23/04/2024 - Edição 540

Entrevista

O direito constitucional não foi feito para amparar a maioria, mas a minoria, o indivíduo

Publicado em 23/01/2015 12:00 -

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Presidente da seccional sul-mato-grossense da OAB durante o triênio 2010-2013, professor de Direito Constitucional da Escola da Magistratura de Mato Grosso do Sul e da Escola Superior do Ministério Público e coordenador nacional do Exame da Ordem de 2011 a 2014, o advogado Leonardo Avelino Duarte lançou, em dezembro, em parceria com os advogados Danilo Elias Pereira e Renata Facchini Miozzo, o livro “Controle de Constitucionalidade perante a Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul”, onde analisa as Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas em Mato Grosso do Sul. Entre as conclusões da obra está o fato de que a maioria das leis consideradas inconstitucionais no Estado partem das Câmaras Municipais. Nesta entrevista, Duarte fala da importância das ADI no ordenamento jurídico e da luta pela garantia dos direitos das minorias na democracia brasileira.

 

Por Victor Barone

Qual a finalidade da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)?

A civilização chegou a um consenso de que você só pode forçar a conduta de uma pessoa se esta conduta estiver de acordo com a vontade da maioria geral das pessoas, que é traduzida no mundo jurídico pela Lei. Você faz ou deixa de fazer algo em virtude da existência da Lei. Sucede que se percebeu que as leis que traduzem a vontade da maioria das pessoas podem oprimir a minoria, o indivíduo. Por isso, se chegou a um acordo segundo o qual acima das leis deve existir o que se chama de Constituição. A Constituição é importante, pois ela traduz e condensa os valores fundamentais de uma sociedade e impede que haja a ditadura da maioria sobre a minoria. A ADI tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é inconstitucional, ou seja, contraria a Constituição.

Na alteração do jogo jurídico fundamental, das regras de convivência, para a alteração destas regras básicas de convivência social, tem que haver a participação da minoria. Para alterar a Constituição é preciso que haja a participação das minorias. Por isso se diz que uma norma que agride a Constituição agride as regras essenciais do jogo jurídico, agride as regras essenciais de convivência social. E a maneira mais rápida, mais direta e segura de evitar que uma lei que agrida as regras fundamentais do jogo jurídico seja imposta a todos é a ADI. Por isso ela é fundamental neste sentido.

A democracia não pode ser a ditadura da maioria, é um conceito importante nos dias atuais.

Sim. E é um conceito pouco compreendido ainda hoje. Já houve momentos em que a ditadura da maioria se impôs a minoria. Por exemplo, a ascensão do nazismo ao poder se deu através do jogo democrático. A maioria do parlamento nazista impôs vontades à minoria comunista, conservadora, detentora de outros valores que não aqueles momentaneamente alçados ao poder. A civilização ocidental à época tomou isso como um choque profundo, esta ditadura da maioria sobre a minoria. Daí que, hoje, na grande maioria dos países, a alteração da vontade jurídica fundamental, as constituições em geral, tem que ser feitas através de maioria qualificada que exige a participação da minoria.

No Brasil isso envolve a concordância dos partidos.

Sim, no Brasil, além de ser necessária esta maioria qualificada, você, para votar uma emenda à Constituição, precisa ter necessariamente a autorização dos chefes de todos os partidos políticos representados no Congresso. Se um deles não quiser que a matéria vá a votação ela não vai. É preciso haver muita articulação, muito consenso, inclusive com a minoria, para você aprovar uma emenda à Constituição.

As políticas de amparo social, necessárias, são utilizadas pelos governos de plantão, como políticas de manutenção no poder.

No Brasil este arcabouço democrático garante os direitos das minorias?

Há um arcabouço jurídico montado para que se evite esta ditadura da maioria sobre a minoria, mas não é um jogo ganho, especialmente na América Latina, que passa por um momento onde se confunde populismo com vontade democrática. Não acho que há um risco evidente para o Brasil, mas também penso que temos que ter cuidado. Historicamente não é um perigo do qual nós nos afastamos completamente. É sempre bom lembrar que, se um país desenvolvido e educado como a Alemanha sofreu este dano, qualquer país pode sofrer. No direito se diz que os países que permitem a alteração da Constituição como se ela Lei fosse, ou seja, os países que tem constituições flexíveis, como a Inglaterra, são países que tem muita tradição de direito público já consolidada. Portanto, nosso direito protege as minorias, mas não podemos nos gabar de que vencemos a guerra.

Em que fronts o senhor apontaria espaços de conflito entre a maioria e minorias no Brasil?

