24/04/2024 - Edição 540

Poder

Após acusar China, Bolsonaro refuga e assume que brasileiro (e chinês) é trouxa

Publicado em 07/05/2021 12:00 -

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Após insinuar que a covid-19 pode ter sido criada pela China como parte de uma guerra biológica, Jair Bolsonaro não sustentou o que disse – de novo. Segue, assim, o padrão de cortinas de fumaça que lança para encobrir denúncias contra ele e seus filhos. E assume, dessa forma, que tanto os brasileiros quanto os chineses são trouxas.

Neste caso, tentou abafar as revelações que estão brotando na CPI da Pandemia. O ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reforçou, na terça (4), que ele foi avisado que centenas de milhares morreriam e, mesmo assim, continuou sabotando o isolamento social. E o ex-ministro Nelson Teich disse, na quarta (5), que ele impôs a distribuição da cloroquina, apesar de sua inutilidade para a covid-19 e o risco de morte de brasileiros.

No último dia 5, Bolsonaro havia afirmado:

"É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas tá ai. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês."

Mas nem precisa: a China teve um crescimento recorde de 16,3% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. Foi o país economicamente relevante que mais cresceu.

À noite, contudo, quando a cortina de fumaça já havia surtido seu efeito, com o desvio de parte de atenção da imprensa e da sociedade para as suas bobagens, ele se fez de louco e disse que foi tudo intriga da imprensa.

"Mas eu não falei a palavra 'China'. Peraí, eu falei a palavra 'China' hoje de manhã? Eu não falei. Eu sei o que é guerra bacteriológica, o que é guerra química, o que é guerra nuclear. Eu seu porque tenho a formação. Só falei isso, mais nada. Agora, ninguém fala, vocês da imprensa não falam onde nasceu o vírus. Falem! Ou tão temendo outra coisa? Falem! A palavra 'China' não está no meu discurso de hoje, de quase 30 minutos de hoje. Agora, muita maldade tentar aí o atrito com um país que é muito importante para nós e nós somos importantes para ele também."

A última declaração emula o comportamento de crianças pequenas que xingam alguém sem dizer o nome e depois dizem que foram mal compreendidas, quando acusadas, afirmando que não disseram o que efetivamente disseram. Bolsonaro sabe que a sua fala da manhã atingiu a imprensa e excitou seus seguidores e, com isso, deu-se por satisfeito. Até que a China precise ser usada novamente para outra cortina de fumaça.

O problema é que a diplomacia chinesa não esquece. E não tem pressa em responder.

Caso ele tenha provas de que a gigante asiático criou um vírus em laboratório para uma guerra contra outros países, deveria trazer a público, contar ao mundo. Faria um bem enorme à humanidade. Contudo, acusando sem provas, apenas gera mais entraves junto ao nosso maior parceiro comercial e principal fornecedor de vacinas.

Não deixa de ser coerente com a sua política de sabotar o combate ao coronavírus para alcançar a imunidade de rebanho. Coerente e perversa.

Bolsonaro já usou a saúde coletiva como cortina de fumaça para encobrir outras denúncias. Por exemplo, no dia 4 de março, em Uberlândia (MG), chamou de "idiota" quem pede que ele compre vacina. "Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo!", afirmou. Algumas horas depois, em São Simão (GO), pisou no acelerador e sapateou em cima daqueles que choram sobre seus mortos. "Vocês [produtores rurais] não ficaram em casa, não se acovardaram. Nós temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?"

Como efeito colateral, as declarações reduziram o espaço no debate público para a compra de uma mansão de quase R$ 6 milhões por parte de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Denunciado por desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa, ele é acusado de comandar um esquema de "rachadinhas" quando era deputado na Assembleia Legislativa do Rio.

Os discursos dele também mergulham abruptamente no absurdo e no grotesco quando deseja tirar o foco de algo. Não que essa não seja sua natureza, mas algumas vezes Bolsonaro parece bolsonarista até demais.

