27/04/2024 - Edição 540

Poder

Orçamento para os amigos

Publicado em 14/05/2021 12:00 -

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O governo de Jair Bolsonaro montou um esquema de rateio de recursos públicos entre parlamentares de sua base, fora dos controles orçamentários, conforme mostraram reportagens do Estadão.

Trata-se de um escândalo que espanta não apenas pelos valores envolvidos – em torno de R$ 3 bilhões, até onde a reportagem pôde verificar –, mas também pela sorrateira engenharia para escamotear a escassez de critérios técnicos e a abundância de critérios políticos para a distribuição do dinheiro. Nada nessa história parece nem remotamente republicano.

No esquema, dezenas de parlamentares governistas ganharam a chance de determinar a destinação de verbas do Ministério do Desenvolvimento Regional. O manejo dos recursos, por lei, cabe somente à pasta, dentro dos limites estabelecidos pelo Orçamento, mas o governo, no afã de agradar a sua base, simplesmente abriu mão dessa prerrogativa.

As verbas em questão resultam das chamadas “emendas de relator”, modalidade de emenda parlamentar ao Orçamento introduzida no ano passado. O relator-geral do Orçamento pode encaminhar emendas para, entre outros objetivos, remanejar recursos para determinadas áreas. Nessa modalidade, não cabe ao relator indicar qual município receberá o dinheiro nem qual obra será financiada. Essa tarefa – a execução orçamentária – é do Ministério.

Mas o governo de Jair Bolsonaro concedeu a parlamentares aliados a possibilidade de direcionar essas verbas remanejadas conforme seus interesses políticos. Deputados e senadores já têm a prerrogativa de encaminhar emendas pessoais ao Orçamento, nas quais apontam o beneficiário e a justificativa técnica do gasto, e em geral servem para atender a suas bases eleitorais. Nesse caso, as cotas são iguais para todos os parlamentares – e limitadas a R$ 8 milhões por ano. No esquema, contudo, quem vota com o governo ganha a chance de apadrinhar projetos cujo valor vai muito além do limite estabelecido para as emendas.

A título de exemplo, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), um dos premiados, determinou a destinação de R$ 277 milhões de verbas do Ministério do Desenvolvimento Regional. O senador levaria 34 anos para conseguir indicar esse valor caso se restringisse a encaminhar emendas parlamentares.

Os ofícios enviados pelos parlamentares para movimentar o Orçamento fora dos controles públicos mostram a sem-cerimônia. Nos documentos, obtidos pela reportagem, os políticos usam expressões como “minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados”.

Para adicionar insulto à injúria, parte considerável do dinheiro manejado pelos parlamentares destinou-se à compra de máquinas agrícolas a um custo várias vezes superior ao estabelecido pela tabela do governo. Portanto, há claros sinais de superfaturamento.

Grande como é, o escândalo agora revelado embute um outro, igualmente impressionante: é a incrível expansão da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), estatal que recebeu boa parte dos recursos irregularmente direcionados pelos parlamentares governistas.

A estatal, criada em 1974 para atender 504 cidades e desenvolver as margens do Rio São Francisco, hoje atua em nada menos que 2.675 municípios – alguns dos quais distantes 1.500 km do rio.

A dilatação da Codevasf foi patrocinada pelo presidente Bolsonaro, que incluiu mil municípios na cobertura da estatal com vista a ganhar apoio à sua reeleição. Até o Amapá do senador Alcolumbre, a léguas do Rio São Francisco, agora é atendido pela Codevasf. Ademais, Bolsonaro loteou as diretorias da Codevasf entre os partidos do Centrão, que trataram de articular a abertura de superintendências regionais para distribuí-las a aliados.

Assim, o presidente Bolsonaro ofereceu às raposas do Congresso não somente as galinhas, como os ovos e as chaves do galinheiro. Como se sabe, a elaboração e a execução do Orçamento são reguladas por rígida legislação, que exige total transparência. Mas Bolsonaro e seus felpudos associados não gostam muito de leis.

Senadores alegaram risco à segurança do Estado para manter orçamento secreto

Um grupo de 20 senadores alegou “segurança de Estado” e até “risco a sua honra e de sua família” para esconder ofícios enviados por eles ao governo com o objetivo de direcionar recursos do orçamento secreto. As respostas foram dadas, por escrito, a questionamentos feitos pelo Estadão com base na Lei de Acesso à Informação

A reportagem está baseada num conjunto de 101 ofícios em que congressistas dizem ao Ministério do Desenvolvimento Regional onde querem aplicar os recursos que ganharam do governo. De posse desses documentos, o Estadão procurou os congressistas para checar as informações. Os senadores foram os mais resistentes. 

Contemplado com a terceira maior cota do orçamento secreto – R$ 125 milhões – o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), respondeu que não iria divulgar os ofícios alegando que “documentos sigilosos produzidos ou sob a guarda do Senado Federal, observado seu teor, poderão ser classificados como ultrassecretos, secretos ou reservados”.

