país as condições sociais e políticas para a virada neoliberal (o que não tinha ocorrido nos últimos dez anos).

Qual o papel da esquerda neste cenário?

As perspectivas para o trabalho devem ser de luta e reflexão, aproveitando a crise para elevar o nível de consciência das massas. Não é fácil. Há muito tempo o PT perdeu a prática de luta e formação da consciência de classe. Por outro lado, a militância da esquerda socialista, parte dela de oposição ao governo, é diminuta e irrelevante politicamente, não conseguindo transformar o calor das lutas sociais em luz — isto é, esclarecimento das massas sobre uma conjuntura complexa com mil tons de cinza.


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