29/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Evangélicos e Direitos Humanos

Publicado em 14/04/2015 12:00 -

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Em coluna publicada no jornal Folha de SP ("Fundamentalistas", 26/03 ) Contardo Calligaris faz uma pergunta importante: "Por que, então, há parlamentares evangélicos que querem fazer parte da Secretaria de Direitos Humanos"? Pelo que se pode depreender da pergunta e da fundamentação do artigo, esse não seria o lugar apropriado para um parlamentar evangélico. E por quê? Porque ele é evangélico! –o que pressupõe que ele ocupará o lugar para impor a sua particular visão de mundo ao resto da sociedade.

Segundo o autor, "como não parece que a liberdade de culto dos evangélicos esteja ameaçada, só resta concluir (?!) que eles querem trabalhar nela para se opor à liberdade dos que pensam diferente". O artigo não é importante pelo que expressa, mas pelo que representa.

Essa é a visão culta de largos setores dos formadores de opinião a respeito dos evangélicos. Um sujeito fundamentalista, alguém, para lembrar a definição de H. L. Mencken, "com um medo obsessivo de encontrar alguém, em algum lugar no mundo, que seja feliz". Ele quer reprimir, enquadrar a sociedade inteira à sua cosmovisão, a fórceps se precisar. O estereótipo é asfixiante, mas reconheça-se que cumpre bem sua função.

Como permitir que gente assim assuma posição de destaque e influência numa sociedade pós-moderna? O problema é que todo estereótipo é injusto e não exerce a sua função simplificadora sem sacrificar boa parte da realidade. Na verdade, os evangélicos são muitos e de diversas colorações.

Mas esse não é o ponto. O que interessa aqui não é saber como são os evangélicos. O que interessa é que não se pode expurgar ninguém da disputa por um ofício público porque ele tem esta ou aquela crença religiosa.

A sociedade é formada por pessoas que possuem cosmovisões distintas e, não raras vezes, conflitantes. Ainda assim, deve encontrar um desenho que estimule uma convivência de cooperação, um espaço de consenso, que permita a coexistência sem sacrifício da pluralidade.

John Rawls, pensador que mais se ocupou da questão da justiça em nosso tempo, destaca que uma comunidade alcança esse ideal, ao garantir, entre outros fatores, que os ofícios públicos e as posições de destaque estejam igualmente acessíveis a todos, sem que ninguém seja descartado por conta de suas crenças, seu status, etc.

A simples sugestão de que um parlamentar – por ser evangélico! – está excluído da pretensão de ocupar uma função pública é de um autoritarismo de arrepiar, que só não se percebe porque o golpe se volta contra um dos setores da sociedade que não costuma suscitar as paixões dos defensores das liberdades públicas. Caso o alvo fosse algum outro segmento – pense o leitor na minoria que quiser -, a afirmação seria impensável.

A sociedade é formada por pessoas que possuem cosmovisões distintas e, não raras vezes, conflitantes. Ainda assim, deve encontrar um desenho que estimule uma convivência de cooperação, um espaço de consenso, que permita a coexistência sem sacrifício da pluralidade.

Religiosos e não religiosos devem ouvir-se uns aos outros na arena pública e procurar aquilo que Habermas chama de atitude cooperativa, de colocar-se, tanto quanto possível, no lugar do outro para alcançar o máximo de compreensão mútua.

É uma tarefa difícil, talvez uma proposta mais ideal do que factível. Porém, em todo caso, é melhor sonhar com um pluralismo distante do que fechar sumariamente a porta da esfera pública ao religioso e sujeitá-lo ao confinamento de sua igreja, tão somente porque suas crenças não se ajustam mais às preferências de uma sociedade secularizada.

O expurgo e o gueto são coisas dolorosas, mas parece que dói menos quando acontece com os outros.

João Heliofar J. Villar – Procurador regional da República.


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