20/04/2024 - Edição 540

Especial

A volta da fome

Publicado em 08/04/2021 12:00 -

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De repente, na semana passada, o Brasil descobriu que tem cada vez mais gente passando fome.

Junto com o noticiário da pandemia, todos os telejornais, jornais e portais começaram a fazer reportagens sobre a fome que grassa no país, não mais apenas com números, mas com gente que não tem o que comer e forma imensas filas para receber um prato de comida ou cestas básicas de ONGs, empresas privadas e entidades assistenciais.

O desespero e a tristeza profunda estão estampados nos rostos de milhões dos brasileiros, que antes trabalhavam e, com a pandemia, não têm mais recursos para comprar o básico para alimentar suas famílias.

Adultos deixam o que sobrou de comida para as crianças e vão para as ruas em busca de novas doações, mas elas estão caindo dramaticamente com o agravamento da crise econômica que atinge toda a população.

Nestas reportagens, o grande ausente é o governo, que só agora está liberando o mísero auxilio emergencial, suspenso desde o final do ano passado, agora menor e para menos gente do que em 2020. "Não tivemos retorno", é o que mais se ouve no final das matérias que procuram uma resposta das autoridades.

Depois de atingir o nível mais alto em 1999, quando outra onda de desemprego deixou 20,9 milhões vítimas de grave insuficiência alimentar, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil vinha diminuindo os índices ano a ano, até sair do Mapa da Fome, para onde está voltando.

Em 2004, o total de brasileiros passando fome já tinha caído para 12,6 milhões; três anos depois, eram 7,4 milhões, até atingir o índice mais baixo em 2019, com 5,3 milhões, segundo a FAO.

Com a pandemia, este nível dobrou para 10,3 milhões no ano passado, segundo o IBGE, e deve subir até o final do ano para mais de 20 milhões, de acordo com estudo da ActionAid, instituição que atua no combate à fome e a pobreza no Brasil.

Ou seja, podemos voltar aos índices de duas décadas atrás, em mais um retrocesso civilizatório perpetrado pelo atual governo que destruiu as políticas públicas de segurança alimentar e combate à fome implantados durante o período, sem nenhum sinal de investimentos nesta área.

Para se ter uma ideia do que pensa o governo Bolsonaro sobre esta tragédia brasileira sem fim, resgatamos uma entrevista concedida pelo presidente em julho de 2019 a correspondentes estrangeiros, em que ele negou a existência de mais de 5 milhões passando fome no Brasil. "Baseado no que a gente vê por aí, falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não comem bem, aí eu concordo. Agora, passar fome, não."

Gostaríamos de saber o que o presidente pensa agora que esse número já triplicou, com o desemprego que não para de crescer, e cada vez mais brasileiros estão passando da pobreza para a miséria absoluta.

Como Bolsonaro não assiste à Globo, poupou-se de ver no Fantástico do último dia 4 a reportagem sobre como os brasileiros estão sobrevivendo sem renda e sem comida na geladeira, vendo os filhos passar fome, enquanto voluntários se desdobram para receber e entregar doações.

Brasileiro agora está vivendo como Iemanjá, vivendo de oferendas.

Famintos e bilionários

O fato que permanece para além do que pensa o presidente é que, além dos recordes de mortes diárias, o Brasil atingiu duas marcas durante a pandemia que são antagônicas apenas na aparência: passou a ter 20 bilionários a mais que no ano passado e, ao mesmo tempo, registrou 9% de famintos – a maior taxa desde 2004.

De acordo com o ranking anual da revista Forbes, houve uma explosão no número de bilionários no ano em que o mundo foi assolado pela covid-19. A lista registrou um recorde de 493 novatos, ou seja, um bilionário a mais a cada 17 horas.

O patrimônio desse grupo foi de 8 para 13,1 trilhões de dólares entre 2020 e 2021. Conta com 2.755 indivíduos.

No Brasil, a quantidade de bilionários foi de 45 para 65, com um aumento de patrimônio total de 72%: de 127,1 para 219,1 bilhões de dólares.

Os números foram divulgados no último dia 6 – dia em que o governo federal retomou o pagamento do novo auxílio emergencial. Enquanto, no primeiro semestre do ano passado, o benefício variava de R$ 600 a R$ 1200 por domicílio, agora vai de R$ 150 a R$ 375.

O piso vai comprar apenas 23% da cesta básica em São Paulo, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Pesquisa divulgada no último dia 5 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional apontou que o país somou 19,1 milhões de pessoas que passaram fome em um universo de 116,8 milhões que conviveram com algum grau de insegurança alimentar (não tendo acesso pleno e permanente à comida) e em 2020.

