28/03/2024 - Edição 540

Especial

Fumaça pro alto

Publicado em 15/01/2015 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A decisão tomada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na última quarta-feira (14), de retirar o canabidiol (CBD) da lista de substâncias proibidas no Brasil (leia aqui), trouxe novamente à tona o debate sobre a regulamentação do uso recreativo da maconha no país.

Em novembro passado o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), relator na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) da sugestão popular sobre a regulamentação da produção, comércio e uso da maconha (SUG 8/2014), entregou o seu relatório, que culminou na decisão da Anvisa.

O texto também prevê que seja considerado legal “o cultivo caseiro, o registro de clubes de cultivadores, o licenciamento de estabelecimentos de cultivo e de venda de maconha no atacado e no varejo e a regularização do uso medicinal”. Cristovam, no entanto, defendeu um debate mais aprofundado sobre o uso recreativo da maconha. A possibilidade de a maconha induzir a doenças como a esquizofrenia e um eventual aumento do consumo e do tráfico, com a liberação, são pontos que preocupam o senador.

“Todas as audiências que eu fiz, e foram muitas, não me deixaram seguro de que a liberação não aumentaria o consumo. Também não fiquei seguro sobre se, de fato, diminuiria o tráfico geral ou apenas o tráfico migraria para outras drogas”, disse o senador, que também afirmou ter dúvidas sobre como a opinião pública avalia a questão.

Governo é contra

O governo brasileiro estará de portas fechadas para o assunto neste segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deixou claro que vê com bons olhos a separação entre usuários portadores de pequenas quantidades de drogas e traficantes, mas não quer nem ouvir falar em mudanças mais amplas. “Não está em pauta a liberação de drogas hoje”, disse o ministro.

A liberação do comércio da maconha em modelos inspirados na experiência americana e uruguaia está prevista em projetos de lei apresentados ano passado pelos deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Eurico Júnior (PV-RJ). Uma das justificativas para quem defende a liberação das drogas, especialmente da maconha, é que seria uma forma de desafogar um sistema carcerário abarrotado de condenados por tráfico, boa parte deles pela venda de pequenas quantidades de droga.

Para Cardozo, a superlotação dos presídios pode ser resolvida com abertura de novas vagas e a aplicação de medidas cautelares como monitoramento eletrônico e aplicação de penas alternativas. Ele reconhece, no entanto, que o governo Dilma não abriu nenhuma das 40 mil vagas que prometeu no início do primeiro mandato. As dez mil vagas abertas nos últimos quatro anos eram parte de obras iniciadas ainda no governo Lula. As primeiras vagas da era Dilma só deverão estar disponíveis a partir de abril e, ainda assim, em número bem menor que a previsão inicial: 2.500.

A bandeira da flexibilização das leis antidrogas foi levantada pelo advogado Pedro Abramovay pouco depois de ser indicado para o cargo de secretário nacional Antidrogas em 2011. Mas a renovação teve vida curta. Abramovay perdeu o cargo antes mesmo da posse, por decisão de Dilma. A presidente não queria mudanças na lei porque se classifica como conservadora no assunto. A discussão do tema tem sido bloqueada também pela bancada de evangélicos, cada vez mais numerosa no Congresso.

Vida real

Enquanto o Governo, o Congresso e especialistas debatem a regulamentação do uso recreativo da maconha, mais de 1,5 milhão de brasileiros consomem a erva todos os dias. O dado faz parte do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), primeira amostragem sobre o consumo da droga no Brasil. O trabalho foi realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Segundo o estudo, 3,4 milhões de pessoas entre 18 e 59 anos usaram a droga no último ano e 8 milhões já experimentaram maconha alguma vez na vida – o equivalente a 7% da população brasileira. Desses, 62% tiveram contato com a droga antes dos 18 anos.

Os pesquisadores salientam que, no Brasil, a quantidade de dependentes em números absolutos é a mesma encontrada em países com maior prevalência do uso. Cerca de um terço dos usuários adultos, por exemplo, já tentou parar alguma vez, mas não conseguiu. Enquanto isso, 27% já tiveram sintomas de abstinência quando tentaram interromper o consumo. Isso não quer dizer que todos esses usuários são viciados.

"Pessoas que usam maconha diariamente não são, necessariamente, dependentes. Assim como dependentes não precisam usar todo dia para o serem", afirma a coordenadora do trabalho, a psicóloga Clarice Sandi Madruga.

