27/04/2024 - Edição 540

Especial

Líquido e incerto

Publicado em 19/03/2015 12:00 -

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Em meio a uma das mais graves crises de abastecimento hídrico do país, comemora-se neste domingo, dia 22, o Dia Mundial da Água. Há pouco a festejar, no entanto. A agricultora Márcia da Silva Lopes, 46 anos, moradora da comunidade de Bom Jardim, em Quixadá, por exemplo, perdeu quase tudo o que tinha plantado em janeiro esperando que chovesse no início de fevereiro, primeiro mês da quadra chuvosa no Ceará. As chuvas só chegaram no fim do mês, fazendo com que ela tivesse que voltar a plantar as sementes de milho, feijão e gergelim. Se não chove, Márcia depende da água de enxurrada acumulada na cisterna para irrigar a plantação.

A luta diária de Márcia pela água se agrava quando os poucos recursos são disputados à tapa. Em meio à forte seca que atinge há meses diferentes Estados do país, o número de conflitos rurais por água bateu recorde no ano passado. Foram registrados 127 conflitos, com 42,8 mil famílias envolvidas, número também recorde, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Isso representa uma disputa por água a cada três dias.

A entidade, braço agrário da Igreja Católica, acompanha desde 2002 conflitos por água nas áreas rurais do país. Em 2013, por exemplo, quando a estiagem já se mostrava forte no Nordeste, foram registrados 101 conflitos no país, número até então o mais alto da série histórica.

Norte e Nordeste, tradicionalmente, são as regiões mais afetadas por esses conflitos. Mas a pesquisa atual, apesar de não contabilizar os números, já vê impactos da seca em áreas urbanas do Sudeste, como a Grande São Paulo.

O pesquisador Roberto Malvezzi, da CPT ainda acredita que a questão da água poderá causar mais disputas entre Estados do país. A mais recente discussão nesse sentido foi sobre a transposição de água da bacia do rio Paraíba do Sul e os reservatórios do Cantareira, com meses de embates entre os governadores de SP, Rio e Minas Gerais.

Zona Rural

Já no interior do país, as disputas envolvem desde casos de contaminação de recursos hídricos à invasão de terras para acesso a rios e lagos, passando pela apropriação de açudes públicos. "Há vezes em que um fazendeiro desvia o curso de um rio para que ele abasteça sua propriedade, por exemplo", conta Malvezzi.

Outra disputa comum listada pela pesquisa da CPT é a construção de represas e barragens em locais habitados. Segundo Malvezzi, esse tipo de conflito é o que atinge um maior número de famílias, devido ao tamanho da área das represas.

Por isso, nos últimos dez anos, o Estado do Pará, onde está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, aparece em primeiro lugar no ranking de famílias atingidas. Ao longo da última década, são mais de 69 mil famílias afetadas por conflitos de água.

O Rio ficou em segundo lugar, com 66 mil famílias. Dessas, 8.000 famílias foram atingidas pela construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico, no município de Santa Cruz, no oeste do Estado. Desde sua inauguração, em 2010, o polo industrial é alvo de inquéritos sobre impactos ambientais.

Conflitos urbanos

A contagem geral dos conflitos hídricos feita pelo CPT não levada em conta as disputas urbanas. Mas Malvezzi adianta que já é possível identificar dois tipos de conflitos nas cidades. O primeira deles ocorre entre entes federativos, como a disputa entre Rio de Janeio e São Paulo pelo Rio Paraíba do Sul, em meio à crise hídrica no Sudeste. 

O segundo tipo, em parte também relacionado à escassez, é observado entre as  empresas prestadoras de serviços de água e esgoto e os clientes atendidos por elas. "Isso ficou claro nos embates sociais em Itu e em outras cidades do interior de SP, por conta do racionamento e também pela pouca eficiência das empresas", diz o assessor da CPT. 

Conforme Malvezzi, a questão da escassez não é só quantitativa, mas também qualitativa, e envolve decisões políticas equivocadas. "Esta não é uma seca isolada, estamos modificando o ciclo das águas de forma insustentável. Os programas brasileiros são sempre baseados na expansão da oferta e no consumo predatório, sem pensar na sustentabilidade. É uma equação que não fecha", conclui.