A fome atingiu 9% da população, a maior taxa desde os 9,5% de 2004. Em 2018, eram 10,3 milhões de brasileiros nessa situação.

A pesquisa ocorreu no último trimestre do ano passado, quando o auxílio emergencial já havia caído para uma faixa entre R$ 300 e R$ 600 por domicílio. Ou seja, a situação agora é pior, uma vez que o governo Jair Bolsonaro interrompeu o pagamento do benefício na virada do ano e está retomando apenas agora, de forma escalonada.

"É aviltante que o número de bilionários tenha aumentado em uma crise de grandes proporções como a que estamos enfrentando. Isso reforça a urgência de procurar formas nacionais e globais de enfrentar a concentração de privilégios, que faz com que exista um setor da sociedade que sempre ganha", afirmou Katia Maia diretora executiva da Oxfam Brasil.

Ela chama de "aberração" o fato de o país ter um pequeno grupo em uma "categoria premium", que concentra a riqueza, e 116,8 milhões sem saber se irão comer todos os dias. E reclama do tamanho do novo benefício. "Esse valor de auxílio emergencial é a despriorização da vida humana."

O Ministério da Economia diz que esse é o máximo que pode ser transferido aos trabalhadores informais pobres. A oposição no Congresso Nacional e mesmo membros da base do governo discordam e apresentaram propostas para aumentar esse valor tirando receita dos mais diversos locais – até do cartão corporativo de Jair Bolsonaro.

A chance da Medida Provisória que determina os valores do benefício ser colocada em discussão e votação é pequena. Os líderes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), aliados do presidente, devem deixar a MP caducar em quatro meses – prazo de sua validade.

Em outros locais mais ricos, como o Reino Unidos, o Canadá e alguns estados nos Estados Unidos, discute-se a taxação temporária de multimilionários e bilionários para ajudar na situação fiscal de seus países durante a pandemia.

Houve até um documento assinado por super-ricos dos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, Dinamarca, Holanda, Nova Zelândia, entre outros, chamado de "Milionários pela Humanidade", pedindo para que seus países joguem os custos da pandemia de coronavírus em suas costas.

"Os problemas causados e revelados pelo Covid-19 não podem ser resolvidos com caridade, por mais generosas que sejam. Os líderes de governos devem assumir a responsabilidade de levantar os fundos de que precisamos e gastá-los de maneira justa. Podemos garantir que financiemos adequadamente nossos sistemas de saúde, escolas e segurança por meio de um aumento permanente de impostos sobre as pessoas mais ricas do planeta, pessoas como nós", afirma a carta.

No Brasil, a progressividade de cobrança de impostos, taxando de fato os super-ricos, é um dos temas tabus da sempre adiada Reforma Tributária e causa calafrios em uma parcela do mercado. Tão tabu quanto outro assunto que está diretamente relacionado a esse debate: a emenda do teto dos gastos. Pois a questão não é só gerar receita, mas possibilitar que se aumente os gastos com os trabalhadores pobres – o que é proibido por conta das travas dessa legislação.

A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for.

Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.

No auge da pandemia, sociedade civil se organiza contra fome

"Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome", canta Caetano Veloso na canção Gente. De fato, o acesso à alimentação adequada é um direito humano básico, fundamental. Está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e é assegurado pela Constituição Brasileira. 

Para José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil está de volta ao Mapa da Fome, de onde havia saído oficialmente em 2014. Isso significa que mais de 5% da população encontra-se em situação de insegurança alimentar grave, sem ingerir as calorias recomendadas para uma vida saudável e digna.

Em meio à pandemia, histórias tristes e pedidos de ajuda se multiplicam nas ruas, nos meios de comunicação e nas redes sociais. Diante disso, a sociedade civil tem se organizado de diferentes formas para auxiliar a população. Dezenas de campanhas de arrecadação de alimentos, encabeçadas por diferentes entidades e organizações, estão em ação.

Auxílio cai, preço dos alimentos sobe

A suspensão do auxílio emergencial de R$ 600, pago pelo governo federal de abril a dezembro de 2020, gerou efeitos enormes na população em situação de vulnerabilidade social. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) projeta que em agosto de 2020 – com o auxílio – 9,5 milhões de brasileiros (4,5% da população) viviam na extrema pobreza. Em fevereiro de 2021, o número aumentou para 27 milhões de pessoas (12,2% da população). Viver na extrema pobreza significa sobreviver com R$ 246 por mês (R$ 8,20 por dia).

