25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Nova lei de licenciamento aprofunda condição do Brasil como pária ambiental

Publicado em 14/05/2021 12:00 -

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A Câmara dos Deputados aprovou ontem (13) o Projeto de Lei 3729/2004, que cria novas regras para o licenciamento ambiental no país. As mudanças estão em discussão no Congresso há 17 anos, mas, segundo organizações ambientais e os partidos da oposição, o texto apresentado pelo deputado e vice-presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), Neri Geller, não foi discutido previamente e foi escrito a "portas fechadas".

Entenda o tema em 7 pontos:

  1. O que é o Licenciamento Ambiental
  2. O que é diz o novo projeto aprovado na Câmara
  3. O principal argumento dos dois lados: quem votou a favor e quem votou contra
  4. Quais são os próximos passos
  5. O que está em jogo
  6. O que dizem as organizações e instituições ligadas ao meio ambiente
  7. O que diz o relator do projeto

1. O que é o Licenciamento Ambiental

É uma ferramenta da legislação que define a liberação, ou não, dos empreendimentos no país, com o objetivo de proteger o meio ambiente e os biomas brasileiros. Se a atividade for liberada, o licenciamento define medidas para que ela seja sustentável, com o menor impacto possível. Um novo grupo de empresários que quer criar uma hidrelétrica na Amazônia, por exemplo, precisa licenciar o projeto junto ao governo e levar em consideração as regras de licenciamento. É uma ferramenta legal para prevenir o desmatamento, a poluição e outros desgastes da natureza.

2. O que diz o novo projeto aprovado na Câmara

O novo projeto flexibiliza a lei de licenciamento ambiental, simplifica alguns processos e cria uma modalidade de autodeclaração. A lei também cria casos de dispensas para o processo de licenciamento, ou seja, não precisam passar pelo processo:

  • obras de serviço público de distribuição de energia elétrica até o nível de tensão de 69 kV;
  • sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário;
  • obras em rodovias que não levem ao aumento da capacidade, como no caso do recapeamento asfáltico;
  • usinas de triagem de resíduos sólidos, mecanizadas ou não;
  • pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos;
  • usinas de reciclagem de resíduos da construção civil;
  • ecopontos e ecocentros;
  • manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações pré-existentes ou em faixas de domínio e de servidão, incluindo dragagens de manutenção;
  • cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes
  • pecuária extensiva, semi-intensiva e pecuária intensiva de pequeno porte;
  • pesquisa de natureza agropecuária, que não implique risco biológico.

Há, ainda, o licenciamento simplificado chamado de "bifásico", "fase única" e "por adesão e compromisso". Para entender: normalmente, o licenciamento é trifásico e precisa de três licenças – prévia (LP), de instalação (LI) e de operação (LO).

Agora, com o "bifásico", o pedido de licenciamento pode ser feito "aglutinação de duas licenças em uma única", como diz o próprio texto. Junta-se LP com LI ou LP com LO.

O de "fase única" cria a Licença Ambiental Única (LAU). O novo projeto diz que "autoridade licenciadora deve definir o escopo do estudo ambiental", neste caso.

Por último, a medida mais criticada, é a Licença por Adesão de Compromisso (LAC). No caso, um documento criado pelo próprio requerente.

De acordo com Maurício Guetta, especialista em direito ambiental, a criação da LAC é mais criticada por facilitar a autodeclaração da maioria dos empreendimentos no Brasil. Na prática, a nova lei permitiria apenas um certificado feito pelo empreendedor.

"A LAC vai ser a regra do Brasil porque a enorme maioria dos empreendimentos licenciáveis não é de significativo impacto, é de baixo ou médio".

3. O principal argumento dos dois lados

A favor: Os apoiadores dizem que as mudanças previstas devem reduzir o tempo para a liberação do licenciamento, segundo eles muito demorado atualmente, o que deixaria "o empreendedor preso" sem saber qual decisão será tomada pelos órgãos responsáveis no governo.

O texto defende que "o Parlamento não pode assistir calado a tentativas espúrias de sufocar o produtor rural brasileiro, com base em interesses escusos ou desconhecimento de causa". Os autores do texto argumentam que é um projeto que visa acelerar o processo e reduzir a burocracia.

Contra: As mudanças no Licenciamento Ambiental do Brasil são discutidas há 17 anos e, segundo os grupos contrários ao novo texto, o PL 3729/2004 chegou às mãos da oposição faz apenas uma semana.

