26/04/2024 - Edição 540

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Relatores da ONU questionam nomeação de Sérgio Camargo para Palmares

Publicado em 09/04/2021 12:00 -

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Num gesto raro, órgãos e relatores da ONU enviam uma carta ao governo brasileiro questionando a nomeação de Sérgio Camargo para presidir a Fundação Cultural Palmares. O documento foi enviado no dia 18 de janeiro e é assinado pelos relatores sobre o racismo Tendayi Achiume, Dominique Day, chefe do Grupo de Trabalho de pessoas de Descendência Africana, e Irene Khan, relatora da ONU para a promoção de liberdade de expressão.

Se desde 2019 o governo brasileiro vem sendo alvo de repetidas denúncias por parte dos mecanismos especiais da ONU, de uma maneira inédita desde o fim do regime militar, a carta sobre Sérgio Camargo é a primeira a questionar de uma forma explícita a aptidão de uma pessoa escolhida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para um cargo público.

"Gostaríamos de levar ao conhecimento do Governo de Vossa Excelência as informações que recebemos a respeito das declarações racistas feitas pelo Sr. Sérgio Camargo, que foi recentemente nomeado Presidente da Fundação Cultural Palmares", afirma o documento, obtido pela coluna.

"Declarações racistas também foram publicadas no site da fundação. Além disso, sob a liderança do Sr. Camargo, foram feitas algumas mudanças estruturais na fundação que podem prejudicar a tomada de decisão transparente e participativa dentro da instituição", denunciam.

"Segundo as informações recebidas, o Sr. Camargo fez várias declarações racistas, inclusive negando a existência de racismo no Brasil e justificando que a escravidão havia beneficiado pessoas de ascendência africana", aponta a carta.

Os relatores relembram que a nomeação foi inicialmente suspensa por um tribunal, uma vez que tais declarações eram contrárias ao objetivo principal da fundação. "Esta decisão enfatizou que o principal mandato da Fundação Cultural Palmares se concentra na promoção e preservação da cultura afro-brasileira, além de combater o racismo e identificar e reconhecer os remanescentes das comunidades quilombolas", disse.

"Após uma análise cuidadosa das publicações postadas pelo Sr. Sérgio Camargo em suas redes de mídia social, a Corte concluiu que essas publicações eram contra minorias raciais que estão no centro do mandato da instituição para a qual o Sr. Camargo havia sido nomeado", afirmou.

"A Corte decidiu que a nomeação do Sr. Camargo para o cargo de Presidente da Fundação Cultural Palmares era contra a essência de seu mandato e contradizia o princípio constitucional de igualdade, bem como a valorização e a proteção da cultura afro-brasileira", lembrou. Mas a carta indicou, como em fevereiro de 2020, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou a decisão da corte.

"Inaceitável"

Para os relatores, porém, a postura de Camargo continuou a ser questionável. "O Brasil comemora o "Dia da Consciência Negra", em 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares que representa um símbolo da luta e resistência dos povos de ascendência africana escravizados no Brasil. O Sr. Camargo fez declarações públicas promovendo a eliminação deste dia comemorativo", destacam os relatores.

A carta ainda lembra como, em 13 de maio de 2020, data comemorativa do aniversário da abolição da escravatura no Brasil, o site oficial da Fundação Cultural Palmares publicou mensagens criticando Zumbi dos Palmares e questionando a relevância do "Dia da Conscientização Negra". "Estas mensagens foram eliminadas após uma ordem da 9ª Vara Federal do Distrito Federal", diz o documento.

"O Sr. Camargo afirmou em seus relatos na mídia social que Zumbi dos Palmares é um 'herói da esquerda racialista, não do povo brasileiro"". Nós repudiamos Zumbi"". Em 26 de maio, ele anunciou o uso de um selo da Fundação Cultural Palmares para certificar "que uma pessoa não é racista", destacou o documento.

Mudança estrutural afeta participação

A carta ainda destaca como Camargo promoveu mudanças na estrutura da Fundação através da Portaria nº 45 de 2 de março de 2020, eliminando sete órgãos colegiados que compunham a fundação, incluindo o Comitê de Gestão do Parque Memorial Quilombo dos Palmares.

"Esta mudança visa centralizar a tomada de decisões e limitar a participação de vários atores relevantes para o trabalho da Fundação", diz o texto, que ainda cita eventuais violações da Constituição Brasileira.

"Como resultado dessas mudanças, algumas comunidades afro-brasileiras terão perdido o acesso a espaços de diálogo sobre decisões e elaboração de políticas dentro da Fundação. Além disso, o Sr. Camargo tem defendido a eliminação de uma medida de ação afirmativa legalmente estabelecida em 2012, que promove o acesso ao ensino superior por afro-brasileiros visando reduzir a lacuna de seu acesso ao mercado de trabalho", declaram os relatores.