Fora da Lei de Acesso, o discurso do senador é outro. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira, 10, Bezerra disse que o orçamento “de secreto não tem nada”. “É votado, debatido, discutido, é publicado”, afirmou ele.

O senador Carlos Viana (PSD-MG) encontrou outra justificativa. Para ele, a “publicização geraria especulações” que poderão resultar em “ataques à sua honra, de seus familiares e do Senado Federal”. Padrinho político do superintendente da Codevasf em Minas Gerais, Viana direcionou R$ 32 milhões do orçamento para a estatal. Já o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) disse que se trata de documentos que, pela sua natureza, são “imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado”. 

Houve quem, ainda, considerasse um “abuso no direito de acesso à informação” a demanda do jornal pela “amplitude” do pedido. É o caso do senador Angelo Coronel (PSD-BA), contemplado com R$ 40 milhões do orçamento secreto. Consultado novamente ontem, ele respondeu, por meio da assessoria, que o sigilo é uma “estratégia política de relacionamento” com os municípios. 

Dos 52 senadores procurados, 20 nem sequer responderam aos pedidos feitos por meio da Lei de Acesso à Informação. A legislação obriga os entes públicos a se manifestarem num prazo inicial de 30 dias. A norma foi criada justamente para dar transparência ao setor público. Outros 23 parlamentares negaram ter enviado ofícios para o ministério. 

Pelo menos dois mentiram. O Estadão teve acesso a ofícios assinados pelos senadores Luiz do Carmo (MDB-GO) e Weverton (PDT-MA). Ao todo, eles indicaram R$ 31 milhões do orçamento secreto. Apesar de ser da oposição, Weverton foi contemplado com dinheiro do orçamento secreto em troca de apoiar Davi Alcolumbre (DEM-AP) na disputa pelo comando do Congresso. As assessorias dos dois senadores disseram que houve um “mal-entendido” na resposta enviada ao Estadão, mas não apresentaram os ofícios. 

Contemplado com a segunda maior “cota” do orçamento secreto, R$ 135 milhões, o senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI) recorreu à Advocacia do Senado para ver como poderia escapar da resposta. Sua justificativa virou um padrão entre seus colegas. Para Nogueira, o parlamentar não é “obrigado a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato”. Vinte gabinetes enviaram respostas idênticas ou semelhantes ao Estadão.

Ofensa

Apesar de os senadores admitirem e até justificarem a necessidade do sigilo, o presidente Jair Bolsonaro negou a existência do orçamento secreto. “Inventaram que eu tenho um orçamento secreto agora. Eles não têm o que falar. Como um orçamento foi aprovado, discutido por meses, e agora apareceu (sic) R$ 3 bilhões? Só os canalhas do Estado de S. Paulo para escrever isso aí”, disse Bolsonaro. 

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, encaminhou ontem ofícios ao Ministério da Justiça e à Controladoria-Geral da União (CGU) nos quais pede investigação sobre compra de tratores e equipamentos agrícolas com preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo. O dinheiro saiu do orçamento secreto. O Congresso também avalia abrir uma "CPI do Tratoraço".

Perguntas e respostas: O que é e como funciona o orçamento secreto revelado pelo ‘Estadão’

1. O orçamento secreto é emenda parlamentar?

Não. Embora o orçamento paralelo tenha origem em um tipo de emenda (isto é, uma modificação no Orçamento) feita pelo Congresso, ele não se confunde com as emendas parlamentares tradicionais, que são um importante mecanismo de distribuição de recursos e de participação da sociedade no Orçamento.

Em 2019, o então relator do Orçamento de 2020, o deputado Domingos Neto (PSD-CE) criou um novo tipo de emenda, chamado de emenda de relator-geral. Este novo tipo passou a ser identificado com o marcador de resultado primário (RP) 9.

Além desta inovação de 2020, o Congresso faz todos os anos outros tipos de emendas ao Orçamento: as emendas individuais, a que todos os deputados e senadores têm direito; as emendas de bancadas (RP 7) e as emendas de comissões.

Ao contrário das emendas de relator (RP 9), os demais tipos de emendas são distribuídos de forma igual entre todos os parlamentares. Sua aplicação pode ser acompanhada por meio de fontes públicas como a ferramenta Siga Brasil, desenvolvida pelo Senado Federal.

Já as emendas de relator (RP 9) são distribuídas conforme a conveniência política do governo, que determina quanto cada parlamentar terá direito. A indicação do destino do dinheiro é feita pelos congressistas de modo informal. Às vezes esta destinação é registrada em ofícios como os obtidos pelo Estadão, mas às vezes os acordos são verbais. 

2. Qual a origem do dinheiro?

O dinheiro do orçamento paralelo é fruto de um acordo entre governo e Congresso no começo de 2020. O valor total é de R$ 20,1 bilhões, e deste total, R$ 3 bilhões foram para o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), como revelado pelo Estadão.

