20/04/2024 - Edição 540

Brasil

Proposta permite que empresário seja elogiado por furar a fila da vacina

Publicado em 01/04/2021 12:00 -

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Após o presidente tentar transformar as Forças Armadas em seu playground, outro ato descarado chamou a atenção em Brasília nesta semana: um cambalacho de empresários, com a benção dos líderes do Congresso Nacional, para furar a fila da vacinação. E ainda pagarem de bons moços.

Contextualizando: uma lei foi aprovada, no início de março, autorizando a iniciativa privada a comprar vacinas. Maaaaas, ela teria que doar 100% das doses para o SUS (o glorioso Sistema Único de Saúde) enquanto a imunização dos grupos prioritários não acabasse. Depois disso, metade ficaria com o poder público e metade com a empresa.

Claro que o "altruísmo à brasileira" de um naco do empresariado brasileiro não ia ficar satisfeito com isso. Querem mais, querem tudo. Criaram uma narrativa. Tentam convencer que estarão ajudando o país se adquirirem vacinas por conta própria e aplicarem em seus empregados e nos familiares. Nessa narrativa, o país não tem doses por que faltam recursos e é lento para aplicar na população.

Cascata. Da grossa.

Primeiro: o país não conta com vacinas em número suficiente não por falta de dinheiro, mas devido a uma deslavada omissão de Jair Bolsonaro, que não comprou doses no ano passado quando podia. Ídolo dos referidos empresários, ele preferiu defender que a melhor imunização era contrair covid, apesar da discordância de mais de 321 mil brasileiros que perderam a vida.

Segundo: nada substitui o Programa Nacional de Imunizações em questões de competência, capacidade, experiência e logística. Há um plano nacional, escalonando faixas etárias e grupos profissionais, para reduzir o mais rapidamente o número de mortes. O PNI conseguiria imunizar mais de 2 milhões de pessoas por dia, basta ter vacina.

Empresários realmente altruístas comprariam as doses e entregariam ao SUS, que faria chegar em quem mais precisa, imediatamente. Há pessoas de grupos de risco ou de atividades essenciais que necessitam mais do que os empregados jovens e sem comorbidades de empresa de atividades não essenciais. Existe maior demonstração de patriotismo do que salvar a vida de seus compatriotas que contam com mais chances de morrer?

Isso sem contar que vacinar apenas os próprios empregados e achar que tudo volta ao normal mostra incapacidade gerencial, pois ignora que empresas estão conectadas em longas cadeias de valor. E nem todos os atores econômicos dessa cadeia terão recursos para comprar vacinas por conta própria. Ou seja, ou empresas menores não voltarão a fornecer suprimentos ou a vacinação de uma grande empresa forçará suas parceiras a voltarem sem estarem protegidas – infectando mais gente.

O projeto fura-fila veio com um bode na sala, uma proposta do deputado Hildo Rocha (MDB-MA) para autorizar às empresas a abater o valor gasto com a compra de vacinas do Imposto de Renda. É isso mesmo que você leu. O que significaria transferir para todos nós o custo dessa brincadeira. Isso gerou revolta e vai ser deixado de lado, mas a ideia bizarra de criar um processo paralelo de vacinação para quem tem dinheiro segue a todo o valor.

Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), defenderam a proposta. O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também. Devem ter sido convencidos pelo naco de "empresários altruístas" que gastou sola de sapato em Brasília de que esse negócio de respeito à coletividade é bonito na Europa, mas não funciona por aqui não.

Em outros lugares mais civilizados, bilionários e a grande iniciativa privada estão sendo chamados a contribuir com a crise. E não é apenas com doações espontâneas, mas tributados de forma extraordinária para bancar o combate à pandemia. Aqui, tratar disso é pecado mortal, pior do que bater na mãe. E os ataques não vêm apenas dos super-ricos, mas de seus cães de guarda que parecem gozar com o capital alheio.

O fato de estarmos discutindo isso neste momento ao invés de arregimentar bilionários e grandes empresas para comprar vacinas e doá-las ao SUS, ajudando a sociedade a sair do atoleiro como um todo, mostra que no fundo do poço tem um alçapão. E lá dentro se encontra o Brasil, gritando "é cada um por si e Deus acima de todos".

Nesta semana ultrapassamos a marca das 4 mil mortes registradas em 24 horas por covid-19. Isso poderia ser freado adotando um duro isolamento social e abastecendo o SUS. Mas no Brasil, não faltam apenas leitos de UTI, sedativos para intubação e vacinas. Falta também óleo de peroba para tanta cara de pau.

Camarote VIP

O Conselho Nacional de Saúde se manifestou contra o projeto de lei. Em um vídeo divulgado nas redes sociais, o presidente do CNS, Fernando Pigatto, disse que o texto "garante o fura-fila oficializado, camarote VIP da vacina". Pigatto também criticou o governo federal por ter retardado o processo de compra de imunizantes.

"O governo federal retardou o processo de vacina, a vacinação continua lenta mesmo nós tendo um programa de vacinação que é referência no mundo. Agora querem alterar no Congresso Nacional a lei 14.125 aprovada no início deste ano. Querem transformar o PL numa lei que substitui e garante o fura-fila oficializado, camarote VIP da vacina ao nosso país, tirando a obrigatoriedade, inclusive quando for permitido, de doação para o Sistema Único de Saúde daquilo que for adquirido", disse.

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde também se pronunciou contrário ao projeto. "Vacina é direito de todos garantido na constituição. A partir do momento dos grupos prioritários tiverem sido vacinados, daí sim pode atender a venda ao privado", disse o secretário-executivo do Conasems, Mauro Junqueira.

Até o momento o Brasil vacinou cerca de 8% da população, mas o ritmo dessas imunizações foi alvo de questionamentos ao ministro da saúde durante as audiências da qual participou ao longo das duas últimas semanas.

Por reiteradas vezes Queiroga argumentou que o principal entrave não é logístico, mas de falta de vacinas, algo que estaria em busca de resolver mediante tratativas com laboratórios e, até mesmo, governos de outros países para conseguir a cessão de doses excedentes.


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