No Mundo

Das Américas à Europa, ao Norte da África e além (confira acima o infográfico sobre a legislação relativa à maconha no mundo), a legalização da maconha vem sendo discutida. Principalmente depois que o Uruguai fez História como o primeiro país a legalizar a cannabis, em dezembro de 2013, seguido pelos estados de Colorado e Washington, nos Estados Unidos (vinte estados dos EUA permitem a maconha para fins medicinais e vários discutem a possibilidade de permitir o uso recreativo).

Cansados da violência associada ao tráfico de drogas e da ineficácia de práticas repressivas, os políticos estão animados com o incentivo, em sua maioria nos Estados Unidos, apesar da oposição dos conservadores. Alguns estão dispostos a testar políticas baseadas na saúde pública e não insistir na proibição, e há aqueles que vislumbram um setor potencialmente lucrativo na regulação da cannabis.

“Vários países estão dizendo ‘isso nos desperta curiosidade, mas não acredito que podemos seguir esse caminho’”, disse Sam Kamin, professor de Direito da Universidade de Denver, que ajudou a elaborar os regulamentos sobre a maconha no Colorado.

O próprio presidente dos EUA, Barack Obama, disse recentemente à revista “The New Yorker“ que considera a maconha menos perigosa do que o álcool, e que é importante que sigam adiante com os experimentos com a legalização dos estados de Washington e Colorado, especialmente porque os negros são presos em maior proporção do que os brancos, mesmo que o nível de consumo seja semelhante.

Incentivados pelos experimentos do Uruguai e nos Estados Unidos, legisladores do Marrocos aumentaram a pressão para permitir o uso da maconha para fins médicos e industriais. Eles dizem que isso iria ajudar os pequenos agricultores, que vivem de seu cultivo, mas são obrigados a vender a planta para traficantes de drogas, sempre expostos às campanhas de erradicação.

Alguns países europeus, como Espanha, Bélgica e República Tcheca também liberaram as leis sobre a maconha, mas a Holanda, famosa por seus cafés onde é possível usar a droga, recuou e começou a fechar esses estabelecimentos que funcionam perto de escolas e proibir a venda da droga a turistas. No entanto, existe uma campanha para legalizar o cultivo de cannabis. Lá, é legal vender maconha, mas como não é legal cultivá-la, esses locais precisam recorrer ao mercado negro.

Na América Latina e no Caribe, onde alguns países descriminalizaram a posse de pequenas quantidades de drogas, da maconha à cocaína, há uma grande oposição à legalização.

No Brasil

Hoje, no Brasil, não há pena de prisão ou reclusão para o consumo, armazenamento ou posse de pequena quantidade de drogas para uso pessoal (inclusive maconha). Também não há pena de prisão para quem "para seu consumo pessoal semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância" capaz de causar dependência (inclusive a maconha), diz o artigo 28 da lei nº 11.343/2006, de 23 de agosto de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad).

Segundo o texto, apesar do porte de drogas para consumo pessoal não dever ser punido com prisão, há previsão de advertência, serviço comunitário e aulas sobre os efeitos da droga para quem é flagrado mesmo com pequenas quantidades. Venda e transporte, assim como posse ou cultivo de grandes quantidades, é considerado tráfico de drogas, com pena prevista de 5 a 15 anos de prisão, além de multa.

O problema é que a lei diz que, para diferenciar uso de tráfico, o juiz deve atentar à quantidade, ao local e às condições do flagrante, além das “circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Sem jamais especificar a partir de que quantidade de droga se configura o tráfico, a aplicação da lei fica sujeita aos humores do juiz.

Apesar do critério subjetivo e interpretativo, há dúvida de que um ou dois cigarros de maconha, por exemplo, representam uma quantidade destinada ao consumo pessoal? “Quando a polícia pega uma pessoa preta, pobre, diz ‘você não é usuário, é traficante’, e ela vai para a cadeia. Mas, se o usuário for de classe média, não vai”, analisa o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, coordenador da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. “As drogas no Brasil são formalmente proibidas, mas, na prática, não, o que é gravíssimo. É um faz de conta. Melhor é regulamentar e educar, e agora o Brasil está acordando. Vamos discutir, vamos quebrar o tabu, ver do que se trata”, propõe.