História antiga

E a conta não fecha já há alguns anos. Em 2001, o especialista em recursos hídricos Marcos Freitas, então diretor da Agência Nacional das Águas (ANA), foi convidado por uma revista a fazer projeções sobre o futuro do Brasil e como seria a vida dos brasileiros em 2015. À época, a resposta de Freitas pareceu um tanto esdrúxula: o país, mesmo tendo o maior volume de água doce do planeta, viveria uma grave crise hídrica.

Mas se o problema era conhecido há tantos anos, por que não foi evitado? A resposta é complexa. O fato é que a previsão de Freitas mais de uma década atrás não tinha nada de sobrenatural. Estava baseada em números:

“Entre 1998 e 2000, trabalhei na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), onde nos preocupávamos  muito com a quantidade de água disponível. Quando fui transferido para a ANA, em 2001, e comecei a prestar atenção na qualidade. Fiquei estarrecido com a poluição de rios e a falta de tratamento. Era questão de tempo”, afirma.

Hoje professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o técnico conta que a situação observada quase 15 anos atrás foi comunicada aos governos paulista e federal, mas não teve efeito. E atribui isso à “surdez pluripartidária”, já que obra de saneamento “não aparece” e, por isso, “não dá voto”.

“É impressionante que, até hoje, a ANA não consegue exercer poder de polícia e cuidar dos mananciais”, observa Freitas.

O alerta da agência em 2001 não foi o único. Em 2009, o próprio governo paulista, com base na análise de mais de 200 especialistas, apontava risco de desabastecimento em 2015. E pior: a estiagem que afeta o Sudeste há pelo menos três verões foi apenas um dos fatores que intensificaram o problema. Não o gerou sozinho. É preciso incluir na conta o descuido com as fontes de água, a falta de investimento das empresas para evitar desperdício e a gestão inadequada, que tratou a água como fonte inesgotável quando era cada vez mais escassa.

Soma-se a isso outro ingrediente: a falta de diálogo com a população. Em ano eleitoral, como foi 2014, candidatos tucanos e petistas fizeram malabarismos retóricos para amenizar a dimensão do colapso e evitar a palavra racionamento. O resultado é a pior crise hídrica da história de São Paulo.

Conflito à vista

Mesmo que a falta de chuva se concentre no Sudeste, é consenso que o impacto se espraiará pelo país. Se não por dificuldades no abastecimento, na alta do preço da luz e da comida e no enfraquecimento da economia. Analistas projetam que o Brasil crescerá 0,1% em 2015, só que o ajuste fiscal do governo e a falta de água podem levar a taxa para baixo de zero.

Em Minas Gerais, após sobretaxar o consumo, o governo sinalizou que pretende adotar racionamento para diminuir o uso em pelo menos 30%. Eventos tradicionais, como o Carnaval em Ouro Preto, terão de ser adaptados. Até as repúblicas de estudantes, que costumam receber milhares de turistas durante o feriado, limitarão o tempo de banho.

No vizinho Rio de Janeiro, pelo menos dois reservatórios que abastecem o Rio Paraíba do Sul, principal fonte de água do Estado, já atingiram o volume morto. Incapaz de evitar a escassez, o governo aventa a possibilidade de racionamento nos próximos meses.

Até onde a crise hídrica é capaz de chegar? Difícil dizer. Mas especialistas indicam que o cenário atual é só o início de uma “guerra hídrica” entre os Estados por rios que cortam o Sudeste do país.

A primeira trincheira já foi, inclusive, definida: o Paraíba do Sul, que nasce em São Paulo, mas também corta Minas e o Rio, ao longo de 1.137 quilômetros de extensão.

Aos cariocas, o rio é vital por abastecer 11 milhões de habitantes. Na sexta-feira, foi revelado o projeto da obra que interligará a Bacia do Paraíba do Sul ao Sistema Cantareira, que só deve ficar pronta em 2016. O uso dessa água gera divergências desde novembro e parou no Supremo Tribunal Federal, que fixou prazo até 28 de fevereiro – pouco antes do previsto para o colapso hídrico paulista – para cada governo apresentar propostas para resolver a crise.

