25/04/2024 - Edição 540

Especial

Epidemia de cesáreas

Publicado em 22/01/2015 12:00 -

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O governo brasileiro está determinado a diminuir o número de cesarianas feitas no país, que atualmente passa de 56% de todos partos. Na saúde privada a situação é ainda pior. Metade das 826 empresas de planos de saúde que fazem atendimento a gestantes tem percentuais de cesáreas acima de 90%. Em 2013, o índice de cesáreas nos planos de saúde foi de 84,5% – dez anos antes, em 2004, eram 79%. Entre as dez maiores operadoras de planos de saúde, o percentual varia de 64,7%, caso da Bradesco Saúde, a 97,3%, índice da Sul América.

Os dados são de um balanço da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que mostra o índice de partos cirúrgicos de cada operadora. E ele é um dos mais altos do mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam feitos por cirurgia. Na França, a taxa de 21% é uma das menores da Europa. Países nórdicos como Noruega e Finlândia conseguem que apenas 17% dos partos sejam por cesárea. Nos Estados Unidos a taxa é de 30%.

Para o ministro da Saúde, Arthur Chioro, os números preocupam. "É inaceitável a epidemia de cesarianas que vivemos no nosso país. E não há outra condição senão tratá-la como um grave problema de saúde pública. Não podemos sob hipótese alguma considerar a cesariana como parto normal.", afirma.

Origem

A tendência à cesárea no Brasil teve início a partir da década de 1970, quando o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) determinou que o médico só receberia se participasse efetivamente do parto. Naquela época, era comum a obstetriz fazer o parto, sob supervisão do obstetra. Ele só assumia se houvesse alguma intercorrência, como ocorre até hoje em países europeus.

Com a expansão do mercado de planos de saúde, falhas na regulação permitiram que a remuneração dos dois tipos de partos fosse muito parecida. Os médicos passaram a preferir cesariana, que pode ser programada e demora um quarto do tempo do parto normal.

Ao mesmo tempo, o aprendizado do parto normal foi perdendo força nas escolas de medicina. Hoje, até mesmo na residência em obstetrícia é mais comum o médico aprender a fazer cesárea do que parto normal.

Fenômeno parecido acontece em muitos hospitais, que não têm equipes obstétricas completas e treinadas para fazer o parto normal. Não é incomum a gestante chegar ao hospital e não encontrar um anestesista, por exemplo. Também há cada vez menos maternidades e vagas na área da obstetrícia. Então, para garantir vaga em um hospital privado, o jeito mais fácil é agendar a cesárea.

Há ainda uma cultura que se criou no país de que o mesmo médico que fez o pré-natal deva fazer o parto. Em países como Bélgica e Holanda, com altas taxas de parto normal, isso não acontece.

Em 2009, a ANS propôs que os hospitais tivessem equipes de plantão para acompanhar as primeiras horas do trabalho de parto. O obstetra seria acionado só quando o nascimento estivesse próximo. Também estudava a adoção do cartão da gestante e do partograma. Nada evoluiu desde então.

Falta informação

A falta de informação parece estar no cerne da epidemia de cesarianas no Brasil. É comum, por exemplo, o mito de que o procedimento é mais seguro para o bebê. Não é verdade. Via de regra a cesárea é feita antes mesmo da hora em que o bebê deveria nascer.

Os riscos de ligados a hemorragia, infecção, embolia, trombose e complicações anestésicas são muito maiores do que em um parto normal (duplicando o risco de morte da mãe, por exemplo). Sem contar que a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido aumenta em 120 vezes. Outras pesquisas apontam que a cesárea pode prejudicar formação do sistema imunológico dos bebês e dificultar amamentação na primeira hora de vida do recém nascido.

“É claro que há indicações especificas para a realização da cesariana. Nenhum médico vai colocar nem a paciente, nem o bebê em risco”, afirma a ginecologista e obstetra Simone Perdigão Cotta, especialista em infertilidade que atua no Institut Mutualiste Montsouris, em Paris.

Ela explica, no entanto, por que a França tem um dos níveis mais baixos de ocorrência de cesarianas. “A cesariana é feita apenas quando há indicação médica. As pacientes são informadas de que o risco de morbimortalidade dobra em uma cesariana, em relação ao parto normal. Eu acho que a informação faz toda a diferença. As pacientes participam da escolha de parto tendo todas as informações, mas a decisão é do médico. Às vezes, algumas solicitam uma cesariana por conveniência, quando elas não querem ter um parto normal. O médico tenta explicá-las que o parto normal a protege da morbimortalidade. Se houver muita insistência, um grupo médico avalia a situação – e pode recusar a cirurgia. Neste caso, a paciente pode procurar um outro serviço, que em geral é privado.”.

Novas regras

Para tentar mitigar o problema, o Ministério da Saúde e a ANS anunciaram no último dia 6 um conjunto de medidas aos quais as operadoras terão 180 dias para se adaptarem.

Haverá a obrigatoriedade dos médicos em preencher um partograma, espécie de registro gráfico de tudo o que ocorreu no momento do parto. O documento será um dos requisitos para que a operadora possa efetuar o pagamento dos procedimentos realizados.