"Também estamos seriamente preocupados com as alegações relativas às tentativas de centralizar a tomada de decisão da Fundação Cultural Palmares, o que pode prejudicar sua transparência e tomada de decisão participativa. Estas mudanças estruturais podem minar a participação das comunidades afro-brasileiras e quilombolas nos assuntos públicos e silenciar sua voz em assuntos que as afetam diretamente.

Comentários depreciativos e "Caso Carrefour"

A carta ainda cita outros incidentes. "De acordo com as informações recebidas, o Sr. Camargo tem feito muitas vezes comentários depreciativos contra a cultura e religião afro-brasileira e quilombola, indo contra o objetivo principal da Fundação Cultural Palmares que é a promoção e preservação do legado cultural dos afrodescendentes na sociedade brasileira", dizem os relatores.

"Além disso, no dia 19 de novembro de 2020, um dia antes da celebração da "Consciência Negra", após a morte violenta nas mãos de seguranças particulares de um indivíduo afro-brasileiro em frente a um supermercado em Porto Alegre, o Sr. Camargo postou, segundo informações, algumas declarações em sua mídia social referindo-se a esta vítima "não representando os honrados negros", lembra o documento, numa referência à violência fatal de seguranças contra um homem negro numa loja do Carrefour.

"O Sr. Camargo também escreveu que "não há racismo estrutural no Brasil; nosso racismo é circunstancial". Ele também compartilhou um vídeo no qual ele insiste: "O Dia da Consciência Negra no Brasil deve terminar". É uma data que a esquerda se apropriou para propagar a vitimização e o ressentimento racial", insistiram.

Relatores questionam aptidão de Camargo

Solicitando do governo brasileiro diversas respostas sobre os gestos do presidente da Fundação, os relatores são claros em questionar a permanência de Camargo em seu cargo.

"Gostaríamos de expressar nossa séria preocupação com as declarações racistas feitas pelo Presidente da Fundação Cultural Palmares, Sr. Sérgio Camargo. Como mencionado acima, esta fundação foi criada para a promoção e conservação dos legados culturais, sociais e econômicos de pessoas de ascendência africana no Brasil, portanto, é inaceitável que mensagens denegrindo a cultura afro-brasileira e desconsiderando as consequências da escravidão possam ser tornadas públicas no website de tal instituição", dizem.

"Também estamos seriamente preocupados com as últimas declarações feitas pelo Sr. Camargo sobre o assassinato de um indivíduo afro-brasileiro que desconsidera o ato de violência cometido contra ele e incita ao discurso político racista contra pessoas de ascendência africana", insistem.

"Desejamos também expressar séria preocupação com relação à aptidão do Sr. Camargo para o cargo de Presidente à luz da sentença emitida por pelo menos uma câmara do Tribunal Federal. Embora esta sentença tenha sido posteriormente anulada, ela fornece um forte apoio às preocupações expressas pelos afro-brasileiros com relação à suposta inaptidão do Sr. Camargo para o cargo de Presidente da Fundação", alertam os relatores.

Governo tem obrigações

No texto, os representantes internacionais ainda fizeram questão de apontar que o governo tem obrigação de proibir por lei qualquer defesa do ódio que constitua incitamento à discriminação, e o dever de tomar medidas para evitar a discriminação.

"Observamos que estas obrigações se aplicam também em relação às declarações feitas por funcionários públicos, e que elas podem se aplicar com particular força aos funcionários públicos que ocupam posições de destaque. Tais declarações podem, dependendo das circunstâncias, ser atribuídas ao Estado", alertaram.

Respostas da Fundação Palmares: nomeação é legítima

No dia 18 de março, o governo respondeu e indicou que, apesar do questionamento existente sobre Camargo, sua posição é uma de "confiança". Além disso, destaca-se que tais escolhas para cargos semelhantes apontam uma "identificação com as prioridades e escolhas do governo".

Em uma resposta de mais de 20 páginas, o governo explica que o currículo de Camargo foi avaliado pelo presidente Bolsonaro e que ele foi considerado como adequando para a presidência da Fundação.

Citando a decisão judicial, a resposta ainda insiste que a expressão de opinião nas redes sociais não pode ser considerada como um impedimento legal, moral e ético para preencher um posto. A resposta também insiste que convicções políticas não podem ser critérios nesse caso.

O documento também insiste que sua nomeação é "legítima" e que as informações que os relatores receberam vieram de pessoas que não querem que Camargo ocupe o cargo.

Sobre seus comentários relativos ao caso de Zumbi, a resposta tenta justificar a ação e aponta que visões divergentes revelam "regimes democráticos maduros". Ele também aponta que, no caso dos comentários sobre a morte no Carrefour, em nenhum momento justificou a violência praticada pelos seguranças.

A carta de resposta ainda traz uma lista de medidas adotadas pela Fundação, assim como iniciativas de auditorias internas e ações administrativas.

Segregação

Relatores da ONU se unem para denunciar a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro de 2020 e mais conhecida na sociedade civil como "decreto da exclusão".

