28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

O culto à morte forjou o ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’, diz pesquisador

Publicado em 05/04/2021 12:00 -

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A luz que ilumina o horror dos dias correntes é acesa por dois fios que a conectam ao Brasil atual: retórica do ódio e analfabetismo ideológico. “A guerra cultural bolsonarista, que se beneficia de uma técnica discursiva, a retórica do ódio, ensinada nas últimas décadas por Olavo de Carvalho, conduzirá o país ao caos social, à paralisia da administração pública e ao déficit cognitivo definidor do analfabetismo ideológico”, afirma João Cezar de Castro Rocha.

 “O bolsonarismo resgata os princípios da Doutrina de Segurança Nacional, aperfeiçoada na Escola Superior de Guerra e influenciada pela atmosfera polarizada da Guerra Fria, cujo corolário de ferro deve ser enfatizado: a eliminação do “inimigo interno” e a limpeza correspondente do corpo social”, enfatiza.

O entrecruzamento de três fatores sustenta a retórica de morte do bolsonarismo. “Pulsão antissistêmica, anticomunismo de almanaque da Guerra Fria e revisionismo histórico do período de chumbo da ditadura militar”, explica. “A Lei de Segurança Nacional de setembro de 1969 representou um culto à morte do outro, visto como adversário, inimigo a ser eliminado”, complementa.

Contudo, a forma de governo da atual gestão é assentada sobre um oximoro que, no fundo, impede a possibilidade de governar. “O êxito do bolsonarismo leva ao colapso do governo Bolsonaro; colapso que deve tornar-se visível, palpável até, especialmente para os eleitores do capitão”, frisa. “O único projeto discernível do bolsonarismo é o autogolpe, o estabelecimento de uma democratura. A guerra cultural é a ponta de lança desse projeto autoritário”, assinala.

João Cezar de Castro Rocha é professor titular de Literatura Comparada na UERJ. Graduado em História e mestre e doutor em Letras pela mesma instituição, fez um segundo doutorado em Literatura Comparada na Stanford University, EUA. Realizou estudos de pós-doutorado na Freie Universität e na Princeton University. Recebeu em 2014 o prêmio Ensaio e Crítica Literária da Academia Brasileira de Letras, e em 1998, o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É autor, entre outras obras, do recém lançado Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político (Goiânia: Editora Caminhos, 2021).

 

O que é a chamada “guerra cultural” e quais são as particularidades da guerra cultural empreendida por Bolsonaro?

Em primeiro lugar, o tema da guerra cultural é, por definição, transnacional e meta-histórico, envolvendo um conjunto considerável de referências teóricas produzidas em muitos idiomas, assim como uma série de práticas políticas mimetizadas em latitudes as mais diversas, especialmente eficazes no universo das redes sociais. De fato, um número crescente de estudos associa com agudeza o contexto local à cena internacional, numa abordagem comparativa de grande interesse. Este não foi, contudo, meu propósito em Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político (Goiânia: Editora Caminhos, 2021). Concentrei-me deliberadamente na cena brasileira. E, nessa cena restrita, privilegio o estudo da mentalidade bolsonarista, a fim de trazer à baila aspectos relacionados à história da ditadura militar e à articulação de um movimento, incialmente subterrâneo, de reorganização da direita brasileira a partir de meados da década de 1980. Movimento que, na década de 2010, foi associado com incomum êxito à onda conservadora, especialmente no tocante a temas relacionados à educação sexual. Nesse campo, duas notícias falsas (fake news) tiveram um papel de destaque na vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro: o inexistente “kit gay” e a deturpação completa de uma área de estudos, gender studies, numa delirante “ideologia de gênero”.

É óbvio que o bolsonarismo não inventou a guerra cultural! O choque entre visões de mundo contrárias remonta aos séculos XVI e XVII, pois é parte estrutural da noção moderna de tempo. Uma vez que se introduziu uma diferença qualitativa entre passado, presente e futuro, a novidade se tornou o sal da terra; em consequência, o choque de valores passou a ocupar o centro da cena da cultura. Seria fácil multiplicar exemplos de conflitos de valores nos séculos XVIII e XIX, seja a Kulturkampf, na Alemanha da década de 1870, e a discussão sobre a separação de Igreja e Estado no mundo moderno, seja na Rússia oitocentista e a radicalização da querela multissecular opondo eslavófilos, ocidentalistas e eurasianistas. Reitero o ponto que interessa sublinhar: nesse horizonte não há espaço para aniquilar o adversário; não se deseja apagar ou varrer o outro do mapa. Disputa-se, aqui, a hegemonia cultural, o que sempre implica a presença do coro dos contrários.

