29/03/2024 - Edição 540

Especial

Sangue no campo

Publicado em 12/02/2015 12:00 -

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As últimas palavras ditas por Dorothy Stang antes de ser alvejada por seis tiros, em uma estrada deserta de terra batida no interior do Pará, foram uma prece. A missionária norte-americana tinha 73 anos de idade. Segundo seu executor, Rayfran das Neves, quando percebeu a aproximação da moto que levava seus assassinos, a freira abriu a Bíblia que carregava debaixo do braço e começou a rezar.

Na última quinta-feira, dia 12 de fevereiro, o assassinato de Dorothy completou dez anos, sem que os mandantes pelo crime tenham sido, de fato, presos. Depois de sucessivos julgamentos e do polêmico cancelamento do veredicto que condenou Vitalmiro Bastos de Moura a 30 anos de prisão, tanto ele como o outro mandante, Regivaldo Pereira Galvão, continuam livres. O caso, ao invés de exceção, é a regra da violência e impunidade que assolam comunidades rurais de todo o Brasil e especialmente da Amazônia.

De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 2005 a 2014, 325 pessoas foram vítimas de assassinatos motivados por conflitos agrários no Brasil. Mais da metade destes casos (67,3%) aconteceram na Amazônia Legal. De 1985 a 2013, a justiça recebeu 768 inquéritos de assassinatos no campo da região amazônica. Apenas 5% deste total chegou a julgamento, segundo a CPT. Pior: somente 19 mandantes receberam algum tipo de punição, sendo que a maioria responde às acusações em liberdade.

Em todo o mundo, apenas 10% dos casos de crimes contra ambientalistas chegam aos tribunais, sendo que somente 1% resulta em condenação. Para a ONG Global Witness, o percentual é um símbolo da “cultura endêmica de impunidade” conduzida pelos governos.

A falta de condenações contribui para o silêncio dos ativistas e da população prejudicada por atividades econômicas ilegais. “Esses crimes não recebem a atenção necessária das autoridades. Se houvesse um monitoramento constante nos biomas mais ameaçados, seria possível levar muitos outros criminosos à Justiça”, denuncia Oliver Courtney da Global Witness.

Este círculo vicioso de mortes, impunidade e violência alimenta uma indústria que vem financiando há anos o desmatamento da Amazônia. As populações tradicionais da região vêm sendo exterminadas por motivos econômicos, seja para a posterior ocupação com atividades ligadas ao agronegócio, para a grilagem de terra ou para a exploração madeireira ilegal.

“Continuam morrendo anônimos todos os dias naquela região”, afirma o promotor de Justiça Edson Cardoso, que atuou no caso Dorothy. Quando o promotor fala em anônimos, se refere ao pequeno agricultor, porque nas suas palavras “as lutas sindicais ficam cada vez mais enfraquecidas a cada morte de líderes”. É de se imaginar que a luta é injusta: agricultores que querem apenas um pedaço de terra para plantar e garantir o sustento da família contra grandes latifundiários que contavam com capatazes para defender suas propriedades.

Segundo dados do Ministério Público, entre 1964 e 2011, os mortos por latifúndio, só no Pará, passam de 2 mil.

Grileiros e madeira ilegal

O embate com grileiros e madeireiros ilegais também foi o estopim para o assassinato de outras vítimas simbólicas na luta ambientalista: Zé Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal de líderes extrativistas era conhecido pela defesa do manejo sustentável da mata e pela oposição a sua exploração irrestrita. Eles denunciavam constantemente a atuação dos criminosos no Assentamento Agroextrativista Praia Alta Piranheira, a 50 quilômetros de Nova Ipixuna, no Pará. Foram mortos a tiros, em 2011.

“Nosso lote era lindo, a gente levava uma vida muito tranquila e pacata. Mas a partir de 2005, com a intensificação da exploração de madeira dentro do assentamento, o Zé começou a ser ameaçado e ficou ruim de viver. Até que aconteceu o que aconteceu”, relata Claudelice Santos, irmã caçula de Zé Claudio.

A exploração ilegal de madeira também levou à morte do sindicalista Josias de Castro e sua esposa, Ereni Silva, em agosto do ano passado, em Guariba, no Mato Grosso, e ao assassinato de José Dutra da Costa, o Dezinho, ocorrido em novembro de 2000, em Rondon do Pará.

Recorde sombrio

O Brasil é o lugar mais perigoso do mundo para ativistas do meio ambiente. Esta é uma das conclusões do relatório Deadly Environment, da Global Witness. Divulgada no ano passado, a pesquisa concluiu que as mortes de pessoas que protegem o ambiente e o direito de utilização de terras sofreram um aumento acentuado entre 2002 e 2013, devido à intensificação de disputas por recursos naturais. Durante este período foram registradas em todo o mundo 908 mortes relacionadas com disputas relativas à exploração industrial de florestas, minas e direitos de utilização de terras, como principais fatores. O Brasil foi palco de 448 destes homicídios.

