25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Eu não desenhei a face de Maomé, apenas uma bunda

Publicado em 15/01/2015 12:00 -

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Robert Crumb é considerado por muitos o melhor cartunista que a América já produziu. Criador de inúmeros ícones da contra cultura como Fritz the Cat, Keep On Truckin guy e Mr Natural, Crumb foi alçado ao Hall da Fama dos quadrinhos em 1991, o mesmo ano em que se mudou com a família para a França, onde reside atualmente. A escritora Celia Farber encontrou-se com Crumb em sua casa, em Paris, no último dia 9, para falar do massacre dos cartunistas e outros cidadãos nos atentados de Paris. Sarcástico e satírico, Crumb dá o tom que aqueles que defendem a liberdade de expressão deveriam ter quanto as ameaças do fundamentalismo islâmico e outras tiranias.

 

Por Celia Farber – Tradução Victor Barone

Algumas análises sobre os atentados apontaram para o teor ofensivo dos cartoons publicados pelo Charlie Hebdo. Muita gente não aceitou isso. É como se perguntassem: “Porque eles tinham que ser tão malvados?”.

Esta postura deles é algo bem francês. Eles valorizam muito este tipo de postura aqui. Por isso surgiu uma imensa solidariedade da população contra o assassinato destes caras, grandes demonstrações, multidões em Paris, pessoas segurando cartazes dizendo “Je suis Charlie.” Mesmo aqui na vila em que vivo tivemos manifestações.

Você participou?

Sim. Eu estive lá, claro. Como sou o cartunista da vila eu tinha que participar. (Risos).

Você conhecia alguma das vítimas?

Conhecia Wolinsky um pouco. Conversei algumas vezes com ele nos últimos 20 anos, mas não o conhecia bem, de fato. Não conhecia nenhum deles profundamente. Não me integrei ao círculo de cartunistas na França. Provavelmente por não falar porra nenhuma de francês.

Acho que eles estavam a par de que podiam ser mortos.

O editor sabia. Ele sabia. A redação já havia sido incendiada em 2011. O governo ofereceu proteção, foi quando ele disse algo como “prefiro morrer de pé que viver de joelhos”. E: “Não sou casado, não tenho cartão de crédito, não dirijo carros. Mantenho tudo de forma muito simples… Não quero ter estas conexões, pois posso partir a qualquer momento.”. Ele sabia.

Estes caras não estavam tentando ser politicamente corretos, e é isso que as mentes condicionadas pela mídia na América não compreendem. A ideia de que, sim, você pode ofender aqueles que abusam do poder.

(Risos) Não, eles não podem entender.

Não era a fé que estava sendo insultada. Era o extremismo, a psicose. O impulso totalitarista.

Todos os grandes jornais e revistas na América concordaram mutuamente em não publicar estes cartoons ofensivos oriundos do Charlie Hebdo. Concordaram que não iriam publicar, pois eram muito ofensivos ao Profeta. O Charlie Hebdo nunca teve uma grande circulação. Muitos franceses disseram: “Sim, é indigesto, mas eu defendo seu direito a liberdade de expressão”. Sim, é indigesto, foi o que eles disseram. E talvez seja. Pensamos: “Não vou servir de isca para algum fanático religioso insultando seu profeta. Não vou fazer isso. Isso parece loucura”. Mas então, após eles serem assassinados, eu simplesmente tinha que desenhar um cartoon mostrando o Profeta.  O cartoon que eu desenhei  mostra a mim mesmo desenhando. Um desenho cru de uma bunda com a seguinte legenda “A bunda peluda de Moisés”  (Risos)

Você fez o que?

Sim, eu mandei ao Liberation, vamos ver o que acontece. Você sabe, é o máximo que meu pescoço foi esticado nas últimas décadas…

Você discutiu isso com Aline (ele é casado com a cartunista Aline Kominsky-Crumb)?

Eu mostrei a ela e ela disse: “Meu Deus, vamos ter que nos esconder” (Risos). Então ela teve uma ideia para outro cartoon, que também mandamos ao Liberation como uma colaboração. Este mostrava Aline olhando para o desenho e dizendo, “Oh, meu Deus, eles virão atrás de nós! Isso é terrível… Quero viver para ver meus netos!”. Então, eu respondi: “Bem, isso não é de todo mal. E, além disso, eles já mataram cartunistas o suficiente, talvez deixem isso para lá”.

Muito corajoso

O Charlie Hebdo publicou tantos carttons ofensivos aos extremistas islâmicos, Jesus, eles não pararam por nada… mas não foram os únicos que eles insultaram, eles insultavam a todos. O Papa, o presidente, todos! Era uma revista divertida. Eles não recuavam perante ninguém. Não deixavam ninguém a salvo, o que é bom.

Qual foi sua primeira reação ao saber sobre o atentado?