Naturalmente, por isso mesmo, o sentido atual, sobretudo norte-americano, de culture wars não é o único possível, embora seja dominante e tenha desempenhado um papel decisivo na articulação do bolsonarismo. Essa noção de guerra cultural associa-se aos conflitos internos da sociedade norte-americana após a década de 1960 e a revolução da contracultura. Esse caráter agônico favorece o impulso de eliminação do adversário, pois se trata de disputar a “essência” de uma sociedade e não apenas debater alternativas de governo: traço igualmente definidor do bolsonarismo. No entanto, por que limitar nosso horizonte intelectual à mediocridade contemporânea?

Reitero: o analista não deve tornar-se um refém ingênuo de seu tema de estudo. Se a guerra cultural norte-americana e a bolsonarista somente sabem operar num registro binário, maniqueísta mesmo, não sou obrigado a limitar minha reflexão pelo metro do daltonismo alheio. No Brasil, ademais, há um dado muito importante, qual seja, uma fissura geracional, nem sempre observada com atenção, originou um fenômeno novo: a emergência de uma expressiva juventude de direita, ágil no uso das redes sociais e hábil na disputa das ruas — território tradicionalmente ocupado pela esquerda.

Por fim, a guerra cultural bolsonarista, que se beneficia de uma técnica discursiva, a retórica do ódio, ensinada nas últimas décadas por Olavo de Carvalho, conduzirá o país ao caos social, à paralisia da administração pública e ao déficit cognitivo definidor do analfabetismo ideológico, outro conceito novo que apresento, e com o qual descrevo a negação da realidade e o desprezo pela ciência que estruturam o bolsonarismo. A condução criminosa da atual crise provocada pela Covid-19 é uma comprovação trágica (e muito infeliz) do que proponho em meu livro. Preferia não tê-lo escrito; preferia não ter razão alguma, desde que nunca chegássemos aos números trágicos da pandemia que mancharão para sempre nossa história.

Como se caracteriza a retórica do ódio bolsonarista? Que elementos a constituem?

Numa síntese radical: a retórica do ódio pretende eliminar simbolicamente o outro, ou seja, todo aquele que não seja espelho. O uso obsessivo e francamente monótono de palavrões desempenha o papel de desqualificação completa do adversário, transformado em inimigo, cuja destruição é favorecida pelo tratamento prévio. Inaugura-se, assim, um perverso círculo vicioso do qual a sociedade brasileira tem dificuldade de se libertar. Pois é bem esse o propósito da retórica do ódio, qual seja, transformar o outro num nada, de modo a permitir sua eliminação simbólica.

Destaque-se o padrão tautológico da retórica do ódio, inviabilizadora do diálogo pela irracionalidade intrínseca de seus pressupostos, que, no entanto, são apresentados num emaranhado de informações desencontradas, mas cuja coerência interna não deve ser menosprezada. Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica desenvolvida por Olavo de Carvalho, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de lugar nenhum. O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho de minhas próprias convicções. E, como se trata de uma técnica, a desqualificação nulificadora foi aprendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes e dislikes, alcançou a esfera privada de dezenas de milhões de pessoas através das temidas correntes de WhatsApp, e, por fim, foi traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.

A difusão da retórica do ódio, que define a doutrinação do autor de O imbecil coletivo, representa hoje o maior obstáculo para a superação do caos cognitivo produzido pelo analfabetismo ideológico, por sua vez, alimentado pela idiotia erudita. Como se percebe, a retórica do ódio é menos bolsonarista do que olavista.

De que maneira um discurso revisionista da ditadura civil-militar no Brasil é, também, uma marca desta guerra cultural?