Um fenômeno que pode ser apontado em toda a América Latina são as políticas de amparo social, que são necessárias, mas utilizadas pelos governos de plantão, de momento, como políticas de manutenção no poder. O que no Brasil é agravado pelo fato de termos um presidencialismo de consenso, onde para que se tenha a maioria necessária para tocar o governo é necessário que se distribua cargos entre os partidos aliados, o que não é bom, pois confunde oposição e situação, dilui a necessária oposição no jogo democrático e, fundamentalmente, transforma partidos, que deviam ter uma matriz ideológica de governo, em instituições que simplesmente buscam espaço no poder. Não é bom isso.

O senhor acaba de publicar um livro sobre a ADI no âmbito da Constituição de Mato Grosso do Sul. Qual o enfoque específico da obra?

Não havia no Estado de Mato Grosso do Sul um estudo pormenorizado sobre as leis declaradas inconstitucionais. Nosso Estado é relativamente novo, nossa Constituição estadual é nova, vem de 1989, de forma que eu e dois colegas nos dedicamos a pesquisar quais leis haviam sido consideradas inconstitucionais em nosso Estado, quais eram os instrumentos que a Constituição estadual permitia que fossem utilizados para que estas leis fossem consideradas inconstitucionais e ao nos debruçarmos sobre isso acabamos fazendo um estudo completo sobre o fenômeno das leis inconstitucionais no âmbito do nosso Estado.

Se eu fosse fazer uma crítica construtiva aos legislativos municipais eu diria que eles se equipassem com assessorias jurídicas mais qualificadas.

Entre as conclusões maios curiosas do livro foi que a grande maioria destas leis consideradas inconstitucionais foi feita por vereadores que usam da competência privativa do Executivo.

Exato. Vereadores que querem tomar competências que a Constituição dá aos prefeitos.

Falta preparo aos vereadores neste sentido?

Não diria que falta preparo ou conhecimento dos vereadores. Esta é uma missão das assessorias jurídicas. Não se pode exigir dos vereadores preparo (jurídico), o que se deve exigir dos políticos é uma ideologia de governo, uma matriz ideológica. Se eu fosse fazer uma crítica construtiva aos legislativos municipais eu diria que eles se equipassem com assessorias jurídicas mais qualificadas. Mesmo as Comissões de Constituição e Justiça destes aparelhos legislativos muitas vezes não funcionam. Revelam embates de um jogo de poder que deve existir entre o Legislativo e o Executivo, um controlando o outro, mas não deve permitir que um usurpe o papel do outro, como nosso estudo acabou revelando.

Que tipo de Lei inconstitucional aparece com mais frequência em MS?

Por exemplo, a Constituição garante que o Executivo proponha leis que criem cargos para o Executivo. Só os prefeitos podem pensar em aumentar os cargos da Prefeitura e ele pode propor à Câmara a criação destes novos cargos. O que se vê são os próprios vereadores tentando criar cargos na estrutura do aparelho do Executivo.

De 1989 até novembro de 2014 foram julgadas 181 ADIs em Mato Grosso do Sul, sendo 113 julgadas procedentes e 26 sendo improcedentes. É um número elevado?

Não, não é.  Ao contrário. Há espaço para proposituras de mais ações. Especialmente no que toca ao controle ambiental. Há uma concentração de proposituras de ADIs no âmbito de ações de Governo, mas não de políticas de Governo. Se alguém cria uma lei que agrida o poder de outro órgão, podemos dizer com segurança que a ADI vai ser proposta. Mas, se alguém elabora uma lei que viola alguma política estabelecida na Constituição Estadual, seja de proteção ambiental, direitos sociais, manutenção de políticas de Governo é necessário que se procure o Ministério Público, a OAB, para que, só depois que estas instituições sejam acionadas, a ADI seja proposta.

Pode e deve haver proteção às minorias. O Estado brasileiro só agora acordou para esta questão, e acordou tardiamente para a evolução dos gêneros.

Os meandros para a apresentação da ADI são intricados? Deveriam ser mais fáceis?

A Constituição restringe a legitimidade para a propositura de ADIs a certos operadores jurídicos. E é assim no mundo todo, pois a ADI é uma ação muito forte no sentido de que ela extirpa do ordenamento jurídico a manifestação da vontade da maioria do povo. O Brasil é um país que dá legitimidade a propositura da ADI a um grande número de pessoas. A questão não é essa. A população ainda não está educada no Brasil para cobrar dos legitimados a propositura da ADI. É como se este caminho fosse muitas vezes esquecido.