Alguém que avança e retrocede sistematicamente passa também a imagem de que não sustenta o que diz. Ou seja, vive de ameaças vazias. Como um parente descompensado que, com o tempo, ninguém leva a sério e considera café com leite.

É o risco que Bolsonaro corre. As ameaças de autogolpe que ele profere não se concretizariam, pelo menos não fora do período eleitoral e cada vez mais as pessoas percebem isso. Essas estratégias, quando usadas à exaustão, demonstram fraqueza, não força.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), logo após o vídeo com a segunda declaração do presidente viralizar, resumiu a história: "Bolsonaro é, além de tudo, um frouxo".

Reunião

Wellington Dias (PT-PI), presidente do Fórum Nacional dos Governadores, enviou à embaixada da China um pedido de audiência virtual com Yang Wanming, representante do país no Brasil, para tentar contornar o mal-estar gerado por novo ataque de Jair Bolsonaro.

Os governadores querem enfatizar ao embaixador chinês que discordam de Bolsonaro e que são agradecidos pelo fornecimento de insumos para produção de vacinas.

A direção do Instituto Butantan afirmou na quinta-feira (6) que as declarações de Bolsonaro afetam a liberação de insumos pelas autoridades daquele país.

"Pode faltar [insumos]? Pode faltar. E aí nós temos que debitar isso principalmente ao nosso governo federal que tem remado contra. Essa é a grande conclusão", disse Dimas Covas, diretor do Butantan.

Ela acrescentou que até dia 14 há compromisso de entrega de vacina, de um lote que totaliza 5 milhões de doses, e que depois disso não haverá mais matéria-prima para processar.

Sinofobia do governo Bolsonaro

As metamorfoses fazem parte da política. Mas as transmutações do governo Bolsonaro no relacionamento com a China convertem esperteza em estupidez. Para animar sua milícia virtual nas redes sociais, Bolsonaro insinua que o coronavírus é uma arma criada em laboratório chinês como parte de uma "guerra bacteriológica". Apenas 48 horas depois de o capitão fazer pose de fortão, o ministro da Saúde Marcelo Queiroga e o chanceler Carlos França visitam o embaixador da China Yang Wanming para expor a fragilidade do Brasil, mendigando a liberação de insumos para a fabricação de vacinas.

O governo Bolsonaro ainda não percebeu. Mas a reação da China à sinofobia do presidente brasileiro mudou de patamar. Dessa vez, a resposta à ofensa do capitão não soou na embaixada chinesa em Brasília, mas em Pequim. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, declarou que o "vírus é o inimigo comum da humanidade." Disse que "a tarefa urgente de agora é todos os países se juntarem em uma cooperação anti-epidemia." E condenou a "tentativa de politizar e estigmatizar o vírus."

Em depoimento à CPI da Covid, Queiroga minimizou os efeitos da declaração tóxica de Bolsonaro. Ele informou aos membros da comissão que visitaria o embaixador chinês na companhia do chanceler França. "Vamos continuar trabalhando para manter as boas relações que o Brasil tem com a China", ele disse. O senador petista Humberto Costa ironizou: "Imagino que ajudou muito a fala do presidente. E o senhor vai chegar amanhã na Embaixada da China e vai ser recebido de braços abertos."

A China não cogita romper os contratos que preveem o fornecimento de insumos para as vacinas contra a Covid. Mas o atraso no fornecimento da matéria-prima da CoronaVac para o Instituto Butantan demonstra que a coisa poderia caminhar mais rápido se Bolsonaro compreendesse que a diplomacia traz no nome a essência da atividade. Para funcionar, precisa ser macia. Com uma pandemia a pino, a pose de valentão de Bolsonaro serve apenas como oportunidade para que a China demonstre ao gênio do Planalto que a diferença entre a genialidade e a estupidez é que a genialidade tem limites.


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