Além disso, as versões simplificadas, a autodeclaração e até a liberação do licenciamento dos novos empreendimentos podem aumentar a destruição dos biomas brasileiros, colocar em risco populações tradicionais e piorar ainda mais a imagem do Brasil no exterior. Outro ponto é que a fiscalização ainda estaria nas mãos de órgãos enfraquecidos pela gestão Bolsonaro, como o Ibama.

4. Quais são os próximos passos

O texto segue para a avaliação do Senado. O presidente pode pautar o projeto e dar despacho inicial para determinar em quais comissões do Congresso estará tramitando a lei. No entanto, assim como aconteceu na Câmara, pode haver um pedido de regime de urgência, com votação direta do plenário.

Se o texto for aprovado pelo Senado, segue para a sanção do presidente Jair Bolsonaro. Se a casa incluir algumas modificações, ele retornará à Câmara.

Ambientalistas e ex-ministros dizem que, se aprovado, o tema será alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal.

"Se o projeto de lei que dilacera o licenciamento ambiental virar lei, vamos entrar no STF, pois fere a Constituição. Tenho certeza que ação do PSB e outros partidos terá sucesso, pois o STF tem se manifestado sensível às questões ambientais e indígenas. Vamos ganhar essa também!" – Carlos Minc

5. O que está em jogo

Estradas como a BR-163, que corta a Amazônia e faz o transporte de grãos entre Pará e Mato Grosso, e a BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, podem ser asfaltadas sem a necessidade de um licenciamento ambiental. Além disso, ramais – estradas abertas de terra no meio da floresta – também poderiam ser asfaltados sem a exigência do processo. Tudo está a mercê de uma interpretação.

"A intenção é a dispensa para recapeamento, mas o conceito jurídico de melhoramento que está previsto não está contemplado juridicamente, o que pode levar a várias interpretações", avalia Guetta.

O documento também prevê que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) – registro autodeclaratório sobre propriedade das terras –, mesmo pendente de homologação, seja apresentado para o pedido de licenciamento. Diferentes estudos mostram uma sobreposição de áreas declaradas no CAR sobre terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação.

"O CAR vai ser o único instrumento necessário para a garantia da dispensa de licenciamento. Então, uma atividade que está sendo realizada ilegalmente em terras públicas com um CAR ilegal ou não homologado não precisará de licença", explica Guetta.

O licenciamento ambiental é uma das principais ferramentas que garantem o controle da criação de empreendimentos e atividades no território. Uma flexibilização deve aumentar a criação de estradas, áreas para pecuária e diferentes obras em todos os biomas brasileiros, sem levar em conta as questões ambientais e sociais.

6. O que dizem as organizações e instituições ligadas ao meio ambiente

Desde que o projeto foi colocado em pauta, o G1 recebeu dezenas de mensagens e cartas de políticos, organizações e instituições contrárias à aprovação. São algumas delas:

  • Ex- Ministros do Meio Ambiente: Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, Izabella Teixeira, José Carlos Carvalho, José Goldemberg, José Sarney Filho, Marina Silva e Rubens Ricupero;
  • Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA);
  • Associação Nacional dos Servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ascema Nacional);
  • Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC);
  • Mobilização Nacional Indígena (MNI);
  • Associação Brasileira de Antropologia (ABA);
  • Entidades Ambientalistas: Observatório do Clima – OC, SOS Mata Atlântica, Instituto Socioambiental – ISA, Greenpeace Brasil, Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS, Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC, Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN, WWF Brasil;
  • Movimentos do campo: Articulação Semiárido Brasileiro – ASA, Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST;
  • Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (ANAMMA);
  • Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema);
  • Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB).

A assessora de políticas públicas do Greenpeace Brasil, Luiza Lima, afirmou que a aprovação do texto "é uma afronta à sociedade brasileira":

"O país no caos em que se encontra e os deputados aprovam um projeto que vai gerar insegurança jurídica, ampliar a destruição das florestas e as ameaças aos povos indígenas, quilombolas e Unidades de Conservação", afirmou Lima.

Já a analista sênior de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araujo, diz que é "o texto da não licença, da licença autodeclaratória e do cheque em branco para o liberou geral".

Na mesma linha, outras organizações definem o projeto aprovado como: "total descontrole de todas as formas de poluição"; "avalanche de problemas sociais e ambientais". Veja mais posicionamentos.

