19/04/2024 - Edição 540

Especial

Escravidão

Publicado em 29/01/2015 12:00 -

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O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Ferreira Gullar

 

A beleza do poema de Ferreira Gullar ainda traduz, em pleno século 21, o horror da escravidão que permeia setores da sociedade brasileira. Na última quarta-feira, dia 28 de janeiro, o Brasil comemorou o Dia de Combate ao Trabalho Escravo. A data lembra o assassinato de três auditores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e um motorista durante operação de fiscalização de denúncia de trabalho escravo no município mineiro de Unaí, em 2004.  Assim como o fato que originou a data, o atual cenário do trabalho escravo no Brasil não traz motivos para comemorações. Nos últimos vinte anos, as operações de fiscalização no país resgataram mais de 47 mil trabalhadores submetidos a condições degradantes e a jornadas exaustivas em propriedade rurais e em empresas localizadas nos centros urbanos brasileiros.

De acordo com dados da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), desde 1995, quando o país reformulou seu sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo, foram realizadas 1.724 operações em 3.995 propriedades e aplicadas multas indenizatórias cujo valor supera os R$ 92 milhões.

Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), 1.590 trabalhadores foram resgatados da condição de escravo em todo o país ao longo de todo o ano passado. Minas Gerais foi o estado com mais trabalhadores resgatados, 354. A Região Sudeste, como um todo, se destaca em número de resgatados. São Paulo e Rio de Janeiro tiveram 159 e 123, respectivamente. No Espírito Santo, 86 trabalhadores foram resgatados.

A construção civil foi a atividade com o maior número de resgates de trabalhadores no ano passado, com 437. “Em 1995, quando começamos esse enfrentamento, não havia ocorrências de trabalho escravo nesse nível na construção civil porque o boom do setor vem dos últimos anos. Então, a gente tem resultados expressivos, principalmente em Minas Gerais, fruto de alojamentos sem condição digna de ser habitada na construção civil”, analisou Alexandre Lyra, diretor da Detrae.

Agricultura e pecuária também aparecem significativamente na lista. Enquanto a primeira surge com 344 pessoas resgatados, a segunda teve 228 resgates. “Esse tipo de trabalho ocorre muito em regiões de fronteira, afastadas, quando o trabalhador fica isolado, o que dificulta que ele consiga voltar para casa”, disse Paulo Sérgio Almeida.

A construção civil foi a atividade com o maior número de resgates de trabalhadores no ano passado, com 437 casos registrados.

O Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS) recebeu, nos últimos cinco anos, 243 denúncias de trabalho análogo à escravidão, firmou 66 Termos de Ajuste de Conduta (TAC) e 17 ações na Justiça do Trabalho foram ajuizadas. Somente em 2014, no estado foram investigados 24 estabelecimentos, nove TACs foram firmados e foram propostas cinco ações.

“Em Mato Grosso do Sul, a prática de trabalho escravo é mais comum no campo e ocorre por meio da contratação de empreiteiros para trabalhos temporários em atividades como roçado, construção de cercas e aplicação de agrotóxicos” afirma o procurador do trabalho Leontino Ferreira de Lima Júnior, coordenador de erradicação do trabalho escravo no Estado.

Em 1995, o Brasil reconheceu a existência e a gravidade do trabalho análogo à escravidão e implantou medidas estruturais de combate ao problema, como a criação do Grupo de Fiscalização Móvel e a adoção de punições administrativas e criminais para empresas e proprietários de terra flagrados cometendo esse crime. A política também criou restrições econômicas a cadeias produtivas que desrespeitam o direito de ir e vir e submetem trabalhadores a condições de trabalho desumanas.

Passados 20 anos da adoção de medidas que intensificaram o combate ao trabalho escravo, Alexandre Lyra disse que houve uma migração do ambiente onde se pratica esse tipo de crime, das zonas rurais para as cidades. “No ano passado, por exemplo, fizemos resgate em navio de cruzeiro de 11 tripulantes submetidos a jornada exaustiva. Temos agora a construção civil que, em 2013, foi o que mais apresentou resultado, temos o setor têxtil, em São Paulo. Então, temos uma mudança no ambiente em que está ocorrendo esse trabalho, mas a fiscalização, após 20 anos, está preparada para atuar”, disse Lyra.

Ruralistas na berlinda

Para Lyra, a aprovação da Emenda Constitucional do Trabalho Escravo pelo Congresso foi mais um avanço. Ele alertou, no entanto, para a importância da regulamentação da emenda e para a possibilidade de mudança no atual conceito de trabalho análogo à escravidão. Com a migração da prática do trabalho escravo do campo para as cidades, caracterizar esse crime apenas pela restrição de liberdade, como querem alguns setores no Congresso, em especial a bancada ruralista, seria um “retrocesso”, afirma.

“O que a bancada ruralista quer, agora com o apoio de outros setores, como o da construção civil, é que o trabalho escravo fique tão somente caracterizado quando houver a supressão de liberdade, que é uma ideia antiga, que perdurou até 2003, quando houve uma inovação legislativa na qual foram ampliadas as hipóteses de trabalho análogo ao de escravo no Código Penal”, alertou.

“Essa ideia de que trabalho escravo é apenas supressão de liberdade, vigilância armada e impossibilidade de ir e vir não encontra mais respaldo nas caracterizações atuais. Então, esvaziando do conceito do trabalho análogo ao escravo a condição degradante e jornada exaustiva, pouco sobrará.”

Leontino Ferreira de Lima Júnior reforça a ideia de que a proposta de mudança é uma tentativa da bancada ruralista de deixar o conceito de trabalho escravo menos abrangente, o que dificultaria mais o enquadramento e restringiria a atuação de combate. “O trabalho degradante é a principal característica do trabalho escravo moderno, o que mais aparece”, afirma.

A bancada ruralista quer, com o apoio de outros setores, como o da construção civil, que o trabalho escravo fique tão somente caracterizado quando houver a supressão de liberdade, que é uma ideia ultrapassada.

Para o procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo, o país ainda deve lamentar a existência do trabalho escravo, mas também reconhecer que houve avanços na enfrentamento do problema.

“Não podemos dizer que a situação está resolvida, mas avançamos muito desde 1994, 1995. Hoje, estamos muito mais organizados, muito mais articulados, mas ainda temos um caminho muito longo. Temos que lamentar o fato de um país rico como o nosso ainda ter uma chaga desse tamanho, que é o trabalho escravo contemporâneo, mas comemora-se o combate ao crime."

Para ele, a articulação entre os diversos órgãos públicos e organizações da sociedade civil possibilitou ao país o reconhecimento e o respeito mundial no que diz respeito ao combate a esse crime. Ainda segundo ele, a criação do grupo móvel de fiscalização e o lançamento do plano de erradicação do trabalho escravo foram “fundamentais” e “contribuem para um avanço significativo" no enfrentamento do problema.

Lyra lembrou que qualquer pessoa pode denunciar situações em que um trabalhador esteja submetido a situações degradantes usando o Disque 100. “Esse é o meio mais democrático, mas temos também a Comissão Pastoral da Terra, o Ministério Público do Trabalho ou os próprios postos do Ministério do Trabalho nos estados, basta discar 100 que um atendente especializado vai atender a denúncia.”

Perfil

Dos 1.550 trabalhadores resgatados de condições análogas a de escravo em 2014, 39,3% não tinha concluído o 5º ano do ensino fundamental, 32,8% eram analfabetos e 14,6% tinham do 6º ao 9º ano escolar incompleto. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que a maior parcela desses trabalhadores tinha como estado de origem o Maranhão (23,6%), seguido da Bahia (9,4%), do Pará (8,9%), de Minas Gerais (8,3%) e do Tocantins (5,6%).

De acordo com a CPT, o perfil do trabalhador resgatado se mantém com a predominância de migrantes do interior em busca de trabalho fora do estado de origem.

“Ele é um trabalhador migrante que sai do interior de regiões empobrecidas do Maranhão, Piauí, do Pará e do Tocantins e se dirige para as frentes onde há possibilidade de trabalho. Essa situação evoluiu bastante porque as rotas de migração levam os trabalhadores também para grandes obras e regiões de economia mais aquecida. As obras da Copa do Mundo também tiveram um efeito muito importante”, explicou  o coordenador da Campanha Nacional De Olho Aberto para não Virar Escravo, da CPT, frei Xavier Plassat.

Apesar de uma mudança da incidência de trabalho escravo nos últimos anos, das atividades consideradas rurais para as urbanas, a agropecuária, a lavoura e o carvão ainda lideram o ranking da CPT como “campeões” no recrutamento de pessoas para trabalho escravo.

Dos 1.550 trabalhadores resgatados de condições análogas a de escravo em 2014, 39,3% não tinha concluído o 5º ano do ensino fundamental.

Ainda segundo dados da comissão, em 2014, Tocantins (188), Pará (113), Minas Gerais (158), São Paulo (137) e Maranhão (52) foram os estados em que mais se libertou trabalhadores em condições análogas à escravidão.

A mobilização institucional de entidades governamentais e da sociedade civil, nas últimas duas décadas, conseguiu libertar milhares de trabalhadores do trabalho análogo à escravidão e deu ao Brasil reconhecimento mundial.

Contudo, para frei Xavier Plassat, esse crime está tão enraizado na sociedade brasileira que o aumento da fiscalização levará também ao crescimento da descoberta de trabalhadores submetidos a situações degradantes.

“Onde vai o fiscal do trabalho ele encontra trabalho escravo”, afirmou Plassat. Para ele, como há limitações para as ações de fiscalização por parte dos órgãos federais e estaduais sempre há necessidade de “priorizar” algumas áreas ou estados em detrimento de outras em vez de agir ao mesmo tempo em todos os lugares. “Se são destacados muitos fiscais para um estado do Sul ou do Centro-Oeste, por exemplo, não se vai levar [fiscalização] para o interior da Amazônia”, exemplificou.

Apesar dessa realidade, o religioso acredita que o país tem razões para comemorar depois de 20 anos de implementação de medidas que intensificaram o combate ao trabalho escravo contemporâneo. “O Brasil tem o que comemorar em algumas coisas, mas há muitas limitações. Comemoramos a construção de instrumentos válidos de combate ao trabalho escravo, o potencial em que eles são utilizados varia conforme as restrições orçamentárias, o número de fiscais, mas temos instrumentos importantes, como o Grupo Móvel de Fiscalização”, ressaltou Plassat.

Poucos fiscais

Apesar do crescente aumento de denúncias contra empresas que utilizam mão de obra escrava, o número de auditores fiscais do trabalho, responsáveis pela fiscalização das condições dadas pelas empresas aos trabalhadores, vem sendo reduzido nos últimos anos.

De acordo com a presidenta do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Rosa Maria Campos Jorge, atualmente, o grupo de inspeção do trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, conta com o apoio de quatro equipes do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. De acordo com a presidenta do Sinait, o número de equipes já chegou a nove, mais que o dobro do contingente atual.

A redução de pessoal para atuar no combate e na fiscalização do trabalho escravo compromete, segundo Rosa Maria, os resultados da política de enfrentamento ao crime. "Essa é nossa primeira dificuldade: o baixo número de auditores. Estamos reduzidos a quatro equipes do grupo móvel. Há uma demanda muito grande de denúncias e os auditores têm se desdobrado para dar conta desse volume", reclamou. Para ela, o grupo constitui um dos principais instrumentos do governo para reprimir o trabalho escravo no país.

Já o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, Alexandre Lyra, informou que os órgãos responsáveis pelo trabalho de fiscalização não têm sido prejudicado pelos cortes orçamentários dos últimos anos.

"Historicamente, nunca sofremos restrições em decorrência dos cortes orçamentários. A rubrica do trabalho escravo sempre manteve a sua capacidade de atuação e não temos casos de diminuição em ações fiscalizatórias em razão desses cortes", disse.

Além da redução do efetivo para ações de fiscalização in loco, a presidenta do Sinait considerou como um “grande golpe” a liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiu a divulgação da lista das empresas flagradas com trabalhadores em situações análoga à escravidão, conhecida como “Lista Suja” do trabalho escravo.

Ela disse que a publicação da lista contribui para que as empresas flagradas deixem de receber financiamento de bancos públicos e para que as pessoas evitem produtos oriundos dessas instituições.

Lista suja

Os ministros do Trabalho, Manoel Dias, e da Secretaria de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, tentam liberar a “Lista Suja” no STF. O presidente do STF, Ricardo Levandowski, concedeu liminar  à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) nos últimos dias de dezembro do ano passado. A entidade alegou não ter tido oportunidade de defesa.  Os ministros, no entanto, rebatem a alegação. “O Ministério do Trabalho notifica e dá direito de defesa às empresas. Se passado o período de defesa e a notificação for mantida, só aí que o nome vai para a lista. Então, os argumentos não correspondem ao que fizemos”, disse Dias.

Ideli explicou que já conversou sobre o tema com o advogado-geral da União, Luis Inácio Adams, e com a ministra Carmem Lúcia. O Ministério Público Federal (MPF) pediu revisão da decisão de Levandowski. É a primeira vez que a lista, divulgada semestralmente, não é liberada.

Embora não possa divulgar nomes, o secretário de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho, Paulo Sérgio Almeida, adiantou que a quantidade de nomes aumentou. Se na lista anterior, divulgada em junho, eram 574 empresas ou empregadores, a relação mais atual “passa dos 600”. Para o ministro do Trabalho, isso é um sinal positivo.

“Há um tempo não havia fiscalização e os números não eram divulgados. Na medida em que você aumenta a fiscalização, aumenta o número de resgate de trabalhadores. Esse é um ato positivo, que representa o sucesso dos nossos auditores. A tendência é aumentar esse número”.

Lista suja reúne mais de 600 empresas ou empregadores acusados de trabalho escravo ou análogo à escravidão.

A Abrainc, que entrou com ação contra a divulgação da Lista Suja, declarou que se posiciona contra o trabalho escravo e reconhece a importância de “ferramentas de controle ao trabalho nestas condições, dentre eles, o Cadastro de Empregadores”.

“Entretanto, o procedimento de inclusão dos empregadores no cadastro tem se mostrado arbitrário, afrontando os princípios constitucionais do devido processo legal e ampla defesa”, declarou a Abrainc por meio de sua assessoria.

Para o coordenador da organização não governamental Repórter Brasil e integrante da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, jornalista Leonardo Sakamoto, a proibição da divulgação da “Lista Suja” se insere em uma estratégica de “enfraquecimento” da política brasileira de combate ao trabalho escravo.

“Quem se utiliza do trabalho escravo não fica impávido esperando para ver o que acontece. Ele reage. Reage às fiscalizações e às punições. O que aconteceu é que o sistema econômico brasileiro que se utiliza do trabalho escravo está reagindo”, disse. Para ele, a tentativa de enfraquecimento do combate ao trabalho escravo também passa pela tentativa de “flexibilização” do que é considerado trabalho escravo.

“É aquela coisa: já que não se consegue impedir o combate, vamos mudar o conceito. Alguns setores querem alterar para diminuir o combate. A proibição da divulgação da Lista Suja é também atentado à liberdade de expressão, porque a Lista Suja nada mais é que uma base de dados de transparência”, acrescentou Sakamoto.

Referência

Apesar das manobras de setores conservadores e da falta de recursos, o Brasil é referência mundial em combate ao trabalho escravo segundo o coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Luiz Machado. “Nós temos mecanismos que não encontramos em nenhum outro lugar no mundo como os grupos especiais de fiscalização que atendem a todo o território”.

Ele destacou, também, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, do governo federal, com diversas ações, algumas cumpridas, outras em andamento e outras precisando ser aceleradas. “Como a prevenção e assistência à vítima porque precisamos romper o ciclo vicioso da escravidão. O trabalhador apesar de ser resgatado continua vulnerável e muitos voltam para a escravidão”.

Segundo Machado, no Brasil os mais vulneráveis são homens adultos, pobres de regiões com baixo índice de desenvolvimento, em busca da trabalho em outros estados ou mesmo aliciados. Entretanto, no mundo, as mulheres e crianças são mais escravizadas. “É um crime dinâmico e em outros lugares do mundo está envolvido com tráfico de pessoas e exploração sexual”.

Outro nó está na questão imigratória que tem ocorrido a partir da crise econômica internacional de 2008. São Paulo e outros estados do Brasil foram pontos de convergência importante, além de brasileiros que passaram anos fora do país e estão voltando. “Quando eu estou desconectado da realidade nacional e sem acesso a essas políticas públicas também estou vulnerável”, afirma a coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo, Juliana Felicidade Armede.


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