A iniciativa, na prática, desobriga a escola a matricular estudantes com deficiência e permite a volta do ensino regular em escolas especializadas. Para entidades, isso é um retrocesso de décadas na educação inclusiva no país, além de uma violação a Constituição ao segregar alunos.

Numa carta sigilosa, enviada em fevereiro de 2021 ao governo e obtida pela coluna, os relatores alertam que a medida de Bolsonaro pode "restringir o direito à educação inclusiva para crianças com deficiências no Brasil". O documento é assinado por Gerard Quinn, relator especial para o direito de pessoas com deficiências, e Koumbou Boly Barry, relatora especial para o direito à educação.

"O decreto promove o estabelecimento de um sistema separado de educação especial, incentivando estados e municípios a construir escolas e programas especializados para pessoas com deficiência", aponta a carta. "Em particular, permite que as autoridades direcionem algumas crianças para escolas especiais se as crianças forem consideradas incapazes de "beneficiar-se em seu desenvolvimento quando incluídas em escolas regulares inclusivas e necessitarem de apoio múltiplo e contínuo", alerta. Para os relatores, a política prevê "segregação".

"O decreto também exige o desenvolvimento de critérios para identificar "estudantes que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas", o que levanta sérias preocupações de que as autoridades possam, nesta base, excluir crianças com deficiências das escolas regulares e exigir ou pressioná-las a frequentar escolas ou salas de aula especiais", denuncia a carta.

De acordo com os relatores, ao considerar a estratégia, o governo não consultou pessoas com deficiências ou suas organizações representativas, nem durante o processo de elaboração do decreto, nem antes de sua adoção formal. Segundo os relatores, a única consulta realizada ocorreu online e apenas 0,6 % dos entrevistados na consulta eram estudantes com deficiência.

A carta constata que, em 1º de dezembro de 2020, o Ministro Dias Toffoli suspendeu a política do governo. No dia 18 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma sentença final adotada por maioria, para confirmar a suspensão do decreto.

Isso não impediu o governo a continuar a promover a ideia. No documento da ONU, os relatores lembram que, em 7 de janeiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro disse que "a presença de estudantes com deficiência, em classes de estudantes sem deficiência, pode prejudicar toda a classe".

Programa viola obrigações internacionais assumidas pelo Brasil

No documento, os relatores ainda se dizem "preocupados" com o fato de que as disposições contidas no decreto possam ser "contrárias às obrigações internacionais do governo brasileiro de promover a universalidade e a não-discriminação no gozo do direito à educação por todos".

"Queremos expressar nossa séria preocupação com o desenvolvimento desta nova política nacional sobre educação especial e seu impacto negativo sobre os direitos das crianças com deficiência, bem como sobre a sociedade como um todo. Estamos preocupados que, se implementada, a nova política violaria uma série de obrigações em matéria de direitos humanos", denunciam.

Na carta, os relatores ainda pedem que o governo adote "medidas necessárias, de acordo com as normas internacionais de direitos humanos, para garantir o direito das crianças com deficiência de ter acesso a uma educação inclusiva e de qualidade em pé de igualdade com os demais".

O documento ainda pede que o governo responda a uma série de perguntas e solicita que Bolsonaro "altere ou revogue urgentemente as disposições do Decreto nº 10.502/20 pois consideramos este decreto incompatível com as disposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e outras normas de direitos humanos no que diz respeito ao direito à educação inclusiva".

A postura dos relatores é aplaudida por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. "O decreto foi mais uma ação do governo Bolsonaro que vai na contramão dos avanços em termos de direitos humanos, políticas públicas e educação", disse.

"Há muitos estudos nacionais e internacionais que mostram que a educação inclusiva é o melhor caminho. Tanto a convenção da ONU quanto as políticas que vinham sendo elaboradas e implantadas no Brasil avançaram nessa concepção", disse.

"O decreto, ao contrário, apesar de se dizer pela educação inclusiva, reforçava a educação especial excludente, imprimindo uma série de retrocessos nessa política", alertou.

Andressa conta como organizações do campo dos direitos da criança e do adolescente e do direito à educação se uniram para entrar com ações no STF contrárias a esse decreto. "Foi uma vitória em meio a uma série de arbitrariedades de cunho privado conduzidas por esse governo que não está preocupado com a população, mas sim com seus próprios interesses marqueteiros e escusos", disse.

Segundo ela, a legislação educacional, desde a Constituição Federal, passando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Plano Nacional de Educação, determinam que a educação deve ser inclusiva. "A ONU e a OEA em suas recomendações ao Brasil, desde 2015, vêm reiterando a necessidade de cumprir com o PNE, mas os governos o têm escanteado, como mostram os balanços que publicamos todos os anos na Semana de Ação Mundial", disse.

Para a especialista, o desafio para a garantia da educação inclusiva passa não só por barrar retrocessos nas políticas e diretrizes como este decreto como também por "garantir insumos adequados nas escolas e formação dos profissionais da educação para implementação das políticas".


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