Publicado no 25º aniversário do assassinato do seringueiro e ativista ambiental Chico Mendes, o relatório destaca a falta de informação e monitorização deste tipo de crime. Este déficit de atenção aos crimes ambientais e contra os defensores dos direitos da terra tem alimentado níveis endêmicos de impunidade. Pouco mais de um por cento dos autores dos crimes conhecidos é condenado. “Isto significa que é da maior importância proteger o ambiente e também que nunca foi tão perigoso fazê-lo”, afirma Oliver Courtney.

Quando os casos são registados, são frequentemente analisados de forma isolada ou tratados como um subconjunto de outros direitos humanos ou questões ambientais. Muitas vezes, as próprias vítimas não conhecem os seus direitos ou não conseguem fazer prevalecer os mesmos, devido à falta de recursos existente nos locais remotos e perigosos onde vivem.

John Knox, especialista das Nações Unidas em direitos humanos e ambiente afirma: Os direitos humanos só ganham significado se as pessoas forem capazes de exercê-los. Os defensores dos direitos humanos ambientais trabalham para garantir que vivemos em condições que nos permitem desfrutar dos nossos direitos básicos, entre os quais o direito à vida e à saúde. A comunidade internacional terá de fazer mais para proteger essas pessoas da violência e perseguição de que são alvo.

Para o pesquisador britânico Billy Kyte, o alto número de mortes no Brasil se deve a uma conjunção de fatores que fazem a concorrência pela terra e pelos recursos naturais se intensificar e geram maior pressão – e tensão – no campo. Ele enumera a desigualdade na posse de terra no país, com a concentração de propriedades nas mãos de latifundiários; o grande número de comunidades que tira o seu sustento da terra; e a atuação de setores cuja produção consiste também em explorar a terra, como o agropecuário, de mineração e madeireiro.

Mas Kyte acredita também que os números sejam mais altos no caso brasileiro porque o monitoramento é melhor, graças ao relatório anual produzido pela Comissão Pastoral da Terra sobre conflitos de terra no país.

Desmatamento

Courtney, no entano, considera a situação brasileira “particularmente grave” devido ao crescimento dos episódios de violência na Amazônia. Em 2013, o desmatamento na maior floresta tropical do planeta aumentou 23%. A maior incidência de desflorestamento (61%) ocorreu no Pará e no Mato Grosso do Sul, dois dos estados onde há mais atentados contra ativistas.

No interior do Mato Grosso do Sul, produtores de carne bovina, soja e cana de açúcar têm entrado em conflito com índios das comunidades guarani e kuranji. Segundo a Global Witness, metade dos assassinatos de ativistas ambientais em 2012 ocorreu na região. E, no país todo, foram mortos 250 defensores de origem indígena entre 2003 e 2010.

Nos últimos dez anos o Pará foi o estado que mais desmatou o bioma. Neste período, foram perdidos 39.666 quilômetros quadrados de florestas na região, segundo dados do Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite (PRODES), do Governo Federal. No mesmo intervalo, foram registrados 116 assassinatos no estado, o maior índice dentre todas as unidades da federação. Nos últimos dez anos 639 pessoas entraram para a lista de ameaçados de morte do Pará.

Em 2013, segundo a CPT, 8.836 famílias que viviam no Pará foram afetadas pela violência no campo. Destas, 477 tiveram suas casas destruídas, 264 tiveram suas roças arruinadas e 2.904 foram vítimas de alguma ação de pistolagem.

Entre 2007 e 2012, cerca de 80% de toda a área com exploração madeireira no Pará, maior produtor e exportador de madeira nativa serrada, não contou com nenhuma autorização, ou seja, a madeira foi extraída ilegalmente. No entanto, segundo apurou o Greenpeace em recente investigação, este produto de origem ilegal ganha facilmente papéis oficiais, por meio de um esquema de “lavagem” dessa madeira, que então ganha o mercado nacional e internacional, com a conivência do poder público.

“O Pará se mantém no dos conflitos, assassinatos, ameaças, expulsões e atuação de pistoleiros. Um dos grandes problemas é a impunidade e ela é um incentivo à continuidade. A justiça não consegue dar resposta aos crimes graves e existe aqui uma indústria de pistolagem, onde pessoas oferecem serviços e outras encomendam mortes. Aqui se mata por um salário mínimo, dependendo da importância da vítima na sociedade. Não há tabela, mas há crimes de R$ 50 mil”, diz o advogado José Batista, da Comissão Pastoral da Terra em Marabá.

A origem da violência no campo na Amazônia pode ser combatida através de ações do governo que melhorem a governança na região e incentivo ao uso sustentável da floresta. A devida apuração e julgamento dos casos também deve ser uma prioridade absoluta para o poder judiciário, pois a impunidade funciona na prática como uma espécie de “salvo-conduto” para aqueles que alimentam a violência na região.

Para isso, o governo federal deve promover o aumento da capacidade de ação dos órgãos ambientais estaduais e federais, com mais recursos para ações de monitoramento e fiscalização, a fim de permitir que o crime seja combatido. Os planos de manejo aprovados na Amazônia desde 2006, por sua vez, devem ser revistos, assim como os sistemas de controle de madeira, com processos públicos, transparentes e integrados.

"Precisamos nos perguntar até quando a sociedade e o Estado brasileiro vão tolerar o extermínio daqueles que lutam pelo simples exercício de seus direitos e garantias constitucionais, e que enfrentam as forças responsáveis pela destruição da Amazônia e pelo desrespeito ao Estado de Direito na região", alerta Danicley Saraiva, do Greenpeace.

Avanço descontrolado

A exploração mineral, o desmatamento e a disputa por terras e água estão entre os maiores motivos de conflitos ambientais do mundo, segundo um levantamento internacional divulgado recentemente pela ONG Ejolt (Environmental Justice Organizations, Liabilities and Trade) e coordenado pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB). Os pesquisadores identificaram 945 casos em 78 países. Empatado com a Nigéria, o Brasil foi o terceiro colocado no ranking, com 58 casos, atrás apenas da Índia (112) e da Colômbia (77).

Os conflitos do país, segundo o Atlas Global de Justiça Ambiental, estão ligados à abundância de projetos de infraestrutura relacionados ao meio ambiente. São obras, como a construção de hidrelétricas, que dividem ativistas e empreiteiras; e o setor agrícola, cujas plantações invadem unidades de conservação.

“O crescimento da população mundial provocará uma busca cada vez mais intensa por commodities, e o Brasil, que é rico em terra, água, petróleo e minérios, será um alvo. E este recursos estão em terras ocupadas por indígenas, quilombolas e pequenos agricultores. Estes grupos serão os mais afetados”, descreve Leah Temper, coordenadora do Atlas.

Entre os conflitos ecológicos brasileiros estão episódios de grilagem para especulação imobiliária e a disputa por regiões que poderiam receber projetos como barragens hidrelétricas. São instalações que ampliam a geração de energia por uma matriz energética considerada limpa, mas que provocam alto impacto ambiental no local de sua construção.

Falhas na legislação

Apesar do processo de industrialização nacional ter catapultado nas décadas passadas, as exportações do Brasil são altamente dependentes de produtos do setor primário. Em 2012, metade dos produtos comercializados para outras nações vinham do agronegócio — carne, soja, etanol, por exemplo — e outros semiacabados, entre eles alumínio e aço bruto. O potencial econômico do campo leva extrativistas a se aventurarem em reservas indígenas.

Professor de Direito Ambiental da Fundação Getúlio Vargas, Rômulo Sampaio lembra que a exploração de commodities sempre gera disputa de interesses. “O petróleo, por exemplo, provoca interesses nacionais, conservacionais e do mercado privado. No campo, o problema fundiário torna o conflito ainda mais agudo, devido à desigualdade na distribuição de propriedades”, destaca.

Sampaio atribui os dilemas ambientais e suas consequências sociais a falhas graves na legislação. “Não há uma discussão sobre como lidar com os conflitos. Falta uma orientação, uma política pública. O debate só aparece na hora de implementação de cada projeto. Por isso, aumenta o número de ações no Judiciário.”.

A Fiocruz realiza, desde 2113, um catálogo sobre injustiças ambientais no Brasil. O órgão foi uma das fontes do mapeamento da UAB e, em trabalhos independentes, destaca os danos à saúde coletiva provocados pelos conflitos ecológicos. Nas grandes cidades, moradores no entorno de lixões estão sujeitos a doenças respiratórias, dengue e leptospirose.

Já a atuação da indústria em áreas próximas a rios leva à alteração do ciclo reprodutivo da fauna, a doenças cardíacas e à insegurança alimentar. “Analisamos denúncias de problemas de saúde causados por conflitos ecológicos, como a contaminação de rios por agrotóxicos”, revela Marcelo Firpo Porto, professor do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, da Escola Nacional de Saúde Pública. “As doenças estão ligadas à degradação dos ecossistemas.”

Em seu novo mapeamento, a Fiocruz já identificou 450 casos de conflito ecológico no Brasil. “Levamos ao mapeamento da UAB os casos mais emblemáticos, relacionados ao comércio internacional. Mas conhecemos muitas outras ocorrências, de âmbito regional ou nacional.”.


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