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Em meio a pobreza e conflitos Al-Qaeda ganha força no Iêmen

Publicado em 16/01/2015 12:00 -

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Uma organização iemenita filiada à Al Qaeda reivindicou o ataque ao semanário francês "Charlie Hebdo", reiterando o chamado dos atiradores pela morte de quem insulta o profeta Maomé.

Dois dos terroristas de Paris se vincularam ao grupo, também conhecido como Al Qaeda na Península Arábica (AQAP). Pelo menos um deles parece ter feito treinamento no Iêmen, país que nos últimos 15 anos se transformou em um caldeirão de guerra civil, extremismo islâmico e contraterrorismo dos EUA.

Said Kouachi, 34 anos, um dos atiradores do "Charlie Hebdo", passou vários meses no Iêmen em 2011; seu irmão Chérif, 32, afirmou também ter viajado ao país mais ou menos nessa época. Depois de matar 12 pessoas em Paris, os dois irmãos disseram a dois transeuntes e à televisão francesa que eram "da Al Qaeda no Iêmen". Não está claro até que ponto o grupo de fato dirigiu a ação dos irmãos Kouachi.

Mas, uma declaração dada à Reuters por um funcionário governamental iemenita confirma a afirmação de Chérif Kouachi de que encontrou o líder da AQAP Anwar al-Awlaki, pregador americano-iemenita que acabou sendo morto num ataque de drone americano.

De acordo com um antigo colega de classe iemenita entrevistado pela AFP, Said Kouachi também estudou por algum tempo na Universidade al-Iman, uma escola religiosa controversa dirigida por sunitas radicais e capturada por rebeldes xiitas em setembro.

Como isso aconteceu?

Como os irmãos Kouachi e o terceiro atirador, Amedy Coulibaly, conseguiram passar pelas redes de segurança francesa sem serem flagrados é uma questão que será estudada minuciosamente por meses ou até anos, mas o mergulho do Iêmen no caos e no extremismo é algo mais claramente entendido.

O Iêmen só existe em suas fronteiras atuais desde 1990, com a unificação da República Iemenita Árabe (conhecida coloquialmente como Iêmen do Norte) e da República Democrática Popular do Iêmen (conhecida como Iêmen do Sul). Seguiu-se uma batalha política complexa entre grupos apoiados por setores financeiramente fortes, os militares, potências tribais e islâmicos, e o presidente iemenita do norte Ali Abdullah Saleh emergiu dela para liderar o novo país.

Na esteira das revoltas árabes que começaram em várias partes do Oriente Médio em 2010, explodiram choques violentos em torno da corrupção que cresceu durante os 22 anos de governo de Saleh. Este acabou abrindo mão de sua autoridade, num acordo mediado pelos EUA e os países do Golfo.

Mas a estabilidade do Iêmen, que já era frágil sob a égide de Saleh, deteriorou ainda mais após a saída dele. A turbulência interna do país favorecia havia muito tempo a ação dos simpatizantes da Al Qaeda (o navio americano USSS Cole foi atacado num porto iemenita em 2000), e os esforços de Anwar al-Awlaki no país a partir de 2007 reforçaram o perfil da AQAP.

A situação de desgoverno no sul do país ajudou a deixar al-Awlaki, cidadão americano, fora do alcance das autoridades dos EUA e iemenitas, até que ele foi morto por um ataque de drone em 2011.

O caos no sul do país é intensificado pelo fato de que forças iemenitas terem passado uma década combatendo os rebeldes Houthi no norte, um grupo cujo nome vem do líder de uma seita xiita Zaidi que quis arrancar o controle das mãos da maioria sunita.

Quando manifestantes saíram às ruas em 2011, os Houthis e a Al Qaeda iniciaram uma guerra entre eles e o governo, matando centenas de combatentes e civis em tiroteios, ataques à bomba e batalhas militares.

Tanto o ex-presidente Saleh, xiita Saidi, e seu sucessor, Abd-Rabbu Mansour Haddi, foram acusados de orquestrar a rebelião para ganho político próprio. No final de 2014, os rebeldes Houthi tinham tomado a capital, Sanaa, Hadi tinha perdido controle de boa parte do país e assinado um acordo de partilha do poder com os rebeldes, e a guerra civil tinha aberto oportunidades à AQAP, do mesmo modo como a guerra civil síria reforçou as finalidades muito diferentes do Estado Islâmico.

Questões em pauta

Terreno fértil para a radicalização: Um pré-requisito do sucesso de grupos extremistas como a AQAP é a presença de uma área fora do alcance da lei e da ordem, e as regiões desse tipo vêm crescendo dramaticamente no Iêmen nos últimos anos. Os militantes do Estado Islâmico (EI) tomaram o poder e ganharam apoio estrangeiro no vazio deixado pela guerra civil síria; o Boko Haram vem crescendo no nordeste miserável da Nigéria; islâmicos anti-Rússia sobrevivem nas montanhas do Cáucaso há décadas, e a Al Qaeda se escondeu durante anos no território de fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. Rachado pela guerra civil, o Iêmen tem sido um refúgio seguro para o extremismo e é provável que continue a sê-lo durante anos.