Há dois temas em debate na sociedade brasileira, hoje, que colocam interesses de grupos específicos, cada qual com seus interesses legítimos, em confronto. Um deles é a questão da mistura entre religião e Estado. Recentemente, em Campo Grande (MS), o caso da Quinta Gospel – evento cultural criado a partir de uma Lei que definia um dia específico para a realização de shows patrocinados pelo poder público para artistas de uma determinada religião – chamou a atenção da sociedade. Como estas questões religiosas se relacionam com o conflito entre maioria e minorias no país?

Em tese você pode dizer que o Estado brasileiro é laico, que ele não tem uma religião oficial. Mas, você não pode dizer que o Estado brasileiro, culturalmente, não permita a existência de religiões. Tanto permite que nós temos vários feriados oficiais de cunho religioso. Culturalmente falando, o Estado vai permitir a existência de feriados religiosos, e, portanto, de dias dedicados à música gospel, por exemplo. O que me chama a atenção neste episódio é que havia privilégio a certas religiões e não a outras manifestações culturais absolutamente legítimas, como a Umbanda. É um conflito que deveria ser discutido e acho que será discutido cedo ou tarde pelo nosso Tribunal.

Qual a sua opinião sobre este tema?

Não acho que seja válida a restrição, por mais que eu não comungue da religião. É uma manifestação cultural tão legítima como as demais. Ou, vamos admitir que o Estado brasileiro  é oficialmente cristão, como faz a Argentina, que adota a religião católica como oficial, constitucionalmente falando. Nós não adotamos credo. Nossa Constituição admite a existência de Deus em seu preâmbulo, mas não adota credo. Podemos fazer manifestações culturais e feriados religiosos? Sim, é legítimo. Mas excluir manifestações que, a toda evidência, me parecem provenientes de religiões culturalmente aceitas pela nossa sociedade, mesmo que sejam praticadas por uma minoria, não me parece correto. O direito constitucional não foi feito para amparar a maioria. Ele, modernamente, é um direito de amparo à minoria, e a maior minoria é o indivíduo.

Já houve momentos em que a ditadura da maioria se impôs a minoria. Por exemplo, a ascensão do nazismo ao poder se deu através do jogo democrático.

Outro front muito marcado na sociedade brasileira se refere à questão de gênero, de sexualidade. Como estes grupos sociais podem ser protegidos da “maioria”?

Na questão da sexualidade ambos os lados se sentem agredidos. Os mais conservadores se sentem agredidos pela liberalização da cultura estatal em relação a isso. Um exemplo é o chamado “Kit Gay”, do Governo Federal, assim chamado pois promovia abertamente, em cartilhas para crianças, a neutralidade de gênero. No outro lado estão as minorias historicamente agredidas, esquecidas, colocadas às margens do Estado, que ainda lutam para conseguirem alguns direitos. Anos atrás, casais homossexuais tinham dificuldade para registrar uma união estável, que é uma questão patrimonial, de proteção. Isso, hoje, parece absurdo. Como fizemos isso com esta minoria? Hoje, me parece que esta questão está sendo superada. Pode e deve haver proteção às minorias. O Estado brasileiro só agora acordou para esta questão, e acordou tardiamente para a evolução dos gêneros. Durante muito tempo errou diante da proteção a estas minorias, especialmente quanto aos direitos patrimoniais e previdenciários destas pessoas que já viviam em regime afetivo de absoluta união com pessoas do mesmo sexo.

E em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo?

Há uma corrente jurídica que acha que casamento não é contrato, é ato religioso. Mas é uma corrente minoritária. Os que admitem que casamento é contrato vão falar com toda a tranquilidade que homossexuais podem e devem casar. Já aqueles que falam que casamento é ato religioso têm mais dificuldade para aceitar isso. A Constituição, para o bem ou para o mal, usou a expressão homem e mulher neste sentido. Família, perante a Constituição, seria a união entre homem e mulher. Seja como for, esta é uma discussão ultrapassada, pois o Supremo Tribunal Federal já disse que família pode ser também formada pela união de homem e homem, mulher e mulher. Para todos os efeitos, este debate está ultrapassado, juridicamente falando. Não se pode negar a estas pessoas proteção patrimonial, previdenciária e tampouco excluí-las do ceio social. Isso é andar para trás, para dizer o mínimo. Mas, é preciso que se acerte o tom.

Como assim?

É preciso acertar o tom. Qual a política social que devemos empregar em relação aos homossexuais?  Acho que deve haver uma política de inclusão social e esta política deve ser debatida. Não vejo o Estado brasileiro adotando uma política de inclusão social para estas minorias. O que é uma pena.


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