18/04/2024 - Edição 540

Mundo

Liberdades de expressão e religião sob ameaça

Publicado em 09/01/2015 12:00 -

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Dois encapuzados descarregaram friamente suas armas contra alguns dos maiores nomes do cartum francês. Um carro patrulha atendeu ao chamado, mas não resistiu a metralhadoras automáticas. Mataram e bateram em retirada, bradando vingança por Maomé. O atentado contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo deixou 12 mortos e 11 feridos, quatro em estado grave, e suscitou outras ações de extremistas que ainda neste momento estão sem conclusão na França. Horas depois dos assassinatos na 11° arrondissement de Paris, pistas reforçavam uma suspeita: europeus jihadistas por trás do massacre. Em vez de se recolherem ao medo, os franceses foram às ruas: 100 mil por todo o país. Mas, o massacre na redação do jornal Charlie Hebdo fez o mundo se perguntar como defender a liberdade de expressão e a liberdade religiosa.

Para Moustafa Bayoumi, do Brooklyn College e muçulmano ocidental, o ataque foi motivado pela política, não pela religião. “Temos que compreender o contexto dessas ações. Elas não surgiram do nada. É um contexto político, onde há muita violência no mundo muçulmano, principalmente nos últimos 15 anos. Há muito desafeto e alienação das minorias muçulmanas no Ocidente. Se não entendermos de ontem vem tudo isso, acabamos dizendo que as diferenças culturas explicam tudo”, afirma Bayoumi.

Para Gilberto Maringoni, doutor em História Social pela FFLCH-USP e professor adjunto de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC, o atentado não pode ser visto apenas como a ação de fundamentalistas que, contrariados com alguns cartuns, resolveram mostrar suas insatisfações através de rajadas de AKs-47. Para ele, a teia de processos e acontecimentos que desembocou no sangrento episódio possui profundas raízes na cena política francesa.

Maringoni sustenta que, embora seja inaceitável qualquer restrição à liberdade de expressão e opinião, é forçoso reconhecer que os cartuns e textos do Charlie Hebdo, com seus ataques a Maomé, estavam inseridos em uma disputa maior. Para ele, embutiam também boa dose de intolerância, mesmo que não tenha sido essa a intenção de seus autores. “Mesmo assim, o atentado deve ser condenado sem mediações. Há outras formas de se externar discordâncias. A estupidez dos assassinos municiará de argumentos os apóstolos do preconceito e da xenofobia, aqueles que veem no estrangeiro a matriz dos males da França”, afirma.

Metralhadora giratória

Ocorre que o islamismo não era o único alvo do Charle Hebdo. Neste aspecto, o jornal era eclético: debochava de tudo e de todos. Políticos, instituições, todas as religiões. Segundo o jornalista Gael Legras, do Canal +, católicos, judeus e muçulmanos eram sempre o principal alvo desses jornalistas. “Eles tinham a tradição de anticlericais, ou seja, eram pessoas profundamente laicas, e, em sua maioria, ateias”, diz Gael.

O ataque ao semanário francês desperta o debate sobre liberdade de expressão e até que ponto deve-se evitar artigos ou ilustrações que ofendam a fé religiosa de leitores.

Salem Nasser, do departamento de Direito Internacional da FGV-SP, defende que é preciso fazer uma reflexão sobre quando se passa da mera sátira à mensagem do ódio, mas reforça que nada justifica o ataque aos cartunistas.

Joel Simon, do Comitê de Proteção aos Jornalistas, rebate: “A resposta ao ataque não pode ser aumentar a autocensura. Isso seria uma tragédia, seria terrível. Não podemos deixar que as pessoas armadas determinem qual é o limite da liberdade de expressão. Isso seria inaceitável”.

Outros Alvos

O jornal dinamarquês Jyllands Posten foi atacado em 2006 após publicar charges com imagem do profeta Maomé. O tormento ao Charlie Hebdo começou quando o semanário francês reproduziu as charges do jornal dinamarquês. Desde então, a redação da publicação em Paris não teve mais sossego.

Em 2011, um incêndio criminoso destruiu sua redação. Nada disso impediu o semanário de continuar publicando sátiras de Maomé e do islã, entre elas uma edição especial com o nome de Sharia Hebdo, que tinha Maomé como o "editor".

O mesmo obscurantismo havia se se manifestado em Londres durante os ataques ao metrô, em 2005, provocando 52 mortes. Repetiu-se em Londres há quase dois anos no assassinato em público do soldado Lee Rigby, esfaqueado na rua da capital britânica por radicais que ainda tentaram decapitá-lo. Assim também ocorreu em Madri, em 2004, no bárbaro ataque terrorista à estação de trem de Atocha, por ativistas islâmicos locais.

O caso mais notório de reação radical islâmica à palavra escrita ocorreu há 26 anos, após a publicação do livro “Os Versos Satânicos”, do autor britânico de origem indiana Salman Rushdie. A obra de ficção foi considerada ofensiva ao islã e gerou uma condenação à morte ao autor pelo então líder iraniano xiita aiatolá Komeiny. Rushdie foi obrigado a viver clandestino e sob proteção policial durante vários anos.

Muçulmanos e Xenofobia

O ataque terrorista em Paris relança o foco sobre a radicalização de muçulmanos "prata da casa". Ou seja, aqueles nascidos, criados e educados em países como a França, que adotam princípios liberais, em que a manifestação de opinião é livre, a crítica social e de costumes também.

Os extremistas reagem com violência ao que consideram desrespeito ao islã, seja ao retratar seu profeta maior, Maomé, criticar os líderes de seus movimentos ou restringir seus hábitos, como faz a França ao limitar o uso do véu e da burca em certos locais.
A França abriga a maior população muçulmana da Europa ocidental, avaliada em torno de quatro milhões de pessoas.

Na periferia de grandes cidades francesas, inclusive Paris, jovens árabes muçulmanos, alguns já em terceira geração, nascidos e educados na França, se revoltam periodicamente em protestos de rua contra o que consideram discriminação contra sua etnia e religião.

Partidos de direita, como a Frente Nacional, de popularidade crescente, sobretudo em sua postura contra estrangeiros na França, declaram sua oposição à presença de muçulmanos no país que consideram em essência cristão, mas sob influência islâmica crescente.

Essa posição anti-muçulmana ganhou impulso recente na vizinha Alemanha, onde há poucos dias manifestantes saíram às ruas com bandeiras, cartazes e discursos contra imigrantes em geral, islâmicos em particular.

A intervenção militar do ocidente em países de maioria islâmica, sobretudo Afeganistão e Iraque, ajudou a radicalizar ainda mais jovens muçulmanos pela Europa, indignados com as cenas de maus tratos e mortes da população civil nestes países invadidos por tropas americanas e europeias em caça a terroristas.

Centenas desses jovens muçulmanos ocidentais têm se juntado à luta ao lado do grupo extremista Estado Islâmico, que atua na Síria e no Iraque. O número maior desses voluntários saiu da França, onde as autoridades de segurança temem o retorno desses ativistas para suas comunidades, já com treinamento militar e prontos para atuar em território nacional.


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