25/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

O direito de ter pai e o direito de não ter pai

Publicado em 29/01/2015 12:00 -

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A cena se passou na sala de audiências. Na pequena comarca (na qual não me encontro mais, há um bom tempo…), uma manhã normal de trabalho, processos de família e matérias afins. O caso era simples, buscava-se a regularização de uma guarda em favor de uma avó que já cuidava dos netos desde pequenos. A mãe precisara ir para cidade mais próspera, em busca de trabalho (tudo muito distante do mundo dos “doutores”). Todos se faziam presentes, inclusive as crianças, pequenas, uma menina, 8 anos avalio, e um guri, 4 ou 5 anos, não mais que isso. Observei tratar-se de pessoas humildes. Não existia litígio, a intenção era simples, obter um documento (termo de guarda) que permitisse àquela avó administrar os netos em face da distância da mãe. Sabemos todos, a vida hoje é muito burocrática.

Pois bem, tudo corria normalmente até que uma autoridade presente (com lugar cativo à direita do Juiz), devidamente acomodada em cadeira de espaldar, resolveu indagar.

“E o pai? Sabem quem é o pai?”.

Assim, de forma bem direta – a conveniência ou não da pergunta talvez só teria sido avaliada fosse outra a situação, fossem outras as pessoas… Diferentemente da entonação da voz utilizada na pergunta, a resposta veio baixa, quase inaudível… Reeditou-se a frase.

“Sabem quem é pai?”.

O constrangimento ficou evidente, a tensão tomou conta de todos: as crianças, como em combinação, baixaram o olhar, apertaram as mãozinhas que desde o começo não tinham acomodação certa. A mãe tentou explicar. A avó, então, incumbiu-se de esclarecer.

“O pai a gente sabe quem é, mas…”.

Interrompendo a fala da idosa senhora, a autoridade proclamou.

“O pai tem que registrar!”,

Após rápido silêncio, a avó tentou novamente falar.

“A gente sempre cuidou das crianças, e elas têm muito medo de serem levadas por ele”.

Já mais encorajada, a mãe acrescentou.

“Ele é casado, não queremos que registre as crianças. Nem precisa. Eu tenho companheiro”.

Foi quando a conversa tomou outro rumo, agora o tom era repressivo, sentencial.

“Vocês têm de entrar com a ação, de investigação de paternidade, é direito das crianças, é direito delas, é obrigatório! Tratem de fazer isso!”.

Do alto de sua autoridade e com conhecimento de causa, viu-se ela, a autoridade, com o dever cumprido, o Estado havia realizado o seu papel.

Desnecessário descrever o ar pesado do ambiente, nítido o constrangimento daquelas pessoas humildes, faces marcadas pelas dificuldades da vida, praticamente ameaçadas para que a tal providência legal fosse adotada. No fundo da sala, o rosto dos pequenos era de medo. A avó e a mãe não conseguiam esconder a angústia. Audiência encerrada.

Voltei para o gabinete, havia mais coisas a serem feitas. Mas o episódio não me deixou trabalhar, o pensamento estava distante. Nada de excepcional, afinal outras tantas vezes já havia presenciado fatos semelhantes.

Só agora compreendo a expressão de medo daquelas duas crianças. Nunca tiveram contato com o pai. No futuro, cumprida a ordem, talvez tenham de passear aos domingos na companhia de uma pessoa estranha, de um desconhecido.

Não sei bem a razão, mas agora me deparei pensativo… Este país é mesmo muito desigual.

Vejam a discrepância. A tal “produção independente” é uma realidade nos dias atuais. Mulheres esclarecidas, instruídas, decidem ter filhos, criá-los sozinhas, ou quando muito na companhia de familiares, ou mesmo de um companheiro, mas sem que se vá além disso. No registro da criança, apenas o nome da mãe, tudo muito tranquilo, transparente. Certamente não se enfrentará nenhuma situação de constrangimento por conta disso.

A prisão do famoso médico reacendeu a polêmica sobre a real destinação de embriões excedentes dos tratamentos de reprodução assistida, ficando nítida a possibilidade de uma mulher engravidar preservando-se da identificação do pai. No fim, virou caso de polícia, mas enfim…

Sim, tudo isso em relação a alguns, possibilidade reservada para poucos, mas precisamente para um grupo restrito de pessoas econômica e socialmente estruturado, porque, caso contrário, se uma mulher pobre, pele escura, de pouca instrução, tiver o desatino de entrar em uma sala de audiência e relatar seu caso, de manifestar seu desejo de não proceder ao registro do pai – por esta ou aquela razão – será sentenciada. É obrigação, é direito do filho ter um pai. E ponto final! Pelo menos foi isso que disse a referida autoridade, sem receber críticas. Pouco importa o resto. A lei há de ser cumprida, fazendo-se constar do registro de nascimento a paternidade, ainda que isto traga ao largo um vasto número de implicações, ainda que a vida dessas pessoas possa ser transformada, transtornada.

Só agora compreendo a expressão de medo daquelas duas crianças. Nunca tiveram contato com o pai. No futuro, cumprida a ordem, talvez tenham de passear aos domingos, “em finais de semanas alternados”, como geralmente faço constar em minhas decisões, na companhia de uma pessoa estranha, de um desconhecido.

Quanto à mãe, bem, terá de comparecer às audiências, viajar com os filhos até a capital para a realização da perícia, o DNA fará a prova da paternidade. É direito dos filhos! Não se contesta. Assim alertou a autoridade, fazendo girar sua confortável poltrona de espaldar. Também pouco interessa eventual desconforto perante o novo companheiro.

Enfim, as conclusões a serem retiradas são as mais variadas.

O direito de ter um “pai” (as aspas foram propositadamente colocadas porque a paternidade é muito mais do que figurar no registro de nascimento do filho): pode ser esta a melhor solução para a criança.

Por outro lado, o direito de não ter um “pai”, resguardando-se a privacidade da mulher e o bem estar da própria da criança, e da própria família.

Uma destas situações terá de prevalecer.

Não contesto a lei, o registro da paternidade é direito do filho.

Questiono apenas a dicotomia. Para uns é direito, para outros, obrigação.

Tudo dependerá da condição social e econômica das partes envolvidas.

Ivan Fernando Chaves – Juiz de Direito.


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