Tive a mesma reação que tive no 11 de setembro. Pensei: “Jesus Cristo, as coisas vão ficar feias agora”. Este tipo de acontecimento, como o 11 de setembro, dá aos governos a desculpa para tocar o terror, para serem muito mais… você sabe… orientados para políticas de segurança interna (Crumb se refere as políticas de “Homeland Security” adotadas nos Estados Unidos após o 11 de setembro). A direita pode usar estes fatos para embasar seus argumentos. Aqui a direita é muito preconceituosa em relação aos árabes. E a França tem uma população de origem árabe de cerca de 5 milhões de pessoas – há uma imensa população de muçulmanos no país, a maior parte da qual está focada em seus próprios negócios e não quer ser incomodada. Este tipo de extremista é uma minoria. Temos amigos com origem marroquinos, africanos. Eles não querem nenhum tipo de problema, e seus filhos, normalmente, são mais moderados ainda.

Há algo na história dos Estados Unidos que ao menos se aproxime da tradição defendida pelo Charlie Hebdo?

Os quadrinhos undergrounds da década de 70. Mas, hoje, não vejo nada parecido nos Estados Unidos. O lance no Charlie Hebdo é que sua origem remete aos anos 60. A gangue que trabalhava para a revista manteve este espírito. Estes caras já tinham idade, a maior parte era coroa. Não havia muitos garotos de 20 ou 30 anos. Os cartunistas eram, em sua maioria, coroas. Houve muitas críticas (na revista) para a esquerda também. Eles diziam que a esquerda era hipócrita, oportunista, idiota, etc. Mas, geralmente, havia uma simpatia esquerdista no Charlie Hebdo. E eles vinham toda a semana, toda semana com isso. E as pessoa olhavam, riam e diziam: “Ah, você conhece estes caras, eles são doidos. Ele são ultrajantes”.

A revista tem escritórios e uma equipe. Deve haver fundos razoáveis.

Sim, eu li recentemente que eles eram bem subsidiados, especialmente depois do atentado de 2011. Por isso durou tanto, e ainda vai durar. Eles vão continuar existindo.

Porque você fez oi desenho para o Liberation? Porque assumir o risco?

Bem, eles me pediram. O Liberation me ligou e disse: “Crumb, você pode fazer um cartoon para nós? Sua opinião sobre o tema. Você é um grande cartunista e vive na França.”. Eu pensei sobre o assunto. Pensei muito sobre o assunto. Estava lavando pratos e pensando: “O que posso desenhar …”. Tinha muitas ideias. Outras pessoas vieram com isso, você sabe, cartoons inteligentes, com comentários.  Um cara fez um cartoon mostrando um corpo ensanguentado no chão e um radical islâmico de pé com uma Kalashnikov dizendo: “Ele desenhou primeiro!”. Coisas assim. Isso foi bom, inteligente. Gosto disso. Mas, eu? Quando faço algo tem que ser mais pessoal. Eu disse: “Não tenho a coragem de fazer um cartton ofensivo sobre Maomé.”. Então, eu pensei: “OK, sou o Cartunista Covarde… como um Cartunista Covarde não poderia fazer um comentário loquaz. Tinha que fazer graça de mim mesmo. Então, ao invés de desenhar a face de Maomé (risos), desenhei a bunda de Maomé (Risos). Mas, então, desenhei a mim mesmo dizendo, em letras pequenas: “Na verdade, esta é a bunda do meu amigo Mohamid Bakshi, um diretor de cinema em Los Angeles, California.”. Assim, se eles viessem a mim, iria dizer: “Não, olhe só, não é o Profeta Maomé, é este cara, Mohamid Bakshi.”. Sacou?

Houve algum momento em que você pensou em não fazer o desenho?

Não. Eu pensei: “Eu tenho que fazer”. Eles me pediram. Tenho que fazer… De outro modo todos pensariam: “Onde está Crumb? Porque ele não deu as caras? Que diabo está havendo com ele?”. Então recebi ligações dizendo: “Você não vai desenhar sobre isso? Todos os outros cartunistas do país fizeram algo. Está com medo? Qual o seu problema? Você está confortável em sua poltrona, com seu sucesso, e blá blá blá…”. Então, pensei: “Tenho que fazer”. Entendeu? (Risos). Eu não queria fazer nada loquaz, pesaroso, sobre os heróis mortos e estas coisas.

Foi um alívio quando você terminou os desenhos?

Não. Eu me senti como: “Jesus, o que eu estou fazendo? Estou ficando doido?”. Aline disse: “Vamos ter que nos esconder”. Vamos ver se teremos alguma ameaça de morte. Acho que talvez eles nos deixem fora de sua lista. Eles já mataram quatro cartunistas. E, na verdade, eu não desenhei o rosto de Maomé, apenas a bunda de Mohamid Bakshi, então… (risos).


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