A partir de abril, o auxílio emergencial voltará a ser depositado por quatro meses, mas com valores menores: R$ 150 para famílias de uma pessoa só, R$ 250 para famílias de 2 pessoas ou mais, ou R$ 375 no caso de mães solteiras.

Além da interrupção e redução do auxílio, dados do IBGE mostram que o preço dos alimentos teve um aumento de mais de 15% nos 12 meses desde o início da pandemia. O número é quase o triplo da inflação, que foi de 5,2% no mesmo período.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que a cesta básica ficou mais cara em todas as capitais em 2020. Com base na cesta mais cara de janeiro de 2021, a de São Paulo, o Dieese indica que uma família de quatro pessoas – dois adultos e duas crianças – precisaria de um salário mínimo de R$ 5.495,52. Isso corresponde a cinco vezes o valor do salário mínimo atual, que é de R$ 1.100,00.

Ainda segundo o IBGE, a taxa de desemprego atual é de 14,2%, a maior registrada na série histórica, iniciada em 2012. São cerca de 14,3 milhões de desempregados. É nesse contexto que os movimentos sociais têm se organizado.

"As pessoas estão desesperadas"

"Não tem nada mais cruel do que a fome. Porque com fome você não pensa, não age, você não consegue de fato sair daquela condição", diz o cientista político Seimour Souza, da Coalizão Negra por Direitos. A organização composta por mais de 200 entidades ligadas ao movimento negro lançou, em março, a campanha Tem Gente Com Fome. Em parceria com a Anistia Internacional, Oxfam Brasil, Redes da Maré, entre outras, a Coalizão quer atender mais de 222 mil famílias em todos os estados do país.

"Cotidianamente eu recebo mensagens dizendo 'Olha, não precisa nem ser uma cesta básica, pode ser um arroz, um fubá'. As pessoas estão desesperadas por coisas mínimas", diz Souza.A campanha, que se sustenta através de financiamento coletivo, já arrecadou cerca de R$ 5 milhões. Mas o cientista político alerta: "É muito pouco diante da demanda que temos. Com R$ 5 milhões conseguimos atingir pouco mais de 30 mil das 222 mil famílias."

Outra iniciativa que teve início em março é a Cozinha Solidária, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). O MTST pretende inaugurar, até o fim de abril, 16 cozinhas comunitárias em 11 estados do Brasil. Quatro já foram abertas. Cada cozinha oferece gratuitamente ao menos uma refeição todos os dias. A quantidade de porções diárias, que gira em torno de 150 a 300, varia em cada estado. A iniciativa também é mantida através de financiamento coletivo.

Danilo Pereira, da coordenação nacional do MTST, diz que a maioria das pessoas atendidas pelas cozinhas são trabalhadores informais, como camelôs e ambulantes. "Já teve casos de desmaio na fila porque a pessoa chega em uma situação sem alimentação há muito tempo, no calor, pessoas vindo de outros municípios", relata. Apesar de a iniciativa estar estruturada, a previsão não é boa: "A nossa previsão, e espero que não esteja correta, é que na ausência do auxílio emergencial ou com esse valor reduzido, nos próximos meses tenhamos um quadro igual ou pior ao do ano passado."

Dezenas de outras organizações também estão promovendo campanhas pelo país, como a Ação da Cidadania, A Cufa (Central Única de Favelas), G10 Favelas e o Banco de Alimentos. As entidades destacam que as doações diminuíram em relação ao início da pandemia: "Temos tido uma demanda muito maior e uma diminuição das doações", explica Seimour Souza, da Coalizão Negra por Direitos.

"A situação me deixa muito angustiada, triste. Eu tenho que fazer alguma coisa", conta a professora aposentada Palma Orofino d'Ávila, de Porto Alegre, que tem contribuído com algumas iniciativas. A aposentada vê e sente os efeitos da crise econômica: "As pessoas estão mais pobres, e os alimentos estão mais caros. A conta não fecha, né? Não dá. Por isso a fome está aí", diz.

O papel do Estado

Mesmo levando ajuda a milhares de brasileiros, os movimentos sociais apontam que a responsabilidade não deveria ser deles. "A gente assume essa responsabilidade porque a gente tem uma consciência coletiva. E porque senão nós, quem? É uma imoralidade que a gente esteja voltando a pedir uma coisa básica, que é um arroz e feijão", afirma Seimour.