“É uma escassez que se arrasta. E mesmo que chova muito acima da média durante cinco anos, e os reservatórios voltem a ficar totalmente cheios, nada vai ser como antes”, sentencia Roberto Kirchheim, geólogo especializado em recursos hídricos.

O mundo sem água

A disputa pela água não é uma característica do Brasil. Pelo contrário. O país está em melhor situação no que se refere aos recursos hídricos do que a maioria dos países mundo afora.

Relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) mostra que há no mundo água suficiente para suprir as necessidades de crescimento do consumo, "mas não sem uma mudança dramática no uso, gerenciamento e compartilhamento. Segundo o documento, a crise global de água é de governança, muito mais do que de disponibilidade de recurso, e um padrão de consumo mundial sustentável ainda está distante.

Mantendo os atuais padrões de consumo, em 2030 o mundo enfrentará um déficit no abastecimento de água de 40%. Os dados estão no relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento de Recursos Hídricos 2015 – Água para um Mundo Sustentável.

O relatório atribui a vários fatores a possível falta de água, entre eles a intensa urbanização, as práticas agrícolas inadequadas e a poluição, que prejudica a oferta de água limpa no mundo. A organização estima que 20% dos aquíferos estejam explorados acima de sua capacidade. Os aquíferos, que concentram água no subterrâneo e abastecem nascentes e rios, são responsáveis atualmente por fornecer água potável à metade da população mundial e é de onde provêm 43% da água usada na irrigação.

De acordo com a Unesco, nas últimas décadas o consumo de água cresceu duas vezes mais do que a população e a estimativa é que a demanda cresça ainda 55% até 2050.

Os desafios futuros serão muitos. O crescimento da população está estimado em 80 milhões de pessoas por ano, com estimativa de chegar a 9,1 bilhões em 2050, sendo 6,3 bilhões em áreas urbanas. A agricultura deverá produzir 60% a mais no mundo e 100% a mais nos países em desenvolvimento até 2050. A demanda por água na indústria manufatureira deverá quadruplicar no período de 2000 a 2050.

Segundo a oficial de Ciências Naturais da Unesco na Itália, Angela Ortigara, integrante do Programa Mundial de Avaliação da Água (cuja sigla em inglês é WWAP) e que participou da elaboração do relatório, a intenção do documento é alertar os governos para que incentivem o consumo sustentável e evitem uma grave crise de abastecimento no futuro. “Uma das questões que os países já estão se esforçando para melhorar é a governança da água. É importante melhorar a transparência nas decisões e também tomar medidas de maneira integrada com os diferentes setores que utilizam a água. A população deve sentir que faz parte da solução”, diz.

Cada país enfrenta uma situação específica. De maneira geral, a Unesco recomenda mundanças na administração pública, no investimento em infraestrutura e em educação. "Grande parte dos problemas que os países enfrentam, além de passar por governança e infraestrutura, passa por padrões de consumo, que só a longo prazo conseguiremos mudar, e a educação é a ferramenta para isso", diz o coordenador de Ciências Naturais da Unesco no Brasil, Ary Mergulhão.

No Brasil, a preocupação com a falta de água ganhou destaque com a crise hídrica no Sudeste. Antes disso, o país já enfrentava problemas de abastecimento, por exemplo no Nordetste. Mergulhão diz que o Brasil tem reserva de água importante, mas deve investir em um diagnóstico para saber como está em termos de política de consumo, atenção à população e planejamento. "É um trabalho contínuo. Não quer dizer que o país que tem mais ou menos recursos pode relaxar. Todos têm que se preocupar com a situação".

O relatório foi mundialmente lançado hoje (20) em Nova Délhi, na Índia, antes do Dia Mundial da Água (22). O documento foi escrito pelo WWAP e produzido em colaboração com as 31 agências do sistema das Nações Unidas e 37 parceiros internacionais da ONU-Água. A intenção é que a questão hídrica seja um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que vêm sendo discutidos desde 2013, seguindo orientação da Conferência Rio+20 e que deverão nortear as atividades de cooperação internacional nos próximos 15 anos.


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