A corrupção e a pobreza alimentam a guerra e o extremismo. O Iêmen é um dos países mais corruptos do mundo, segundo a organização Transparência Internacional, e segundo a fundação Heritage o pagamento de propinas é endêmico no país. Os feudos criados por militantes, tribos e setores endinheirados criaram um país onde o dinheiro e as armas falam mais alto que a lei.

O Iêmen é também um dos países mais pobres do mundo, fortemente dependente do petróleo (cujos preços estão no nível mais baixo dos últimos cinco anos), mas com reservas minguantes, e sem conseguir usar sua riqueza petrolífera para impor ordem, como faz a Arábia Saudita. A desnutrição afeta milhões de pessoas, virtualmente não existe trabalho a não ser com segurança, e estima-se que metade dos iemenitas vivam na pobreza. O extremismo de um tipo ou outro, quer seja sunita, xiita ou secular, muitas vezes cresce e se prolifera na ausência de alternativas moderadas.

Esses fatores, somados às viagens aéreas baratas e à presença de uma minoria de ocidentais que se sentem solidários ou marginalizados em seus próprios países, abriram novas oportunidades para a AQAP.

Os ataques em Paris podem indicar que a tendência da AQAP a lançar atentados controlados com bombas -por exemplo, o atentado "com bomba na cueca"-pode estar dando lugar a formas de terrorismo menos diretas, mais livres. Nas palavras de Jason Burke, do "Guardian", autor de "Al-Qaeda: The True Story of Radical Islam", é possível que os irmãos Kouachi não tenham recebido ordens diretas para entrar em ação, mas simplesmente sentissem lealdade à Al Qaeda, "algo mais semelhante à lealdade dos torcedores de um time de futebol, em certo sentido".

O contraterrorismo ocidental: os EUA vêm travando há anos uma guerra oculta no Iêmen, através de drones e agentes da CIA, em grande medida aprovada pelos governos de Saleh e Hadi. Mas, como a Síria e o Iraque, o Iêmen representa um conjunto intricado de problemas de segurança para os quais não existe uma solução evidente ou imediatamente previsível.

Em setembro de 2014 o presidente Barack Obama disse que a estratégia americana contra o EI no Iraque pode espelhar as táticas "empregadas no Iêmen e na Somália há anos com êxito": essa estratégia de ataques com drones e investidas ocultas matou líderes da Al Qaeda e do Al Shabaab, mas também inflamou o ressentimento contra o Ocidente e não ajudou a levar ao estabelecimento da ordem em nenhum dos dois países.

Um relatório de 2013 do Departamento de Estado mapeou a ascensão sombria da AQAP no Iêmen, onde o grupo hoje desafia o governo de Hadi pelo controle de províncias inteiras.

Conflito

Os EUA lançaram menos ataques com drones no Iêmen em 2014 que nos anos passados, ao mesmo tempo em que o Iêmen tornou-se um lugar mais perigoso e opaco. Em setembro os EUA esvaziaram sua embaixada no país, e em dezembro a AQAP matou um refém americano após uma tentativa fracassada por forças especiais americanas, que não sabiam da existência de um segundo refém, que também foi morto.

Uma diferença chave entre as campanhas militares contra o EI e a AQAP é que a primeira inclui a coordenação com aliados dos EUA no Oriente Médio, como Jordânia e Arábia Saudita, e a cooperação "de facto" com o Irã.

Embora a inteligência da Arábia Saudita ajude o Ocidente e seus militares tenham sido acusados de participar de ataques no Iêmen, não existe um esforço coordenado para combater a AQAP à maneira como muitos países estão coordenando ataques, logística e forças terceiras para combater a ameaça mais nova do EI.

O que os países europeus fizerem em resposta aos ataques em Paris pode moldar os contornos da reação de contraterrorismo por muitos anos.

Um conflito mais amplo: como no Iraque e na Síria, a rivalidade entre a Arábia Saudita sunita e o Irã xiita está se reproduzindo com violência no Iêmen. Muitos sunitas acusam o Irã de apoiar a rebelião Houthi e fomentar o caos na porta da Arábia Saudita. Por sua vez, muitos xiitas acusam a inteligência saudita de manipular os fracos governos iemenitas.

Os interesses conflitantes da monarquia saudita e do Irã provavelmente não vão levar à violência direta entre esses dois países, mas vão complicar quaisquer operações de contraterrorismo em campo, na medida em que desestabilizam o Iêmen ainda mais.

Assim como a guerra sectária dividiu o Iraque, com coordenação a partir do Irã, enfraquecendo o governo e a realização das metas ocidentais, é provável que espiões e forças especiais rivais apenas criem mais anarquia no Iêmen.


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