28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Inquérito policial contraria versão da própria polícia sobre Jacarezinho

Publicado em 13/05/2021 12:00 -

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O inquérito policial que culminou na ação da Polícia Civil no Jacarezinho não cita a ocorrência dos crimes de sequestro de trens ou aliciamento de menores de idade na comunidade da zona norte do Rio de Janeiro, o que vai contra a explicação inicial da própria polícia sobre a investigação.

Logo após a operação —que terminou com ao menos 28 mortos—, delegados enumeraram a variedade e gravidade desses delitos para justificar a ação durante vigência da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que restringe operações policiais em favelas durante a pandemia.

O aliciamento de menores de idade para o tráfico foi o principal argumento do delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, para a ação ser considerada excepcional e, por isso, estar de acordo com a decisão do STF.

"Não é razoável, como estava acontecendo, como está devidamente registrado nas investigações, que menores de idade sejam aliciadas pelo tráfico. Crianças não as filhas dos traficantes, porque isso eles não fazem, eles acabam aliciando os filhos dos trabalhadores. No nosso entendimento é mais do que excepcionalidade", afirmou Oliveira em entrevista coletiva após a operação.

No entanto, não há qualquer registro desse tipo de conduta nas investigações que levaram aos mandados de prisão —apenas três dos 21 foram cumpridos na operação.

Análise de fotos e publicações nas redes

O inquérito elaborado pelo delegado Pedro Bittencourt, titular da DPCA (Delegacia de Proteção a Crianças e Adolescentes), analisa publicações, fotos e perfis em redes sociais para identificar integrantes do Comando Vermelho, facção que domina o tráfico no Jacarezinho.

A polícia cruzou dados do sistema de identificação civil com informações coletadas das redes, como tatuagens com nomes da mãe, publicação em dias de aniversário e felicitações de namoradas para localizar 23 suspeitos de integrar o tráfico e pedir a prisão preventiva de todos eles.

O inquérito policial instaurado em 29 de julho de 2020 foi encerrado em 13 de abril e estava alocado na DPCA por uma questão logística: Pedro Bittencourt era titular da 25ª DP (Engenho Novo) quando iniciou as investigações e, ao ser transferido para a especializada, em setembro de 2020, levou consigo o inquérito.

No pedido de prisão preventiva, Bittencourt argumenta que a região do Jacarezinho é considerada um dos quartéis-generais do Comando Vermelho e que é difícil de operar por conta das barricadas e táticas de guerrilha utilizadas ali.

O delegado também aponta elementos, com base nos conteúdos de rede social, para relacionar os indiciados com o tráfico de drogas —a maioria posou para fotos com fuzis, por exemplo.

A única menção em todo o inquérito ao crime de corrupção de menores de idade é na citação aos antecedentes criminais de dois indiciados, que já foram acusados de corrupção de menores —Isaac Pinheiro de Oliveira, um dos mortos na operação, e Moisés Pereira dos Santos, que não foi localizado e está foragido.

Operação não se justifica, diz advogado que acionou STF

Uma das principais críticas à operação é o fato de ela ter acontecido quando há em vigor a decisão do STF. A ação foi ajuizada pelo PSB, representado pelo advogado Daniel Sarmento.

Sarmento explicou que não há indícios de excepcionalidade que justifiquem a ação do Jacarezinho.

"Uma operação de combate ao tráfico é atuação ordinária da polícia. Excepcionalidade, no meu entendimento, tem que ser uma situação urgente, de risco à vida e à liberdade. Exemplo: pessoas mantidas em sequestro ou um tiroteio entre facções rivais", afirmou.

Além da ausência de justificativa plausível para uma operação como a de quinta-feira (6), Sarmento chama a atenção para outros problemas. "A decisão do Supremo diz que qualquer operação tem que ser cercada de cautelas extraordinárias para minimizar os riscos à população e que não pode remover corpos. Nada disso foi adotado".

Juntamente com a Defensoria Pública, o PSB voltará ao STF para questionar a legalidade da operação e investigar um crime de desobediência à decisão da Corte.

O que diz a Polícia Civil

Após ter acesso ao inquérito e à decisão judicial que autorizou as prisões, a reportagem encaminhou as seguintes perguntas à Polícia Civil:

– Qual é a prova efetiva de que havia aliciamento de menores dentro do Jacarezinho, já que não consta no processo?

– Sendo o tráfico de drogas a motivação da denúncia do Ministério Público, a operação ainda se encaixa nos critérios de excepcionalidade do STF?

A Polícia Civil respondeu que, "além do inquérito em questão, outros foram instaurados na DPCA [Delegacia de Proteção a Crianças e Adolescentes] para apurar a prática de crimes como aliciamento de crianças e adolescentes para integrar a facção que domina a comunidade do Jacarezinho e sequestros de trens da Supervia, por exemplo, entre outros".

"A Polícia Civil esclarece que as investigações não necessariamente precisam estar vinculadas a um mesmo inquérito. No caso específico do Jacarezinho, são várias informações e trabalhos de investigação e inteligência que basearam a operação."

A instituição também disse que, "em operações policiais, é comum que os agentes aproveitem para checar denúncias e informações de inteligência".

Comissão Arns, Anistia e OAB vão monitorar investigações

A Comissão Arns fechou uma aliança com a OAB e a Anistia Internacional para monitorar de forma conjunta as investigações sobre a chacina do Jacarezinho.

As entidades acertaram uma série de ações com o objetivo de acompanhar os inquéritos no Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e medidas no Supremo Tribunal Federal (STF). Participaram também da reunião representantes da ABI e da Defensoria Pública da União.

"Diante da gravidade dessa chacina, a Comissão Arns irá redigir memoriais para os integrantes da corte do STF sobre a ADPF 635, prevista para julgamento em 21 de maio, referente à proibição das operações policiais nas favelas ao longo da pandemia da Covid-19", explicou a Comissão Arns, em um comunicado.

"O grupo apoia a participação do MP-RJ na coleta dos depoimentos de testemunhas e avalia a possibilidade de federalização das investigações da chacina", disse.

Outro ponto de preocupação levantado pelas organizações é a segurança das testemunhas. "As autoridades serão cobradas para que medidas de proteção efetivas sejam acionadas imediatamente", destacou a Comissão.

No início da semana, a ONU havia alertado sobre a necessidade de se garantir que as testemunhas fossem protegidas para que não sejam alvos de represálias ou intimidações.

No Brasil, as três entidades ainda indicaram que vão agir para manter os organismos internacionais de Direitos Humanos informados sobre o andamento do inquérito e da apuração.

"Essa operação foi uma afronta ao Supremo, que já havia determinado a proibição desse tipo de ação durante a pandemia", disse José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns.

"Trata-se de uma intervenção planejada para realizar execuções sumárias. Por esse motivo, exigimos que a investigação seja transparente e rigorosa. Nossa preocupação é evitar que essa chacina seja como a do Morro do Fallet, hoje ameaçada de arquivamento", afirmou Dias.

Além dele, o encontro contou com Álvaro Quintão, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ, Nadine Borges, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ, Ítalo Pires Aguiar, secretário geral da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ, Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional; Alexandra Montgomery, diretora de programas da Anistia Internacional, além do defensor público Thales Treiger, e Cid Benjamin, vice-presidente da ABI.


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