O que pensa o brasileiro?

Uma pesquisa realizada pelo Ibope em setembro passado revelou que 79% dos eleitores brasileiros são contra a descriminalização da maconha e apenas 17% favoráveis. Outra pesquisa, esta realizada pelo Datafolha, mostrou que 56% da população brasileira é contra a venda da maconha para uso medicinal. Já a liberação de remédios derivados da droga foi aprovada por 50%.

Ainda de acordo com o levantamento do Datafolha, o apoio à liberação da substância aumenta conforme a escolaridade, 69% entre os que têm nível superior e 38% dos com nível fundamental. Na comparação do nível socioeconômico, a maior aceitação é registrada nas classes A e B, 60%. Nas C e D, o índice cai para 33%. A pesquisa também mostrou que a discordância é maior nas cidades do interior, nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e entre os mais velhos.

A Semana On perguntou aos seus leitores no Facebook qual sua opinião sobre a possibilidade de descriminalização da maconha. Das 866 pessoas que responderam a enquete, 546 (63%) disseram ser favoráveis à descriminalização da erva. Outros 287 (33.1%) leitores se posicionaram contrários à descriminalização e 33 (3.9%) disseram não ter opinião formada sobre o tema.

Enquanto o Governo, o Congresso e especialistas debatem a regulamentação do uso recretaivo da maconha, mais de 1,5 milhão de brasileiros consomem a erva todos os dias.

Entre os que se posicionaram a favor da descriminalização está o jornalista Alcindo Rocha (Campo Grande – MS). “O indivíduo deve ter livre-arbítrio para julgar a conveniência do uso da maconha, sem que tal conduta seja tipificada como crime. Acredito que deixaria de existir um mercado subterrâneo. O próprio Estado passaria a tributar a produção. Com relação aos possíveis danos à saúde, penso que a criminalização da maconha e a legalidade do tabaco e álcool deixa a situação no mínimo incoerente”, afirmou, dando eco a um argumento bastante comum entre os defensores da legalização.

O agitador cultural Daniel Lopes (Teresina – PI), o artista gráfico carioca Luiz Felipe Vasques e o cabo-friense Renato de Carvalho Macedo também são favoráveis à ideia. Para eles, a criminalização do uso de drogas não gerou resultados práticos. Vasques vai além e sugere que a descriminalização seja aliada a mais responsabilidade: “É preciso aplicar penas mais pesadas para quem, por exemplo, provoca acidentes de trânsito sob o efeito de quaisquer entorpecentes (lícitos ou não)”.

O jornalista campo-grandense Sergio Cruz se disse favorável à legalização do uso da maconha, mas contrário à descriminalização das drogas químicas, como a cocaína e o crack. “O usuário desse tipo de porcaria deveria ser internado compulsoriamente em clínicas de desintoxicação e os reincidentes judicialmente penalizados. Liberar o uso e proibir a compra é, no mínimo, tolerar o tráfico”, opina.

Es­ta­giária em Ser­viço So­cial no Ins­ti­tuto Penal de Campo Grande, Ester Alves de Souza é con­trária. “A mai­oria dos de­tentos tem his­tó­rico de drogas e ma­conha é a menor delas. Acre­dito que a des­cri­mi­na­li­zação trans­for­mará as ca­deias já su­per­lo­tadas em de­pó­sitos de far­rapos hu­manos”.

O ar­qui­teto ca­rioca Fa­bricio Fer­reira também é contra. “O Go­verno não tem como atender os de­pen­dentes das drogas li­be­radas, não há mo­tivo para por mais uma no mer­cado. Para o fi­lhinho de papai que tem que grana é mole falar de des­cri­mi­na­li­zação e li­be­ração das drogas. Se ele ficar de­pen­dente tem papai rico e di­nheiro para se tratar. Agora me diz, como fica o usuário baixa renda?”.

O que diz a ciência

Para ajudar a os efeitos da maconha sobre a saúde, o pesquisador Wayne Hall, da Universidade Queensland, na Austrália, realizou uma revisão dos resultados dos estudos em torno do seu consumo durante os últimos vinte anos.

Entre os resultados desse repasse dos estudos científicos sobre a maconha, publicado na revista Addiction, há alguns que podem ser evidentes. Por exemplo, que dirigir intoxicado por ter fumado a erva dobra o risco de um acidente de trânsito. No entanto, Hall afirma que em “muitos desses estudos uma proporção substancial dos motoristas com cannabis no sangue também tinha níveis elevados de álcool, o que dificulta distinguir entre os efeitos da maconha e o do álcool no risco de acidentes”.

