29/03/2024 - Edição 540

Especial

Na idade das trevas

Publicado em 05/02/2015 12:00 -

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O Relatório Alternativo sobre os Direitos da Criança, apresentado esta semana ao Comitê sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, apontou o encarceramento e o extermínio de jovens como violações frequentes no Brasil. Elaborado pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced – Seção DCI Brasil), o monitoramento mostra que a taxa de homicídio entre a população de até 19 anos aumentou 194,2%, entre 1980 e 2012. Antes, morriam 19,6 jovens a cada grupo de 1.000, proporção que passou para 57,6 ao longo das três últimas décadas.

Para a pesquisadora Mônica Brito, que participou da elaboração do relatório, existem dificuldades para a sociedade reconhecer que adolescentes e jovens têm direitos, sobretudo quando se trata de um jovem em conflito com a lei. “Há uma tendência ao encarceramento e tolerância da sociedade em relação aos homicídios. Não tínhamos que falar sobre a redução da idade penal, deveríamos estar falando da letalidade e do extermínio”, afirmou.

No documento, a organização cita o aumento do conservadorismo acerca desses direitos. “É generalizado o pensamento na sociedade brasileira de que a repressão aos adolescentes em conflito com a lei deve retribuir-lhes o malfeito e se tornar cada vez mais dura”, diz o texto.

O relatório também diagnostica a superlotação das unidades do sistema socioeducativo, onde jovens que cometeram delitos cumprem medida de privação de liberdade. Apenas no período 2010-2011, o número de internos aumentou 10,69%. Hoje existem 20.532 adolescentes nesses lugares, conforme dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Outras violações decorrentes dessa situação são destacadas no texto, como desamparo, falta de serviços essenciais, maus-tratos, tortura e falta de atendimento à saúde.

Apresentado à ONU a cada cinco anos, por determinação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), da qual o Brasil é signatário, o monitoramento destaca o número expressivo de pessoas que sofrem abandono, negligência e são vítimas de violência no convívio familiar. Em decorrência dessa situação e da pobreza, o Brasil tinha, em 2010, 36.929 crianças e adolescentes acolhidos em instituições, sendo a maioria de natureza privada. Estudos usados pela Anced estimam que 25 mil crianças sobrevivem nas ruas de municípios com mais de 100 mil habitantes no Brasil.

Um aspecto positivo apontado pelo levantamento foi a diminuição, entre 2000 e 2010, da exploração econômica da criança e do adolescente, embora tenha havido aumento de 1,5% dessa exploração entre pessoas de 10 a 13 anos. A maior parte da população infantojuvenil que trabalha tem entre 14 e 17 anos e está nessa condição por motivos ligados ao tamanho da família, à renda e à escolaridade dos pais. Para a Anced, tais aspectos devem nortear as políticas públicas para que o Brasil cumpra o objetivo de erradicar o trabalho infantil.

“O Brasil assume posição de destaque no mundo nessa seara, porque apesar de os homicídios afetarem a população como um todo, a população adolescente e jovem é, especialmente, vitimizada, sendo os adolescentes e jovens do sexo masculino e negros as maiores vítimas de homicídios. E quando se trata de homicídios cometidos por agentes do Estado (policiais) as circunstâncias e os procedimentos para a apuração dos casos são permeados de impunidade”, ressalta trecho do Relatório.

O documento aponta ainda a falta de coordenação entre as políticas públicas brasileiras voltadas à infância e à juventude, a deficiência no atendimento médico de crianças indígenas e também a desatenção em relação àquelas que vivem em regiões consideradas de risco, em situação de rua, em centros de internação, entre outros.

Os dados do Relatório Alternativo sobre os Direitos da Criança são uma confirmação dos números apresentados pela 5ª edição do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), estudo apresentado no último dia 28 e realizado em uma parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV­UERJ) com objetivo de permitir o monitoramento sistêmico da incidência de homicídios entre a população jovem, contribuindo para a avaliação das políticas de prevenção à violência.

Massacre

O IHA, com base no ano de 2012, estima que mais de 42 mil adolescentes de 12 a 18 anos poderão ser vítimas de homicídio nos municípios brasileiros de mais de 100 mil habitantes entre 2013 e 2019. Isso significa que, para cada grupo de mil pessoas com 12 anos completos em 2012, 3,32 correm o risco de serem assassinadas antes de atingirem os 19 anos de idade. O número equivale a 42 mil adolescentes com faixa etária entre 12 e 18 anos.

De acordo com Raquel Willadino, coordenadora da pesquisa, e diretora do Observatório de Favelas, Alagoas é o estado brasileiro com maior índice homicídios na adolescência: são 8,82 jovens a cada 100 mil. O menor número fica com Santa Catarina, com 1,14 a cada grupo de cem mil. 

Para Alexandre Ciconello, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil, os números são chocantes. “Não é possível que diante de uma escala tão grande de violência letal contra adolescentes e jovens no Brasil, este tema não seja a grande prioridade da agenda pública nacional e que não haja políticas efetivas de redução de homicídios por partes de governos municipais, estaduais e federal”, afirma.

Ele adverte sobre a inadmissibilidade destes números persistirem e serem tratados com normalidade pela sociedade e pelo poder público. “Por dia, 82 jovens são assassinados no Brasil, isso é um absurdo! Isso nunca poderia acontecer. A Anistia Internacional lançou a campanha Jovem Negro Vivo esperando contribuir com uma ampla mobilização nacional e internacional pelo fim dos homicídios no país. O destino de todos os jovens é viver.”

O perfil de jovem mais tingido pela violência, segundo o estudo da Anced, é bem definido: negro e pobre. No período da pesquisa, o número de vítimas brancas caiu 32,3% e o de negras aumentou 32,4%. Os números confirmam o resultado de outro estudo, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade, segundo o qual os jovens negros têm 2,6 mais chances de morrer do que os brancos.

Os dados da pesquisa foram atualizados em 2014 para incluir a desigualdade racial, e o resultado foi que o risco de os adolescentes e jovens de 12 anos a 29 anos sofrerem violência aumenta quando o fator racial é levado em conta.

Encomendada pelo Governo Federal ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a pesquisa também faz um recorte por unidades da Federação e coloca a Paraíba no topo do ranking. Lá, a chance de o jovem negro morrer violentamente, assassinado ou em acidentes de trânsito é 13,4 vezes maior do que a do jovem branco.

O perfil dos jovens vítimas da violência no Brasil é, para Alexandre Ciconello, um indicador das políticas públicas que devem ser fortalecidas no país. “Na sua grande maioria são homens e negros. Segundo o IHA, um jovem negro tem um risco 3 vezes maior de ser assassinado que um jovem branco. Os homens têm um risco 12 vezes maior de serem assassinados do que as mulheres. Ou seja, essa violência é seletiva. Esta pesquisa corrobora com outros levantamentos realizados nos últimos anos no Brasil, que tem demonstrado a vulnerabilidade de nossos adolescentes e jovens, especialmente os jovens negros. A sociedade brasileira tem naturalizado essas mortes e ainda poucos têm se mobilizado para enfrentar o verdadeiro extermínio de nossos adolescentes e jovens negros”, afirma.

Para Atila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil – que lançou em novembro do ano passado a campanha “Jovem Negro Vivo”, com peças publicitárias e um manifesto online que já conta com mais de 30 mil assinaturas – a guerra às drogas acabou virando uma guerra às juventudes das periferias das grandes cidades do país. Ele sustenta que resposta da sociedade brasileira a este massacre é a indiferença.

“Temos percebido que a sociedade está em negação e trata o alto número de homicídios como se eles fossem parte da paisagem. Isto acontece tanto porque as pessoas que convivem com as mortes já naturalizaram esta situação, como se ter parentes ou amigos assassinados fizesse parte da rotina, e também porque são jovens negros morando na periferia. A maior parte da classe média e alta não está preocupada com o que acontece tão longe de seus olhos. No início de janeiro, para citar apenas um exemplo, vimos o menino Patrick de apenas 11 anos ser morto com tiros de fuzil pela polícia, em circunstâncias que levantam muitas dúvidas sobre a legitimidade dessa morte, que é uma tragédia seja por qualquer ângulo que se olhe. E isso, uma morte de uma criança a tiros de fuzil, não gerou comoção, primeiras páginas ou escândalo. É isso que chamamos de naturalização”, afirma Roque.

Soluções

A Secretaria Nacional da Juventude desenvolve o Plano Juventude Viva como principal programa de enfrentamento a estes índices alarmantes. A finalidade é prevenir a violência contra a juventude negra em 142 municípios, considerados prioritários. Essas cidades concentraram, em 2010, 70% dos homicídios de jovens negros. Para Fernanda Papa, coordenadora do plano, os dados contribuem para analisar por que o jovem negro é mais exposto e mostrar a necessidade de mais políticas públicas para esse grupo.

Renato Sérgio de Lima, que coordenou o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade, destacou a importância de um monitoramento sistemático desses índices e da implantação de políticas voltadas à prevenção de mortes. Para ele, essa gestão integrada dos dados vai permitir “mapear de forma precisa os territórios que exigem investimento específico”, de forma inteligente. “Não é só passar dinheiro, é costurar grande pacto pela integração desses sistemas de monitoramento. O que o Brasil aplica não é suficiente, mas está longe de ser pouco. Precisa melhorar a qualidade de investimento”, defendeu.

Com os recursos, as políticas devem focar na redução da desigualdade racial e dos homicídios de jovens negros. “Não é uma questão de racismo, mas civilizatória”, declarou o pesquisador da Fundação Getulio Vargas. Para mostrar “claramente que a desigualdade racial afeta negativamente a vulnerabilidade juvenil”, explicou Renato, o estudo traz uma tabela que simula a eliminação completa da desigualdade racial e revela que o risco se reduz drasticamente em todos os estados.

Dos 142 municípios prioritários do Plano Juventude Viva, 100 aderiram ao plano e 47 já tiveram as ações lançadas, envolvendo inclusão social, a oferta de equipamentos e transformação de territórios onde há altos índices de homicídios. Evitar situações de violência nas esferas que estão ao alcance do Estado também faz parte das missões do plano, de acordo com a coordenadora Fernanda Papa. Ela reconhece a existência de alguns casos em que os agentes de segurança cometem abusos que acabam tirando vidas de inocentes e afirma que uma das formas de coibir o grau de letalidade policial é a “inclusão do tema do racismo na formação dos profissionais de segurança pública”.

Renato Sérgio Lima disse que os dados desconstroem a noção de que somos um país pacífico nesse quesito e revelam que não podemos mais esconder o problema sob o risco de estarmos boicotando nosso futuro. “Há um enorme passivo histórico. O Brasil, enquanto nação, foi construído com base na ideia de um país pacífico e de convivência entre as diferenças. Se a gente quer uma nação democrática, moderna e protagonista, vai ter que enfrentar esse problema”. Segundo ele, a população que está morrendo é a que vai fazer falta para que o país seja economicamente robusto daqui a pouco.


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