Além disso, o partograma também criará um mecanismo de dados que poderão ser usados para fiscalização. Com isso, tanto as operadoras quanto a própria agência que as regula poderão saber se houve cesáreas indicadas sem necessidade.

Caso a operadora entender que isso ocorreu, poderá inclusive deixar de efetuar o pagamento, segundo a ANS. Outro ponto é que, com o partograma, as cesáreas não poderão ser marcadas com antecedência — uma vez que o documento começa a ser preenchido quando a gestante entra em trabalho de parto.

As gestantes também poderão solicitar às operadoras dos planos de saúde os percentuais de cesáreas dos hospitais e dos médicos credenciados. As operadoras terão o prazo máximo de 15 dias para enviar as informações, sob pena de multa de R$ 25 mil.

Outra medida que entra em vigor é a obrigatoriedade das operadoras em oferecer o cartão da gestante, documento no qual constará o registro de todo o pré-natal. As empresas também terão que fornecer uma carta com informações sobre os riscos de realizar uma cesárea sem necessidade.

As medidas, planejadas como forma de estímulo ao parto normal, têm público-alvo cerca de 24 milhões de mulheres hoje beneficiárias de planos de assistência médica com atendimento obstétrico no país, de acordo com a ANS.

Reação

Médicos avaliam que o incentivo ao parto normal deve ser acompanhado por mais infraestrutura nos hospitais e também por uma gestão adequada desse procedimento.
Para o ginecologista e obstetra Carlos Alberto Petta, do Centro de Reprodução Humana do Hospital Sírio-Libanês, a necessidade da presença do médico durante todo o parto pode ser revista em hospitais de grande porte.

Ele explica que o parto normal leva, em média, 12 horas, em vez das três horas da cesárea. Nesse tempo, diz o obstetra, o médico deve estar presente em todo momento, o que pode prejudicar o atendimento a outras pacientes. "Nos Estados Unidos, há a figura da enfermeira obstetriz, que acompanha a paciente. Há 30 anos era assim no Brasil também", diz.

Já para a obstetra Mara Diegoli, os hospitais devem estar preparados para manter uma equipe completa 24 horas dentro do hospital. "É preciso haver um anestesista, uma enfermeira obstetra, um médico obstetra e um pediatra 24 horas de plantão", afirma.

Também, segundo ela, deve-se garantir que toda gestante tenha acesso a um leito de maternidade, próximo de sua casa, sem precisar se preocupar em ser rejeitada por vários hospitais.

Médicos avaliam que o incentivo ao parto normal deve ser acompanhado por mais infraestrutura nos hospitais e também por uma gestão adequada desse procedimento.

Sobre o número alto de cesáreas registradas no país, Carlos Alberto Petta explica que o índice também é puxado por uma escolha da própria paciente, que quer a comodidade de ter uma hora marcada para o nascimento de seu filho. "O médico deve avaliar (o desejo da grávida), pois é ele quem vai responder pelo risco desnecessário. E a cesárea tem risco aumentado de infecções", afirma.

Os obstetras da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp) repudiaram as medidas. A entidade afirma que as determinações são "inócuas e escondem os verdadeiros motivos para os altos índices" desse tipo de parto no país.

Segundo Cesar Fernandes, da Sogesp, não é "carimbando" os médicos com suas taxas de cesáreas que o país terá mais partos normais. "Existe, sim, um número inaceitável de cesáreas, e o médico tem sua parcela de culpa. Mas essas medidas demonizam o médico e a cesárea. Dá a impressão de quem faz cesárea é um criminoso."

Segundo ele, é importante lembrar que a cesárea é indicada para preservar a saúde do feto e da mãe, e existe o direito da mulher de optar por ela. "Ela tem essa autonomia. Posso colocar argumentos para que ela reflita, mas o desejo dela é legítimo."

Fernandes afirma ainda que é preciso mexer em questões culturais e estruturais para reduzir as cesáreas. "Falta educação de médicos e pacientes, faltam equipes completas com anestesista de plantão e enfermeira obstétrica que acompanhem e motivem a gestante, faltam ambientes destinados ao parto normal nos hospitais privados. A mudança não vai ocorrer da noite para o dia."

Em nota, o Ministério da Saúde reagiu dizendo que "considera inaceitável qualquer tentativa de justificar o alto índice de cesariana no Brasil". "As medidas […] têm o objetivo de valorizar o parto normal e empoderar a mulher no seu direito de escolha por meio do acesso a informação, assegurando uma escolha consciente", diz a nota.

Privado x Público

A parteira britânica Lesley Page acredita que o sistema de saúde privado incentiva a prática de cesarianas em detrimento do parto normal. "Parte disso é incentivo financeiro. Com as cesarianas, o médico pode atender mais pacientes de uma vez só. Mas acho que vem mais de uma visão enganosa: os médicos acham que é um procedimento mais fácil e seguro", diz Page, que esteve no Brasil no ano passado participando de um congresso sobre o tema, organizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Page é diretora do Royal College of Midwives de Londres e uma das principais líderes do movimento pela humanização do parto, que clama pelo mínimo de intervenção possível no parto e pelo que Page chama de "direitos do nascimento": acesso a serviços de saúde e a inclusão da mulher no processo de decisão sobre o parto.