"Apesar de muito importantes, as mobilizações da sociedade civil não têm o mesmo alcance do Estado. A gente tem que louvar, mas essas iniciativas têm um papel de colchão de amortecimento",  diz Sergio Schneider, professor de desenvolvimento rural e sistemas alimentares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele ressalta que a segurança alimentar da população deve ser promovida através de políticas públicas: "E não é uma política de governo, é uma política de Estado."

O cenário é paradoxal, pois mesmo estando entre os maiores produtores de alimentos do mundo, o país tem 10,3 milhões de pessoas sem ter o que comer. Schneider aponta que agronegócio é estratégico para a geração de divisas para a exportação, mas não tem cumprido o seu papel na garantia da segurança alimentar da população. "É uma grave falha. Pode até ter comida na prateleira do supermercado, mas o preço é proibitivo."

Ele destaca ainda que, em um cenário de crise, o poder público tem a responsabilidade de agir. "O Estado precisa fazer políticas de segurança alimentar. Tem que fazer esse alimento chegar ao povo", defende.

Danilo Pereira, do MTST, resume o cenário que o movimento tem encontrado: "Quem está no território sente na pele essa ausência do Estado no que diz respeito à garantia das condições básicas de vida. Nessas emergências, o movimento social está lá, tanto para ajudar no problema imediato, quanto para cobrar soluções."

Desmantelamento de políticas públicas

Para Schneider, há um desmantelamento das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar no Brasil nos últimos anos. "O que o governo faz quando não quer que as políticas sejam executadas? Não aloca orçamento e não aloca pessoal. É uma tática de desconstrução intencional e organizada", afirma.

Ele cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003 como parte de um sistema de políticas públicas de segurança alimentar. "O PAA era um programa que tinha um orçamento muito expressivo e agora tem um orçamento baixíssimo", diz.

No âmbito do PAA, alimentos produzidos pela agricultura familiar são comprados e destinados a pessoas em situação de insegurança alimentar, a restaurantes populares, à formação de estoques de alimentos e às redes de ensino e socioassistenciais. Em 2012, o orçamento do programa chegou a R$ 1,2 bilhão. Já em 2018 foram aplicados R$ 253 milhões, seguidos de apenas R$188 milhões em 2019: menos de um sexto do valor de 2012. Em 2020, houve um acréscimo com relação ao ano anterior para ações emergenciais devido à pandemia, e o orçamento foi de R$220 milhões.

Schneider também critica a falta de ação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – um dos mais conceituados do mundo – em acionar as cozinhas das escolas durante a pandemia, com ações organizadas, para alimentar famílias. "Nós não tivemos nenhuma ação dos responsáveis pelo PNAE, e os contratos de fornecimento dos alimentos estavam lá", diz. "Vejo uma falta de interesse, uma desarticulação dessas políticas alimentares. Isso resulta, junto com a pandemia e a estagnação da economia, no recrudescimento da fome", conclui.

Por enquanto, movimentos como o MTST e a Coalizão Negra Por Direitos continuam com as campanhas, arrecadando recursos e buscando ajudar o máximo de pessoas possível. Mas, nas palavras de Danilo Pereira, do MTST, o desejo a longo prazo é: "Chegar em um momento em que a gente não precise mais fazer isso, que o governo consiga implementar uma política de combate à fome efetiva, que chegue a todos os lugares, contemple uma alimentação saudável, como a gente já chegou perto no Brasil, em um passado recente."

Entenda o tamanho do desafio

Insegurança alimentar é quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Hoje, em meio à pandemia, mais da metade da população brasileira está nessa situação, nos mais variados níveis: leve, moderado ou grave. E a insegurança alimentar grave afeta 9% da população – ou seja, 19 milhões de brasileiros estão passando fome. Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020.

Os resultados mostram que nos três meses anteriores à coleta de dados, apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar. Isso significa que em 55,2% dos domicílios os habitantes conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018 (36,7%).

Em números absolutos: no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos.

Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).

É um cenário que não deixa dúvidas de que a combinação das crises econômica, política e sanitária provocou uma imensa redução da segurança alimentar em todo o Brasil.

O BRASIL CONTINUA DIVIDIDO ENTRE OS POUCOS QUE COMEM À VONTADE E OS MUITOS QUE SÓ TÊM VONTADE DE COMER

A fome no Brasil é um problema histórico, mas houve um momento em que fomos capazes de combatê-la.

Entre 2004 e 2013, os resultados da estratégia Fome Zero aliados a políticas públicas de combate à pobreza e à miséria se tornaram visíveis.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, revelou uma importante redução da insegurança alimentar em todo o país. Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2% – o nível mais baixo até então. Isso fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura finalmente excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente.