Outro dos efeitos negativos da maconha diz respeito às grávidas. Vários estudos epidemiológicos constataram uma relação entre o consumo dessa substância e o peso reduzido das crianças no momento do nascimento. Nesse mesmo campo, embora alguns estudos tenham observado anomalias no desenvolvimento de crianças cujas mães consumiram maconha durante a gravidez, trabalhos posteriores não conseguiram estabelecer um vínculo sólido entre os dois fatos.

Como com qualquer droga, uma das principais preocupações sobre seu uso é a dependência. No caso da maconha, calcula-se que 10% das pessoas que a consomem desenvolvem dependência. Essa cifra se eleva a 16,5% para quem começa a fumá-la durante a adolescência. Esses dados indicam que a erva é menos viciante que outras substâncias de uso frequente, como a nicotina, que tem uma taxa de dependência de 32%, a heroína, com 23%, a cocaína, com 17% e o álcool, com 15%. Ao contrário de muitas dessas drogas, a maconha não produz overdose fatal.

Quanto ao tratamento da dependência, os consumidores que buscam ajuda para deixar o hábito mostram menos efeitos sociais adversos e para a saúde, embora o êxito no processo de desintoxicação costume ser semelhante ao dos alcóolatras.

A análise de Hall também se ocupa da relação entre o consumo de maconha e o risco de sofrer psicoses. Segundo sua revisão, o uso habitual de cannabis dobra esse risco, especialmente se há na família pessoas com transtornos psicóticos e se o consumo de maconha é iniciado durante a adolescência. Foi observado também que o uso regular de cannabis durante a adolescência está relacionado com o dobro de possibilidades de sofrer esquizofrenia. No entanto, Hall reconhece que alguns autores consideram que não está claro que haja uma relação causa-efeito.

Essa dificuldade para determinar se o uso de maconha é a causa direta do que acontece com uma pessoa é observada no caso de alguns estudos sobre o câncer. Hall menciona trabalhos que mostram que homens que fumavam a droga tinham um risco maior de ter câncer de próstata. No entanto, talvez por outros fatores do estilo de vida que podem ser associados a esse hábito.

Relação causa-efeito

Embora se tenha observado que os adolescentes que fumam maconha têm piores resultados acadêmicos e mais probabilidades de consumir outras drogas ilegais, não se pode afirmar que esses últimos efeitos sejam causados pela substância. Outros efeitos do consumo habitual de maconha durante a adolescência e a juventude são os transtornos cognitivos, apesar de não estar claro quais mecanismos causam esses transtornos e a possibilidade de que sejam reversíveis se a pessoa deixa de tomar a droga.

Manuel Guzmán, catedrático de Bioquímica e Biologia Molecular na Universidade Complutense de Madri e presidente da Sociedade Espanhola de Pesquisa sobre Cannabinoides, afirma que o principal risco do consumo de cannabis, “sobretudo na adolescência, são alguns transtornos psiquiátricos e, em particular, os psicóticos”. Além disso, especifica que os efeitos da maconha dependem de sua composição. “A mais forte, que tem mais THC (o tetrahidrocannabinol é o principal elemento psicoativo da cannabis), que é mais psicótico, e menos CBD (cannabidiol), que é antipsicótico, tem mais risco”, explica Guzmán,

No que se refere à relação com o câncer, ele diz que também não está bem estabelecida, porque muitas vezes quando se fuma maconha também se fuma tabaco, e é difícil identificar que efeitos se devem a cada substância. Além do mais, os cannabinoides podem ter um efeito inibidor do desenvolvimento do câncer que se contrapõe ao efeito do fumo. Por fim, Guzmán aponta a diferença na forma de consumir tabaco e maconha como explicação para que a relação com o câncer seja indubitável no primeiro e não no segundo. “Quando falamos de um fumante crônico nos referimos a alguém que pode fumar quarenta cigarros por dia, e ninguém vai fumar, nem de longe, essa quantidade de baseados”, conclui.

 

Confira a seguir o documentário "Cortina de Fumaça" do jornalista Rodrigo Mac Niven, que questiona o discurso proibicionista da maconha.

 


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *