28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Fraudes grotescas’, diz delegado sobre madeira ilegal que Salles quer liberar

Publicado em 03/05/2021 12:00 -

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A maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil ainda rende capítulos incomuns no cenário político do país. Em dezembro de 2020, mais de 200 mil metros cúbicos do material vindos do Pará foram confiscados pela Polícia Federal no Amazonas. A carga, transportada em balsas pelo rio Madeira, representava a morte de aproximadamente 65 mil árvores de espécies como ipê, maçaranduba, cumaru, angelim.

Comemorada inicialmente pelo Ministério do Meio Ambiente, a operação sofreu, na sequência, interferência do ministro Ricardo Salles, que agiu para liberar a carga ilegal apreendida. A afirmação é de Alexandre Saraiva, delegado e ex-superintendente da Polícia Federal no Amazonas, que perdeu o cargo depois de se manifestar contra o ministro.

No dia 7 de abril, Salles se reuniu em Santarém, no Pará, com empresários alvos da apreensão de madeira ilegal e se comprometeu em apoiar uma eventual liberação das cerca de 40 mil toras após revisão da documentação, segundo noticiou a imprensa brasileira. O ministro teria dito que ouviu dos empresários que a madeira foi derrubada de maneira legal e pedido pressa na análise pela PF. Dois dias depois, ele afirmou à Folha de S.Paulo que uma "demonização" indevida do setor madeireiro vai contribuir para aumentar o desmatamento ilegal.

O último dia 26, Saraiva participou de uma audiência na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados e voltou a acusar Salles de "tentar passar a boiada".

Em entrevista à DW Brasil, o delegado deu detalhes da operação e apontou fraudes identificadas na carga apreendida. Segundo ele, mais de 50% do volume ainda não foram reivindicados por um suposto "dono". Uma empresa exportadora, que se diz proprietária de parte da madeira, deve mais de R$ 9 milhões de reais em multas para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Sob crescente pressão internacional pelo aumento desenfreado do desmatamento, o governo do presidente Jair Bolsonaro pede mais dinheiro à comunidade internacional para fortalecer a fiscalização na Amazônia. Saraiva protesta: "Não é uma questão de recursos, é uma questão de foco e de estratégia. A estratégia nós já temos", defende.

O delegado critica ainda a legislação europeia para importação de madeira e pede mais rigor na cadeia de rastreamento.

 

Como foi exatamente a operação da Polícia Federal que fez a maior apreensão de madeira da história e que depois teve a atuação do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles?

Em meados de novembro de 2020, nós vimos imagens de satélite que mostravam balsas no rio Madeira. Não dava para saber se elas estavam transportando madeira.

Tinha um avião nosso que levaria uma equipe para o sul do estado [Amazonas] para ajudar nas eleições, então pedi para o piloto, na volta, sobrevoar o local pra confirmar se as balsas transportavam madeira. Daí ele confirmou, as imagens mostraram.

Em seguida, nós mandamos uma equipe para lá, mas achávamos, até então, que a madeira vinha do Amazonas. Seis horas depois, quando chegamos lá, vimos que as cargas na verdade eram do estado do Pará. Fomos puxando o fio, pegamos outras balsas e, quando a gente viu, eram mais de 200 mil metros cúbicos de madeira.

Foram feitos laudos periciais mostrando que a extração era irregular. As terras ocupadas (de onde vieram as toras) são usurpadas, invadidas. Apesar de haver documentação, são produtos de crime, de invasão.

O flagrante da primeira balsa foi feito pela Justiça Federal do Amazonas. As apreensões que foram feitas na sequência estão claramente vinculadas à primeira. Mas um juiz do Pará, que estava de férias, deu uma liminar para que a gente devolvesse a madeira e os barcos sob multa diária de R$ 200 mil. Foi o primeiro golpe que tomamos.

Nós não devolvemos porque entendemos que o juiz não era competente para fazer aquela determinação, e não havia ocorrido uma intimação dentro das normas processuais. Mas foi um estresse.

Essa apreensão foi até comemorada no site oficial do governo. Tempos depois, políticos, senadores, começaram a reclamar com o ministro da Justiça, com o ministro do Meio Ambiente que a gente estava sendo muito radical, que não era bem assim, que estávamos nos apegando a detalhes.

Foi quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, interferiu publicamente?

Sim. Ele foi lá num dos pátios onde estava a madeira. Como é muita madeira, ela está armazenada em vários pátios. E um detalhe importantíssimo: aproximadamente 50% da madeira apreendida não foi nem reivindicada.

Salles fez uma reunião, marcou com as pessoas envolvidas de levar a documentação e, na outra semana, quando a documentação chegou aqui, eu pensei: "Por que eles estão me entregando isso?” Eu levaria seis meses para conseguir essas provas todas aqui. A prova do crime estava ali na minha frente.

A documentação era falsa?

Fraudes grotescas. Eles acharam que a gente não conseguiria avaliar.

Quais tipos de fraudes?

Primeiro a própria propriedade da terra. Se você quer explorar madeira, tem que ser de uma área que te pertence, ou que o dono autorize.

Segundo ponto: ignoraram completamente margem de rio, Área de Preservação Permanente, conforme estabelece o Código Florestal. Houve extração fora das áreas autorizadas.

Havia ainda espécies descritas na guia florestal deles que não constavam na carga. Posso mencionar mais de 30 fraudes diferentes encontradas.

O que aconteceu depois da reunião do ministro Salles?

Foi pedido que as partes mandassem os documentos pra gente, recebemos essa massa de papéis, muitos repetidos, creio que para dar volume.

Os documentos não faziam sentido e mostravam a fraude. Nesse momento, eu entendi que havia a necessidade de encaminhar essa informação ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que se trata de uma pessoa com foro privilegiado. Se não fosse, nós instauraríamos inquérito ou incluiríamos no inquérito ja em andamento.

O senhor está falando do ministro Salles?

O ministro e um outro senador que vinha atacando a operação há muito tempo. É o senador Telmário Mota, de Roraima.

[Nota do editor: a DW Brasil pediu um posicionamento do ministro Ricardo Salles e do senador Telmário Mota, mas ambos não se manifestaram até a publicação desta entrevista.]

Foi nesse momento que se tornou pública a ação do ministro Salles defendendo a liberação da madeira?

Sim. O ministro foi criticar o trabalho da Polícia Federal. Como eu era o representante da PF aqui no estado e tinha a atribuição de falar, achei que deveria defender o trabalho.

Dei declarações num jornal de grande circulação e dei entrevista respondendo, de forma técnica. Depois disso, ele fez uma reunião com pessoas específicas para juntar uma documentação e tentar "passar a boiada”.

Quem alega ser proprietário das terras e da madeira apreendida?

Estamos investigando ainda. São pessoas de alto poder aquisitivo e que não moram aqui na região, mas no Sul do país: São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul…

Para onde iria a madeira que foi apreendida?

Pelo histórico dessas empresas, elas iriam para o exterior. Boa parte da carga já estava com documentação "esquentada”. São empresas exportadoras.

Já se sabe quais empresas são essas?

Uma delas é a Rondobel. Ela tem mais de vinte multas pelo Ibama. Deve R$ 9 milhões.

[Em nota à imprensa, o Grupo Rondobel Serviços Florestais afirmou: "O Grupo Rondobel manifesta indignação com a forma desrespeitosa do delegado Alexandre Saraiva nos relatos veiculados na imprensa, atribuindo condutas criminosas de forma indiscriminada, atingindo também empresas que atuam rigorosamente dentro da lei – caso do Grupo Rondobel. […] A madeira estocada pertencente à Rondobel, retirada de forma lícita, a partir do manejo florestal sustentável, está apodrecendo nos pátios e, por consequência, perdendo valor de mercado a cada dia. O produto provém de áreas com emissão de Autorização Prévia e Análise Técnica do Plano de Manejo (APAT), Autorização para Exploração Florestal (AUTEF) e Licença de Atividade Rural (LAR), lastreadas em regularização fundiária vigorosa, promovida pelo Instituto de Terras do Estado do Pará (ITERPA), estando, portanto, apto a ser comercializado.”]

O combate ao crime ambiental na Amazônia ficou mais difícil nesses últimos dois anos?

Sem o Ibama no circuito, é muito difícil conseguir manter o desmatamento em níveis baixos.

Na verdade, a questão não é financeira. Dizer que o Brasil precisa de dinheiro para proteger a Amazônia é conversa fiada. O Brasil perdeu R$ 32 bilhões pra Odebrecht, outros R$ 20 bilhões pra JBS… E vai dizer que precisa de dinheiro para conservar a Amazônia?

O senhor tem recebido ameaças por conta desse caso? 

Existem umas ameaças contra mim em grupos de WhatsApp, mas se eu tivesse medo de bandido eu não teria entrado para a Polícia Federal.

O senhor percebe alguma mudanças na forma de atuar desses criminosos que extraem madeira por meio de roubo de terra?

Não. Na verdade, eles atuam de forma muito previsível, há muito tempo.