Mas esse sucesso na garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável foi anulado. Os números atuais são mais do que o dobro dos observados em 2009.

A FOME RETORNOU AOS PATAMARES DE 2004

E o retrocesso mais acentuado se deu nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, segundo dados da PNAD e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8,0% ao ano. A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6%.

Ou seja: em apenas dois anos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Nesse período, quase 9 milhões de brasileiros e brasileiras passaram a ter a experiência da fome em seu dia a dia.

FOME NÃO TEM HORA, MAS TEM LUGAR

Segundo a pesquisa VigiSAN, a insegurança alimentar cresceu em todo país, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas. As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome.

Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste – enquanto o percentual nacional é de 55,2%. Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9,0% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste.

O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões. Já no Norte, que abriga apenas 7,5% dos habitantes do Brasil, viviam 14,9% do total das pessoas com fome no país no período.

Além disso, a conhecida condição de pobreza das populações rurais, sejam elas de agricultores(as) familiares, quilombolas, indígenas ou ribeirinhos(as), tem reflexo importante nas condições de segurança alimentar. Nessas áreas, em todo o país, a fome se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios.

A FOME TEM GÊNERO, COR E GRAU DE ESCOLARIDADE

Algumas condições individuais podem afetar negativamente a situação de segurança alimentar.

Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem.

Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.

A fome se fez presente em 14,7% dos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto. Com Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto, caiu para 10,7%. E, finalmente, em lares chefiados por pessoas com Ensino Médio completo em diante, despencou para 4,7%.

A FOME NÃO ANDA SOZINHA

A fome vem acompanhada de muitas outras carências, destacadamente a falta de água.

A insegurança hídrica, medida pelo fornecimento irregular ou mesmo falta de água potável, atingiu em 2020 40,2% e 38,4% dos domicílios do Nordeste e Norte, respectivamente, percentuais quase três vezes superiores aos das demais regiões.

O abastecimento irregular de água é uma das condições que aumentam a transmissão pessoa a pessoa da Covid-19, ocorrendo com maior frequência em domicílios e regiões mais pobres do país.

A relação entre a insegurança alimentar e a insegurança hídrica é incontestável. Segundo a pesquisa VigiSAN, a proporção de domicílios rurais com habitantes em situação de fome dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos (de 21,8% para 44,2%).

A INSEGURANÇA ALIMENTAR PODE TER AVANÇADO TAMBÉM ENTRE AS PESSOAS QUE NÃO SE ENCONTRAM EM CONDIÇÃO DE POBREZA

Houve em dois anos um aumento acentuado na proporção da insegurança alimentar leve – de 20,7% para 34,7%.

Cerca de metade dos entrevistados relatou redução da renda familiar durante a pandemia, provocando inclusive cortes nas despesas essenciais. Esses lares constituem o grupo com maior proporção de insegurança alimentar leve – por volta de 40%.

Isso aponta para o impacto da pandemia entre famílias que tinham renda estável, que provavelmente foram empurradas da segurança alimentar para a insegurança alimentar leve.

A crise econômica agravada pela pandemia está fazendo com que a insegurança alimentar se alastre inclusive entre os que não se encontram em condição de pobreza.

POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGO E RENDA
+ AUXÍLIO EMERGENCIAL = COMBATE EFETIVO À FOME NA PANDEMIA

Um dado se destaca: a insegurança alimentar moderada e grave desaparece por completo em domicílios com renda familiar mensal acima de um salário-mínimo per capita: 0,0%.

No que se refere à situação de trabalho da pessoa de referência dos domicílios, a ocorrência da fome foi quatro vezes superior entre aquelas com trabalho informal e seis vezes superior quando a pessoa estava desempregada.

Em tempos de Covid-19, no entanto, os desafios são maiores. O sucesso da garantia do direito humano à alimentação adequada, alcançado até 2013, foi progressivamente revertido a partir de 2014, e ganhou impulso negativo maior com o início da pandemia da Covid-19.

Famílias que solicitaram e receberam parcelas do auxílio conviviam com alta proporção de insegurança alimentar moderada ou grave (28%), o que enfatiza a grande vulnerabilidade desse grupo. Sem uma resposta adequada dos governos em forma de políticas públicas, a fome vai persistir – e aumentar.

A escalada da fome durante a pandemia não é de responsabilidade de um vírus, mas de escolhas políticas de negação e da ausência de medidas efetivas de proteção social.


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