"A cesariana deveria ser apenas para as mulheres que realmente precisam dela. Não é possível que 52% da população feminina do Brasil tenha essa necessidade. Não há vantagem alguma para a mãe, para o bebê e para a população. Ainda por cima é caro. Deveríamos focar a atenção nesses 15% que de fato precisam dela", afirma.

Page observa uma contradição no que ela considera a excessiva "medicalização" do parto no Brasil. "Há provas de que as mulheres brasileiras estão se tornando mais saudáveis. Então, não faz sentido que a cesariana aumente", diz.

A pesquisa da Fiocruz mostrou que, entre as mães de primeira viagem da rede pública, 83% citaram o medo da dor do parto como principal razão para preferir a cesárea.

Para a diretora-presidente interina da ANS, Martha Oliveira, o número de cesáreas no país revela um "problema generalizado" em toda a rede privada. "Isso reflete não o funcionamento em uma região ou cidade, mas como se organizou a prestação de serviço no país. Não tem nenhum outro que seja assim", afirma.

Associações que reúnem diferentes categorias de operadoras de planos de saúde –FenaSaúde, Abramge e Unidas– dizem apoiar medidas para incentivo ao parto normal. Porém, pedem cautela na avaliação dos dados e afirmam que os índices "não dependem só das operadoras".

"A questão é: quem escolhe a modalidade de parto?", indaga José Cechin, diretor-executivo da FenaSaúde. "A escolha nunca é da operadora, é do médico e da parturiente", afirma.

"Muitas mulheres têm preferido o parto cesariano porque têm horário definido e a questão de não sentir a dor", diz Carlos Abbatepaolo, diretor-executivo da Abramge.

Medo e Opção

Realizada pela Fiocruz, a “Pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito Nacional Sobre o Parto e Nascimento” levantou dados de 24 mil gestantes de 266 maternidades públicas e privadas do país, mostrando que o medo de sentir dor no parto normal é o principal motivo que leva as mulheres a escolher a cesariana no Brasil.

A pesquisa mostrou que, entre as mães de primeira viagem da rede pública, 83% citaram o medo da dor do parto como principal razão para preferir a cesárea. Na rede privada, 69% disseram o mesmo. Em seguida, na lista de motivos para a escolha da cesárea, aparecem fatores como relatos de amigas e familiares e problemas de saúde. Mulheres atendidas na rede privada afirmaram ainda que a cesariana está associada a um bom padrão de atendimento e traz maior segurança para o bebê.

Ainda segundo a pesquisa, menos de 5% das mulheres utilizaram práticas recomendadas pela OMS para uma assistência adequada ao trabalho de parto.  "Mulheres no mundo todo têm medo da dor. A questão é como lidar com ela", diz Rosa Domingues, epidemiologista da Fiocruz e uma das autoras do estudo. Ela cita o exemplo da Inglaterra, onde as grávidas fazem cursos sobre como amenizar o sofrimento com massagens, caminhadas, água quente e anestesia. A pesquisadora lembra que a cesárea também pode trazer dores e que essa troca nem sempre é feita de maneira esclarecida.

Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Maria do Carmo Leal aponta os resultados da pesquisa, segundo os quais as gestantes brasileiras são proibidas de caminhar e de se alimentar para aliviar contrações, recebem ocitocina (hormônio sintético) para acelerar o parto e passam por procedimentos como episiotomia (corte vaginal para aumentar a dilatação) e ruptura artificial da bolsa.

“Essas coisas acontecem sem nenhuma anestesia, com as mulheres sofrendo muito, de forma que elas tenham pavor óbvio do parto normal”, analisou a pesquisadora. Conforme Maria do Carmo, as mulheres ficam na “pior posição possível” na hora do parto. "Elas ficam deitadas e, apesar de ser lei federal, muitos hospitais, públicos e privados, não permitem a entrada de um acompanhante. Ou seja, o Brasil não estimula um bom parto”, salientou.

A pesquisa revelou também que, no início da gravidez, seis em cada dez mulheres preferem parir naturalmente. A avaliação muda durante a gestação e, principalmente, na hora do parto, por causa da violência, explica a enfermeira obstétrica Heloisa Lessa, com doutorado na área. “O melhor ambiente para o parto é aquele parecido com o local onde o bebê foi concebido, com luz baixa. A mulher tem de se sentir tranquila. Se ela estiver relaxada, vai parir melhor”, assegurou.

Para Rita de Cássia Sanchez, coordenadora da maternidade do hospital Albert Einstein, é preciso informar a gestante sobre os prós e contras de cada opção. "Precisamos informar a gestante que ela não precisa ter medo e há formas de amenizar a dor. Mas o que acontece no meio desse caminho? Será que não é o médico que está gerando insegurança?".


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