O desmatamento só acontece porque existe o Documento de Origem Florestal (DOF). E esse documento sai de um processo administrativo, que tramita no âmbito do estadoA lei complementar 140, de 2011, passou da União para os estados a competência para autorizar desmatamento em empreendimentos florestais. Essa lei foi um grande retrocesso na proteção do meio ambiente no Brasil.

Mas se conseguirmos controlar o processo administrativo que vai gerar o DOF, controlamos o desmatamento. Não dá pra negociar madeira sem o DOF. É igual carro roubado: não dá pra vender sem documentação. Tanto que já pegamos diálogos de madeireiros dizendo que o proles deles é o DOF.

[Nota do editor: o DOF funciona como uma licença obrigatória para o transporte e armazenamento de produtos que vêm de florestas nativas, como madeira e carvão. O documento tem que conter informações a origem, espécies, tipo do material, volume, valor do carregamento, placa do veículo, destino, rota detalhada do transporte.]

Se esses grupos agem de forma previsível, seria então possível combater o crime ambiental?

Perfeitamente possível. Não é uma questão de recurso, é uma questão de foco e de estratégia. A estratégia nós já temos. Para isso, é preciso fortalecer os órgãos de proteção ao meio ambiente, que é Icmbio [Instituto Chico Medes de Conservação da Biodiversidade], Ibama, Polícia Federal.

Sobre a madeira ilegal apreendida, qual destino ela poderia ter agora?

Essa é outra questão. A nossa ideia é que fosse utilizada para construção de casas populares para população carente. Mas o processo no STF precisa avançar.

[Nota do editor: Em 14 de abril, o delegado Alexandre Saraiva enviou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime sobre a atuação de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, para atrapalhar a investigação sobre a apreensão da madeira ilegal no Amazonas, que fazia parte da Operação Handroanthus GLO. As denúncias contra Salles são de organização criminosa, advocacia administrativa e obstrução de fiscalização. Atualmente, a notícia-crime aguarda manifestação da Procuradoria-Geral da República após ter sido encaminhada ao órgão pela ministra Carmen Lúcia.]

Qual a responsabilidade do mercado externo no avanço do desmatamento?

Não se discute a responsabilidade do Brasil na questão da Amazônia. Mas o mercado internacional tem muita responsabilidade na medida em que o mercado consumidor é um fator preponderante na demanda por madeira da Amazônia.

E a União Europeia tem dois pesos e duas medidas em sua legislação quando trata da importação da madeira de modo geral. O regulamento europeu que trata da importação da madeira diz que o importador tem que declarar de quem comprou a primeira vez. Quando a gente olha para o regulamento europeu que trata da importação da carne bovina, por exemplo, ele tem a palavra "rotulagem” escrita 35 vezes. E uma cadeia de custódia rigorosa: o boi no pasto recebe um brinco, depois um passaporte, é controle em cima de controle.

Eu falei isso aos embaixadores europeus quando vieram a Manaus, e eles não souberam me responder. Por que há tanta diferença? Se querem proteger a Amazônia, a primeira coisa é proteger as árvores da Amazônia. Isso precisa ser revisto.

Ou seja, a cadeia da carne é muito mais rigorosa no rastreamento da origem do que a da madeira?

A da madeira não existe. Há uma certificadora chamada FSC que é uma piada. Está no site deles: a certificação não cobre o transporte e o depósito. Só cobre a mudança de propriedade legal.

Quando eu vendo a madeira de A para B, a certificadora olha. Mas e o motorista que pegou a madeira, transportou, e onde ela ficou depositada?  É possível inserir madeira ilícita nesse processo. Nada disso é certificado, então não há certificação. Se a gente quer resolver o problema, é preciso mudar muita coisa.

[Em nota à DW Brasil, o FSC afirmou: "A afirmação feita pelo delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva, sobre o sistema FSC, é equivocada, porque a alegada brecha não existe. O FSC cobre, sim, toda a cadeia de custódia. Ou seja, qualquer depósito, qualquer processo em que determinada madeira fique armazenada precisa sim e é sempre verificado […] O dono da madeira precisa assegurar a rastreabilidade durante todo o processo. Isso está na norma FSC de cadeia de custódia. Infelizmente, como acontece em qualquer sistema, pode haver falhas. E, justamente por isso, o FSC tem as suas não conformidades e mantém um canal de denúncia para que seja possível investigar qualquer suspeita. Vale lembrar que a certificação é voluntária e vai muito além daquilo que é exigido pela lei.”]

Há a estimativa que 80% da madeira vendida no Brasil é ilegal. Esse é o dado com o qual a PF trabalha?

São 80% no mínimo.  A madeira de baixa qualidade fica no Brasil. A de alta qualidade vai para fora. Se colocarmos em termos de valores, a exportação responde muito mais do que o mercado interno.


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