No dia 18 de dezembro de 2019, Bolsonaro vetou um artigo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, o artigo 64-A. Este artigo dava a Domingos Neto o direito de direcionar R$ 30,1 bilhões em emendas de relator-geral (RP 9), conforme pedido por diferentes bancadas do Congresso. O artigo 64-A ia além e dava ao governo prazo de 90 dias para que os ministérios liberassem o dinheiro, sob risco de processo na Justiça. Segundo o artigo 64-A, a execução das emendas deveria observar “as indicações de beneficiários e a ordem de prioridades feitas pelos respectivos autores”. 

Diante do descontentamento dos deputados e senadores do Centrão com o veto, Bolsonaro chegou a um acordo com os políticos. O Planalto enviou ao Congresso no dia 3 de março de 2020 três PLNs (Projeto de Lei do Congresso Nacional), de números 2, 3 e 4 de 2020, mantendo parte da verba do RP 9. Uma parte dos R$ 30,1 bilhões voltou a ficar sob a alçada do Executivo, mas R$ 20,1 bilhões permaneceram no RP 9.

Graças ao acordo e ao envio dos PLNs, o veto aposto por Bolsonaro foi mantido pelo Congresso no dia seguinte, 4 de março. Assim, o Congresso derrubou a “impositividade” das emendas de relator, previstas no projeto inicial, em troca da manutenção de parte do dinheiro do RP 9. Foram 398 votos pela manutenção do veto, dois contrários e uma abstenção. O Senado não precisou votar. Esta é a origem do dinheiro do orçamento secret: os R$ 20,1 bilhões do RP 9 em 2020, mantidos por um acordo entre Governo e Congresso.

3. Por que falar em orçamento secreto?

Embora o dinheiro do esquema esteja no Orçamento Geral da União de 2020, a destinação das verbas é feita de forma sigilosa – a partir de acordos políticos. Ao contrário das emendas individuais, não é possível saber quem indicou o quê.

Toda a negociação para direcionar o dinheiro foi feita dentro do Palácio do Planalto, no âmbito da Secretaria de Governo (Segov), à época gerida pelo então ministro Luiz Eduardo Ramos, hoje na Casa Civil. Em alguns casos, os políticos encaminharam ofícios, que não são públicos, ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), dizendo como o dinheiro deveria ser gasto. Toda a destinação foi feita fora do alcance do público e dos órgãos de controle como o Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal de Contas da União (TCU), e a Controladoria-Geral da União (CGU).

4. Se era para a base aliada, por que alguns da oposição receberam?

Alguns deputados e senadores da oposição aparecem no chamado “planilhão” do Ministério do Desenvolvimento Regional, documento revelado pelo Estadão meses atrás e que mostra a destinação de R$ 3 bilhões na pasta comandada pelo ministro Rogério Marinho.

Eduardo Ramos, hoje na Casa Civil. Em alguns casos, os políticos encaminharam ofícios, que não são públicos, ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), dizendo como o dinheiro deveria ser gasto. Toda a destinação foi feita fora do alcance do público e dos órgãos de controle como o Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal de Contas da União (TCU), e a Controladoria-Geral da União (CGU).

4. Se era para a base aliada, por que alguns da oposição receberam?

Alguns deputados e senadores da oposição aparecem no chamado “planilhão” do Ministério do Desenvolvimento Regional, documento revelado pelo Estadão meses atrás e que mostra a destinação de R$ 3 bilhões na pasta comandada pelo ministro Rogério Marinho.

Estes oposicionistas, no entanto, foram beneficiados ao longo de 2020 como parte da cota do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), então presidente do Senado; e de Arthur Lira (PP-AL). O primeiro ofereceu a oposicionistas a possibilidade de indicar verbas em troca de apoio para sua tentativa de reeleição ao comando do Senado, depois barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Já Lira usou as indicações para obter apoio na disputa pelo comando da Câmara, vencida por ele no começo deste ano.

Um dos oposicionistas beneficiados, o senador Humberto Costa (PT-PE) disse ao Estadão que foi procurado por Alcolumbre com um aceno sobre a indicação de dinheiro. “Houve da parte do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, uma pergunta a nós da bancada do PT se nós tínhamos interesse de ter algum tipo de emenda além das parlamentares, aquelas impositivas. E nós dissemos que aceitávamos”, disse.

5. A compra dos tratores foi superfaturada?

Os políticos beneficiados pelo esquema direcionaram boa parte do dinheiro para compra de tratores e outras máquinas agrícolas a preços inflados. Há indícios de sobrepreço na compra das máquinas, pois os valores são, em vários casos, muito superiores ao indicado pelo próprio Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em tabela de referência de preços. Apesar da discrepância, o governo federal concordou com as compras e repassou o dinheiro aos municípios, que seriam responsáveis por fazer as aquisições na maioria das vezes. Apesar disso, muitas das compras ainda não aconteceram, embora os valores acima da tabela já estejam aprovados. 

6. Os parlamentares devem indicar o preço dos tratores?

Não. Mas vários dos deputados e senadores incluíram nos ofícios em que direcionam verbas o valor do quanto deveria ser pago pelas máquinas que pediram para comprar. Trator que deveria custar R$ 100 mil, seguindo a tabela do ministério, foi autorizado a compra com sobrepreço de 259%. 


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