7. O que diz o relator do projeto

O deputado Neri Geller argumenta que o projeto não pretende agredir o meio ambiente, mas facilitar um processo burocrático. Em seu texto (clique aqui para ler o projeto na íntegra), ele diz que exigir licenciamento das atividades que estão agora isentas "seria desnecessário e irracional" e "sem qualquer benefício ambiental'.

"Em outras palavras, vamos diminuir a burocracia cega, o copia e cola, o carimba e numera, para liberar os agentes dos órgãos ambientais ao que merece maior atenção: análise técnica e fiscalização".

Consequencias

A aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 3729/2004, denunciada por ambientalistas como sendo um mecanismo para virtualmente extinguir o licenciamento ambiental no Brasil, deixa um acordo comercial entre o Mercosul com a UE ainda mais distante e ameaça aprofundar o país na condição de pária ambiental.

Essa é a avaliação de negociadores, acadêmicos, políticos e diplomatas europeus que cobram um compromisso concreto do governo de Jair Bolsonaro com metas climáticas para permitir que o tratado possa ser ratificado.

Negociado ao longo de 20 anos, o acordo foi fechado em 2019. Mas, para entrar em vigor, precisava ser ratificado por todos os 27 parlamentos europeus. Diante da postura ambiental de Brasília, a opção de diversos governos foi o de colocar a ratificação na "geladeira".

Agora, com a aprovação da PL, a previsão de negociadores europeus é de que será ainda mais difícil convencer deputados a dar uma chancela ao projeto entre Mercosul e UE.

Antes mesmo da votação, uma das deputadas mais vocais em temas brasileiros no Parlamento Europeu, Anna Cavazzini, fez o alerta. "Que desastre", escreveu a representante do Partido Verde. "Isso vai significar o fim da necessidade de licenças para projetos potencialmente perigosos", disse.

Erika Berenguer, pesquisadora sênior das universidades de Oxford e Lancaster, no Reino Unido, é da mesma opinião. Segundo ela, a lei afeta a aprovação do acordo e coloca o país "ainda mais como um pária ambiental".

Sua avaliação é de que mesmo o diálogo entre o governo e o enviado de Joe Biden para o Clima, John Kerry, poderia ser afetado. "É uma sinalização que acredito que vai ser extremamente mal vista", disse.

"Imagina explicar que o asfaltamento de uma estrada vai ser autodeclaratório, sendo que as partes asfaltadas estão entre os hotspots de desmatamento na Amazônia", questiona. "Essa aprovação vai ter desdobramentos muito nocivos para os acordos internacionais", alertou.

Para as entidades, o impacto também pode ser sentido na candidatura do Brasil para aderir à OCDE. "Essa legislação é um grande empecilho à entrada do Brasil na OCDE e um contrassenso às promessas que o país vem fazendo para a comunidade internacional de reduzir emissões de carbono e proteger as florestas e suas populações", disse Julia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas Direitos Humanos. .

"Será impossível sustentar a narrativa de responsabilidade ambiental para parceiros comerciais cada vez mais preocupados com o impacto de seu consumo. Se o Brasil quer assegurar investimentos internacionais e fazer parte do comercio global, deverá garantir um meio ambiente seguro, equilibrado e que respeite seus povos", afirmou a representante da Conectas Direitos Humanos.

Luiza Lima, assessora de políticas públicas do Greenpeace Brasil, também reagiu. "É uma afronta à sociedade brasileira. O país no caos em que se encontra e os deputados aprovam um projeto que vai gerar insegurança jurídica, ampliar a destruição das florestas e as ameaças aos povos indígenas, quilombolas e Unidades de Conservação", disse.

"Assistimos, hoje, a uma demonstração clara de que a maior parte dos deputados segue a cartilha do governo Bolsonaro e vê a pandemia como oportunidade para 'passar a boiada' e atender a interesses particulares e do agronegócio", completou.

"É a Lei do Deslicenciamento. Esse projeto instala no Brasil o autolicenciamento ambiental como regra. Para dar apenas um exemplo, dos 2 mil empreendimentos sob licenciamento ambiental em curso na capital do Brasil, 1.990 passarão a ser autolicenciados a partir do primeiro dia de vigência da nova lei." André Lima, coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade.

"Com a aprovação da Mãe de Todas as Boiadas, a Câmara dos Deputados, sob a direção do deputado Arthur Lira, dá as mãos para o retrocesso e para a antipolítica ambiental do governo Bolsonaro", diz Suely Araújo, analista sênior de políticas públicas do Observatório do Clima.


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