Eis aí um traço propriamente brasileiro do fenômeno transnacional da guerra cultural. O revanchismo, marca d’água da mentalidade bolsonarista, se inicia no projeto secreto do Exército brasileiro na década de 1980, Orvil, duplo mimético do icônico Brasil: Nunca Mais, livro-denúncia das arbitrariedades e violências da ditadura, lançado em 1985.

Dois rebentos da pregação olavista ajudam a entender a natureza especial do revisionismo: o Instituto Borborema e a produtora de conteúdo audiovisual, Brasil Paralelo — é assim mesmo que se denominam, não é implicância minha: Brasil Paralelo. A página na internet do Instituto Borborema apresenta candidamente os princípios norteadores da empresa:

Fundado em 2015, o IB tem como objetivo principal o resgate da verdadeira educação e da verdadeira cultura. Acreditamos que os grandes problemas brasileiros são consequências diretas da derrocada educacional que assola o país há pelo menos cinco décadas.

O surpreendente é que a derrocada educacional assola o país há pelo menos cinco décadas. Compreende-se, assim, a urgência com que oferecem cursos virtuais, que devem ser virtuosamente pagos, claro está. Uma aritmética elementar aponta para uma questão política séria: 2015 – 50 = 1965. Então, das cinco décadas de sequestro da verdadeira educação e da verdadeira cultura, nada menos do que vinte anos são de responsabilidade do regime militar?

Eis um dos aspectos mais complexos na constituição da juventude de direita a partir, sobretudo, do final da década de 1990, e, ao mesmo tempo, seu elemento mais inquietante, pois mantém uma fronteira muito tênue com a extrema-direita reacionária que se mostra tão vocal e desinibida no Brasil contemporâneo, pois os atuais problemas vêm precisamente do período da ditadura militar.

Por quê? A resposta ilumina o horror bolsonarista: a ditadura militar “somente” venceu a batalha das armas, mas perdeu a guerra dos livros. Em consequência, governar é menos importante do que radicalizar a guerra cultural, de modo a não repetir o “equívoco” dos militares, que não foram suficientemente destruidores da esquerda! Daí, destruir órgãos públicos aparelhados é tarefa mais relevante do que empenhar-se na prosaica engenharia de administração cotidiana do país. Ou se entende essa percepção da história recente do Brasil ou não se compreende a ascensão de uma juventude de direita tão extremista.

O “inventivo” documentário 1964: O Brasil entre armas e livros defendeu essa narrativa para milhões de espectadores. A produtora responsável pelo filme? Brasil Paralelo: autorretrato involuntário, claro está. Voltemos ao subtítulo: O Brasil entre armas e livros. A ditadura triunfou no território das armas, mas, sem um entendimento apurado da dinâmica das forças mundiais nas décadas de 1960 e 1970, cedeu terreno na área da cultura, o que se revelou um erro decisivo. Em outras palavras, a ditadura venceu a batalha militar, porém perdeu fragorosamente a guerra cultural. O documentário propõe uma analogia de consequências trágicas para a administração de um país em meio a uma crise mundial de saúde: o triunfo eleitoral importa muito menos do que a razia prometida nas instituições de ensino, no mundo do entretenimento, na esfera pública como um todo, aí incluindo especialmente a mídia. Nesse sentido, recordam as revoluções fundamentalistas que se interessam muito pouco pela administração da coisa pública e, pelo contrário, se imiscuem indiscretamente em todos os domínios da esfera privada. E isso com base numa interpretação delirante do marxismo cultural.

No fundo, os diretores da produtora Brasil Paralelo certamente assistiram aos documentários de Steve Bannon, com destaque para Generation Zero. Em 1964: O Brasil entre armas e livros, a interpretação sobre a década de 1960 é exatamente a mesma e, de igual modo, localiza-se a origem da hegemonia cultural da esquerda no clima “permissivo” forjado pelo espírito da contracultura. Nos documentários criativos da Brasil Paralelo há uma série de elementos que revelam a inspiração propiciada pelos filmes de Steve Bannon: a estética de uma sucessão vertiginosa de imagens nem sempre relacionadas com a narração; montagem intimamente associada ao ritmo de videogames; idêntica interpretação conservadora, por vezes reacionária, da história; manipulação de fatos e dados, a fim de corroborar uma perspectiva revisionista; uso mimético da trilha sonora como mera ilustração de uma atmosfera em geral sombria, pois o filme “desvenda” elaborados movimentos conspiratórios de alcance planetário. Os documentários de Bannon evidentemente defendem um projeto político, como o próprio diretor assume. Brasil Paralelo, aqui também, emula o mestre.

O revisionismo, portanto, tem uma “sutileza”: critica-se a Ditadura por não ter sido suficientemente repressora. Daí, o resgate de uma figura abjeta, o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O que significa, em termos simbólicos, a retomada e atualização dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional e como isso é fundamental para a produção de “inimigos internos”?

No tocante à memória da ditadura militar, experimentamos uma circunstância muito específica, intimamente relacionada ao movimento revisionista da direita e mesmo da extrema-direita. No caso da guerra cultural bolsonarista e de sua linguagem, a retórica do ódio, não há meio termo, tampouco hesitação: trata-se de ver o outro como um adversário, um inimigo para varrer do mapa. Uma vez identificado, sua eliminação se impõe e não deve ser procrastinada. E se é verdade que as culture wars norte-americanas, especialmente após sua apropriação pela alt-right, também almejam a aniquilação das diferenças, no caso brasileiro há uma teoria que, remontando em seus primórdios à década de 1930, conheceu sua formulação definitiva e draconiana durante a ditadura militar estabelecida com o golpe de 1964: A Doutrina de Segurança Nacional já advogava a eliminação necessária do adversário.

O bolsonarismo resgata os princípios da Doutrina de Segurança Nacional, aperfeiçoada na Escola Superior de Guerra e influenciada pela atmosfera polarizada da Guerra Fria, cujo corolário de ferro deve ser enfatizado: a eliminação do “inimigo interno” e a limpeza correspondente do corpo social. Em consequência, a adaptação truculenta da Doutrina de Segurança Nacional em tempos democráticos; de outro, a adoção insensata da narrativa conspiratória do projeto secreto do Exército brasileiro, o Orvil. Aqui, o anticomunismo bolorento é peça-chave do quebra-cabeças, favorecendo a estigmatização do inimigo de sempre, cuja “ameaça iminente” legitima todos os desmandos e todas as arbitrariedades. Este é o elo que reúne a retórica do ódio e a Doutrina de Segurança Nacional. Em ambos os casos, uma vez identificado o inimigo, sua imediata eliminação é a única alternativa aceitável.

De fato, na Doutrina de Segurança Nacional da ditadura militar o opositor do regime era tratado como um inimigo externo. Posso ser ainda mais direto: a Lei de Segurança Nacional de setembro de 1969 representou um culto à morte do outro, visto como adversário, inimigo a ser eliminado. Em primeiro lugar, a LSN de 1969 é muito mais robusta do que a de 1967 e, assim, de 58 salta para 107 artigos. Os primeiros artigos se repetem, mas, muito em breve, tudo muda.

E a mudança é radical: o substantivo morte aparece 32 vezes na redação da LSN de 1969. No capítulo II, “Dos crimes e das penas”, nada menos do que nove artigos estabelecem como pena: “Prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo”. Outros seis artigos revivem a lei de talião e prescrevem a pena de morte para ações que, de igual forma, tenham resultado na morte de agentes oficiais ou de civis.

Recordemos, agora, as datas da iniciação militar do jovem Jair Messias Bolsonaro: em março de 1974, ele ingressou na AMAN, e foi declarado aspirante em dezembro de 1977. Sua mentalidade de militar foi forjada sob a égide da Lei de Segurança Nacional de 1969, que, vale repisar, mais do que apenas um Decreto-lei, é sobretudo um culto à morte. Sublinhe-se a gravidade desse dado: entre 1969 e 1978 a pena de morte foi prescrita no país fora de uma situação específica, a de guerra declarada com potência estrangeira, o casus belli que acabamos de ver; aliás, dispositivo ainda hoje vigente.

A mentalidade bolsonarista é a tradução insensata para tempos democráticos da DSN em sua expressão mais violenta, a LSN de 1969. As consequências não podem ser senão trágicas, como assinalarei na sétima pergunta desta entrevista.

Em que consistem os ativismos judicial e digital? Como eles ajudam a compreender a emergência do Bolsonarismo?

Para efeito de síntese parto das Manifestações de Junho de 2013, que abriram a Caixa de Pandora do sentimento antissistêmico, que, por si só, tornou-se, se não um agente político, seguramente uma agência política de força incomum. A vitória eleitoral do Messias Bolsonaro é incompreensível sem esse sentimento, muito embora o capitão seja o gestor de uma franquia muito bem-sucedida: sua própria família. Assinalo a convergência, essa sim propriamente brasileira, entre três fatores cuja inter-relação produziu a anomia-Brasil do governo Bolsonaro: pulsão antissistêmica, anticomunismo de almanaque da Guerra Fria e revisionismo histórico do período de chumbo da ditadura militar.

Arrisco uma formulação de um evento cuja enorme complexidade segue desafiando as interpretações: as Manifestações de Junho materializaram um difuso sentimento antissistêmico, que se manifestou na decidida recusa da figura do político tradicional. Aliás, fenômeno transnacional e que foi instrumentalizado pelo populismo digital de direita. Ao mesmo tempo, com uma intensidade e amplitude antes desconhecidas na história brasileira, a política tornou-se autêntica paixão do dia a dia nacional. Isto é, despreza-se o político, mas se situa a política no centro da pólis — pós-política. Nesse horizonte, as formas tradicionais de mediação entre poder e cidadania são metodicamente descartadas em favor de uma noção que se impôs como o alfa e o ômega das massas digitais: ativismo. Eis o paradoxo que ainda hoje domina a cena brasileira.

Uma diferença crucial se impôs com clareza meridiana a partir de 2013: as massas digitais não precisam esperar o sistema para sua inclusão, sua ação é direta e sua lei é o ativismo; ademais, sua fragmentação torna muito difícil, se não inviável sua convocação a partir de um centro único de irradiação. Como vimos, a mobilização das massas digitais ganhou corpo nas Manifestações de Junho de 2013. Mas como associá-la ao ativismo judicial?

Creio haver encontrado um elo de grande relevância: pouco a pouco, cartazes relativos à PEC 37 começaram a ganhar visibilidade nas ruas e nas praças em todo o Brasil. Pela primeira vez, uma medida técnica envolvendo uma questão jurídica apaixonava as multidões: exigia-se nada menos do que sua revogação; afinal, tratava-se da Proposta de Emenda Constitucional que pretendia limitar as atividades de investigação, que passariam a ser prerrogativa exclusiva das Polícias, excluindo automaticamente o Ministério Público de diligências envolvendo crimes de corrupção, por exemplo. Se tal PEC tivesse sido aprovada, simplesmente a Operação Lava Jato jamais teria sido possível e uma parceria no mínimo suspeita entre um juiz federal, imaginemos um Sergio Moro, e um procurador da República, pensemos num Deltan Dallagnol, permaneceria no domínio da ficção. A ação das massas digitais mudou radicalmente a história política brasileira ao transferir sua força para o ativismo judicial. De fato, em 2013, pressionados pelas manifestações, os parlamentares derrubaram a proposta de emenda à Constituição – PEC que tornava a investigação criminal prerrogativa exclusiva das Polícias, proibindo o Ministério Público – MP de apurar crimes diretamente, sem participação policial. Antes dos eventos de junho, a PEC 37, apelidada pelo MP de “PEC da impunidade”, tinha aprovação dada como certa. Entretanto, ao ser colocada em votação pela Câmara, no dia 26 daquele mês, depois de ser incluída nos cartazes dos manifestantes, foi rejeitada por 430 dos 513 deputados.

Sinal verde, caminho pavimentado para o ativismo judicial que mudou radicalmente o panorama da vida brasileira. A vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro é inimaginável sem a Operação Lava Jato e a prisão do ex-presidente Lula.

De que ordem são os desafios para se construir uma ética do diálogo, sobretudo levando em conta o papel que os bots (robôs) exercem na circulação de notícias falsas?

Começo no polo oposto: no plano do duelo argumentativo, a retórica do ódio é dependente de uma ingênua lógica da refutação, que, no plano do debate, ainda que na esfera do dia a dia e no domínio da política, mais uma vez evoca o princípio da Doutrina de Segurança Nacional, pois o objetivo é não apenas calar o outro, mas humilhá-lo publicamente; numa palavra, eliminá-lo. Nada mais patético do que youtubers, “jornalistas” e políticos que editam suas participações em eventuais aparições midiáticas em vídeos sempre com idêntico título: “A destrói B”; “C arrasa D”; “E humilha F”. No fundo, trata-se de uma contrafação vulgar da dialética erística, tal como apresentada por Arthur Schopenhauer.

Por isso, se não compreendermos que Jair Messias Bolsonaro foi o ponto de fuga de uma série de pulsões fundadoras de nossa formação atavicamente desigual e profundamente hierárquica, não saberemos reinventar o cenário político.

Vale dizer, se a retórica do ódio somente vê no outro um inimigo a ser eliminado, pelo contrário, a ética do diálogo reconhece no outro um outro eu, cuja diferença enriquece minha vida ao ampliar meu horizonte. Contudo, não há garantia alguma: a retórica do ódio conta com um Gabinete oficial e uma máquina de produção de fatos alternativos que opera 365 dias ao ano. Por isso, é bem possível que abraçar a ética do diálogo seja muito pouco diante da máquina de ódio e de desinformação das redes sociais. Porém, ao sugerir essa possibilidade, penso num paradoxo fundamental que desvelo no meu livro: o êxito do bolsonarismo leva ao colapso do governo Bolsonaro; colapso que deve tornar-se visível, palpável até, especialmente para os eleitores do capitão; ponto a que retorno na nona pergunta.

Em que sentido o bolsonarismo representa uma ameaça maior à democracia do que a própria ditadura civil-militar?

Na mentalidade bolsonarista, o objetivo de chegar ao poder não significa necessariamente propor um projeto nacional construtivo, não importa em que direção; na verdade, o propósito real é promover a destruição das instituições que foram aparelhadas no decurso da quarta tentativa de tomada do poder pela esquerda – conforme reza a cartilha da teoria conspiratória do Exército, expressa no Orvil. Daí, o modelo desastroso de um governo enquanto arquitetura da destruição, movido por uma narrativa conspiratória.

Tal interpretação favorece o modelo da guerra cultural em curso e que, levada adiante na marcha brucutu da insensatez bolsonarista, tem provocado uma autêntica arquitetura da destruição, que conduz à paralisia de áreas essenciais da administração pública — exatamente o que ocorre de forma dramática com o MEC, o mais importante ministério da República, que nada fez de efetivo para responder à tragédia que assola o país com a peste da Covid-19. E o que dizer de quase 300 mil mortos na ausência de um verdadeiro plano nacional por parte do Ministério da Saúde? Metáfora cruel, e absurda, de uma indiferença tão abjeta quanto criminosa.

Nesse sentido, retorno à fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020: autorretrato involuntário do governo enquanto arquitetura da destruição. Naquele dia, chegávamos ao terrível número de 2.924 mortes. Manifestou-se solidariedade aos familiares das vítimas da Covid-19? Planejaram-se ações para conter a peste? Nada! Paulo Guedes sonhou em esconder “a granada no bolso do inimigo”, ou seja, o funcionalismo público, numa atualização grotesca da Doutrina de Segurança Nacional; Damares Alves entrou em êxtase para “prender governadores e prefeitos”; Ricardo Salles, sem corar, sugeriu “ir passando a boiada e mudando todo o regramento”. O presidente manifestou o desejo inconstitucional de ter um serviço secreto pra chamar de seu.

Deixemos a diplomacia de lado: duas horas de parolagem inútil, dominada por palavrões, mimetismos exaltados do chefe-brigão, delírios conspiratórios, pulsão autoritária de intervir no Judiciário, e nada que reflita uma equipe de governo definindo metas, estabelecendo prioridades, atribuindo missões específicas a agentes públicos treinados para o trabalho. Nessa circunstância dramática, o único projeto discernível do bolsonarismo é o autogolpe, o estabelecimento de uma democratura. A guerra cultural é a ponta de lança desse projeto autoritário.

Como se caracteriza o bolsolavismo e de que forma ele se constitui em uma espécie de antídoto contra a realidade?

Principio pela descrição do efeito Olavo de Carvalho. Se não vejo mal, aí vai: a difusão de uma linguagem própria e vagamente conceitual; a disseminação da retórica do ódio como forma de desqualificar adversários; o palavrão como argumento de autoridade; a reconstrução revisionista da história da ditadura militar; a identificação do comunismo como inimigo eterno a ser eliminado uma e outra vez (e sempre de novo); a presunção de uma ideia bolorenta de alta cultura; a curiosa pretensão filosofante; a divertida veneração pelo estudo de um latim sem declinações e pelo desconhecimento metódico de um grego, grego de fato; a elaboração de labirínticas teorias conspiratórias de dominação planetária; a adesão iniciática a um conjunto de valores incoerentes; a utilização metódica da verve bocagiana, aqui reduzida a três ou quatro palavrões e a dois verbos — bem entendido: ir e tomar.

Destaque-se, aqui, a vocação hiperbólica da prosa olavista, peça-chave da retórica do ódio. Trata-se de um recurso autoritário, pois a sucessão de hipérboles descaracteriza o objeto em discussão, inviabilizando a análise crítica do enunciado, pela supressão de QUALQUER MEDIAÇÃO — como o senhor de Carvalho provavelmente escreveria.

Identifique-se, agora, a fonte do tsunami de disparates e de incoerências das redes sociais bolsonaristas: o sistema de crenças Olavo de Carvalho é o fio de Ariadne que nos orienta nesse labirinto. Termos-chave do discurso olavista sempre retornarão, esclarecendo a origem dos desarrazoados ilógicos, por exemplo, da prosa torta de um Carlos Bolsonaro: esquerdismo, globalismo, analfabetismo funcional, Nova Ordem Mundial, maçonaria, desonestidade intelectual, gramscismo, ideologia de gênero, PT e PSDB como duplos miméticos que cooperam para a vitória comunista no Brasil, entre tantas outras e inúmeras estultices.

Caracterizo, de outra forma, o sistema de crenças Olavo de Carvalho, que confere inteligibilidade aos delírios usuais da militância bolsonarista.

Eis: reúna anticomunismo paranoico com uma ideia mofada de alta cultura, acrescente teorias conspiratórias de dominação mundial com atribuição raivosa de analfabetismo funcional para todo aquele que discorde do “seu mestre mandou”, associe a lógica da refutação ao emprego consciente do mecanismo do bode expiatório, relacione a retórica do ódio com palavras de baixo calão e, se ainda assim houver algum contratempo, o mágico tira da cartola uma arrojada tentativa de tomada do poder — como reza o subtítulo-manifesto de Orvil.

A pregação olavista resultou no analfabetismo ideológico, que implica a projeção de suas próprias convicções no outro, no texto e no mundo. Tudo se transforma em pretexto para a reiteração de suas crenças. As redes sociais, graças à lógica do algoritmo, reforçam exponencialmente as condições para o contágio indiscriminado do fenômeno. O analfabetismo ideológico não supõe a existência objetiva de uma dificuldade (no limite, impossibilidade) de interpretar um texto simples — isso para não pensar em formulações complexas, que, para o analfabeto funcional, são verdadeiramente indecifráveis. Pelo contrário, em geral, o analfabeto ideológico tem boa formação, não enfrenta dificuldade alguma para interpretar textos elaborados e na maior parte dos casos possui uma boa expressão oral. Seu problema, portanto, não é de ordem cognitiva, porém política. O analfabetismo ideológico que domina o cenário mental brasileiro na era pós-política bolsonarista; por isso mesmo, a retórica do ódio foi fundamental no êxito da guerra cultural bolsonarista, propiciando a emergência do bolsolavismo.

Que alternativas temos diante desse contexto?

O paradoxo da guerra cultural bolsonarista, como a interpreto: sem seu tempero, o bolsonarismo não consegue manter as massas digitais em mobilização permanente; com a ubíqua guerra cultural, porém, não é possível administrar uma realidade complexa como a brasileira, pois a busca constante de inimigos desfavorece a consideração de dados objetivos. Infelizmente, a crise mundial de saúde, provocada pela Covid-19, somente acentuou o inevitável colapso produzido por uma mentalidade conspiratória à frente de um país com as dimensões continentais do Brasil.

Em tom dramático: a guerra cultural é a origem e a forma do bolsonarismo, mas, por isso mesmo, será (ou já é?) a razão do fracasso rotundo do governo Bolsonaro.

Como reagir a essa autêntica máquina de criação de uma realidade paralela, na qual vacinas não curam, economia vale mais que vidas, intervenção militar é sinônimo de democracia e AI-5 é o guardiao da liberdade individual?

Não sei ao certo, mas formulo uma hipótese.

Para enfrentar o populismo digital, é imprescindível resgatar o conceito de verdade factual, precisamos resgatar o pensamento de Hannah Arendt acerca da centralidade da verdade factual para encontrar um ponto de equilíbrio entre verdade e política. Na experiência histórica da ágora grega, apesar de limites bem conhecidos, pela primeira vez a palavra assumiu função deliberativa na procura de uma boa condução da pólis. Uma condição se impôs ou a tentativa seria frustrada antes mesmo de principiar: era indispensável distinguir fato de rumor. Na esfera íntima, o rumor naturalmente manteria seu império; contudo, somente fatos seriam admitidos no espaço coletivo de discussão.

Os dados objetivos, disponíveis em fontes oficiais, acerca da preocupante inépcia do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação não podem ser negados. No espaço público tradicional e na ágora virtual das redes sociais precisamos destacar essa incontestável verdade factual. Esqueçamos as narrativas delirantes, olvidemos as teorias conspiratórias labirínticas, deixemos de rebater as estultices do presidente: só a verdade factual vale o quanto pesa; vale enquanto faz pensar; porque se você parar pra pensar, na verdade, governo Bolsonaro não há. E precisamente porque há bolsonarismo em excesso.

Deseja acrescentar algo?

Desejo reiterar o último ponto com uma nova formulação: a guerra cultural se alimenta de um paradoxo que prenuncia a ruína do governo — nada menos do que isso. O risco, porém, é grande, pois a essência do bolsonarismo é autoritária e golpista.

Recupero a formulação do dilema: sem a guerra cultural, o bolsonarismo não mantém as massas digitais mobilizadas em constante excitação; contudo, a guerra cultural, pela negação de dados objetivos e pela necessidade intrínseca de inventar inimigos em série, não permite que se articule um programa de governo com um mínimo de coerência e continuidade. Daí, a impressão constante, incontornável até: o governo Bolsonaro não tem rumo, esboça ações e muitas vezes volta atrás, depende mais do que deveria do ruído das redes sociais, e, mesmo após o término de seu segundo ano, ainda não apresentou um plano concreto e abrangente para lidar com os desafios da retomada do desenvolvimento.

Desvelar o paradoxo do bolsonarismo para começar uma conversa com a sociedade é a única forma de superar os impasses criados pelo movimento bolsonarista e sua instrumentalização do ressentimento. E, quem sabe, dessa conversa advenha a possibilidade de substituir a retórica do ódio pela ética do diálogo. Em lugar do desejo perverso de aniquilação do outro, visto como inimigo a ser eliminado, vale apostar no reconhecimento do outro como um outro eu — e precisamente a diferença amplia meu horizonte existencial, enriquecendo minha visão do mundo.

Assinalo, por fim, o principal motivo do insucesso do governo Bolsonaro, vale dizer, a distopia de uma pólis pós-política, cujas mediações institucionais seriam violentamente suprimidas em favor de uma democracia direta, lastreada na volatilidade agressiva das redes sociais. Essa mal disfarçada pretensão autoritária leva o presidente a uma tensão estéril com os dois outros poderes da República e com as instituições da sociedade civil, destacando-se sua relação conturbada com a imprensa; relação conturbada, porém monótona e previsivelmente sempre hostil, já que se trata do receituário consagrado da onda transnacional de extrema-direita. Afinal, se a imprensa e, sobretudo, o jornalismo investigativo permaneceram relevantes, como impor uma realidade paralela? A guerra cultural é a ponta de lança dessa pulsão radicalmente antidemocrática.

A atual tragédia que vivemos, sem paralelo na história republicana, é a demonstração mais eloquente do fracasso completo do governo Bolsonaro, precisamente em virtude da guerra cultural que estrutura o bolsonarismo.


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