25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Um mercado privado e ilegal de vacinas está se construindo no Brasil’, afirma Padilha

Publicado em 29/03/2021 12:00 -

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O deputado federal Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff, moveu uma ação junto ao Ministério Público de Minas Gerais contra um grupo de políticos e empresários, a maioria ligada ao setor de transportes do estado, que teria comprado doses do imunizante contra a covid-19 por iniciativa própria e se vacinado, driblando a lei brasileira.

O escândalo foi revelado no último dia 24 pela revista Piauí. Segundo a reportagem, cerca de 50 pessoas receberam a primeira dose do imunizante nesta semana em um posto de vacinação improvisado. As doses da vacina da Pfizer, que nega ter vendido os lotes, teriam sido importadas pelo grupo e não repassadas ao Sistema Único de Saúde, como prevê a lei.

A ação de Padilha pede o confisco imediato dessas vacinas: "O que estamos vendo é um grupo de empresários criando um camarote clandestino de vacinação, e que pode estar incorrendo em uma série de crimes", afirma o deputado. A Polícia Federal abriu um inquérito nesta quinta-feira para investigar o caso.

"Uma parte da elite econômica brasileira tem uma visão de que precisa ter um camarote em tudo, tem que ter um privilégio e excluir o resto da população em tudo. Infelizmente, é uma elite que ainda cultua, de certa forma, os valores do período da escravidão. Acha que, por ter dinheiro, tem privilégios que outros não podem ter."

Em entrevista à DW Brasil, Padilha também criticou o comitê de enfrentamento à pandemia instaurado pelo governo federal, que classificou de "tardio e incompleto". A criação do comitê, formado pelo Planalto, governadores e o Senado, foi anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro na quarta-feira, após um ano de crise e 300 mil vítimas perdidas para o vírus.

O médico e ex-ministro pressionou ainda por investigações acerca da gestão do governo Bolsonaro na pandemia e defendeu a aceleração da vacinação no Brasil, um país com tradição em campanhas de imunização, e a adoção imediata de medidas restritivas em regiões com alta ocupação de leitos.

"É um crime contra o sistema de saúde, contra os profissionais que dão plantão 24 horas e contra a vida no Brasil essa insistência do governo federal em não sugerir o lockdown para as regiões que estão com altos índices de transmissão. É um crime. É colocar o Brasil no corredor da morte", afirma Padilha.

 

O que significa a vacinação paralela desse grupo de empresários no momento que o Brasil vive hoje, com mais de 300 mil mortos?

É algo gravíssimo. Primeiro, é um desrespeito em relação às mortes que estão acontecendo no nosso país, e em relação aos milhões de brasileiros que estão na fila, esperando o seu momento para se vacinar. […] O que nós estamos vendo é um grupo de empresários criando um camarote clandestino de vacinação, e que pode estar incorrendo em uma série de crimes. A produtora, que é a Pfizer, diz que não vendeu para esse grupo, e eu acredito que não tenha vendido mesmo, porque não tem sido a política da Pfizer vender para pequenos grupos. A política da Pfizer tem sido vender para os governos. Se a Pfizer tá dizendo que não vendeu, quem comprou essa vacina? De quem comprou? Esse é um primeiro crime.

Segundo, essa é uma vacina que não é produzida no Brasil, então ela tem que ser importada. Para importar uma vacina, tem um guia de importação, um documento que tem que ser autorizado pela Anvisa. A Anvisa tem que ter, nesse documento, qual vacina é, quais são os lotes de fabricação, para que seja possível identificar o rastreamento dessa vacina. […] Se acontece algum evento adverso, você tem que saber exatamente qual é o lote de fabricação, a data, para saber se o problema é com aquele grupo de vacinas ou da vacina como um todo. Então, onde está esse documento de importação? Tem que estar lá no documento quem vai se responsabilizar pela vacina no Brasil. Tem que ter alguém que se responsabilize por acondicionar essa vacina, por a refrigeração dela ser adequada, o transporte e a aplicação serem adequados. Quem assumiu essa responsabilidade? Qual empresa? Nós precisamos saber.

No Brasil, só dois lugares podem vacinar: o sistema público – nas unidades do SUS – ou clínicas privadas. Quem fez a aplicação dessa vacina? O SUS não foi. Alguma clínica privada? Ela tem que ter registro na Anvisa, na vigilância sanitária e no Conselho Regional de Medicina. Quem fez isso? Aparentemente não foi nem o SUS nem uma clínica privada. Entrou de forma clandestina. Se tiver algum problema com esses seres humanos que tomaram a vacina, quem assumiu a responsabilidade de que ela estava correta?

O que diz a lei sobre a compra de vacinas pela iniciativa privada?

A lei que nós aprovamos no Congresso Nacional e foi sancionada pelo presidente em março estabelece duas questões. Uma empresa privada pode comprar a vacina de covid-19, mas ela tem que doar 100% do que comprar para o SUS, enquanto o SUS não tiver atingido as suas metas de vacinação prioritárias. Depois que as metas forem atingidas, a empresa é obrigada a doar 50%. Esses empresários doaram para o SUS? Aparentemente, não.

A lei também estabelece que se a empresa for vacinar, ela não pode cobrar pela vacina, e ela tem que informar a autoridade de saúde sobre quem está sendo vacinado. Isso não foi informado, e nem qualquer tipo de doação foi feita. Aparentemente foi cobrado o valor da vacina. Na reportagem [da Piauí] diz que há pessoas que pagaram R$ 600. Então, é um camarote clandestino. Um mercado privado e ilegal de vacinas que está se construindo no Brasil.

Há cerca de um mês, empresários tentaram aprovar uma lei no Congresso que autorizasse isso. Quando tentaram aprovar essa lei, nós já tínhamos informações da existência de venda de lugares em listas de data de vacinação. Como se fosse um pacote de viagens, igual àquela empresa que começou a vender viagens para lua, lembra disso? É igual a vender camarote para show, para o carnaval. É um camarote clandestino ilegal. Precisa ter uma investigação profunda.

Poderia explicar a ação que o senhor encaminhou ao Ministério Público de Minas? Qual é o objetivo?

Primeiro, que se confisque de imediato qualquer vacina que esteja em poder desses empresários. Tanto a segunda dose, porque eles vão receber uma segunda dose, quanto qualquer outra vacina que eles possam ter. Podem existir outras vacinas.

Em segundo lugar, eu também estou oficiando o Ministério da Saúde e a Secretaria Estadual da Saúde, porque eles têm autoridade para confiscar essa vacina de qualquer empresa que compre e esteja fora das regras no Brasil. A Anvisa também pode fazer isso, porque é um produto importado.

Eu estou oficiando que o Ministério Público inicie uma investigação sobre como foi feita a importação, quem assumiu a responsabilidade de guardar as vacinas aqui, quem vendeu a vacina. É muito importante que se investigue, que sejam punidos de imediato empresários e políticos que estão relacionados com isso, para coibir. Isso tem que ser pedagógico, tem que proibir qualquer possibilidade de multiplicação desses camarotes no Brasil. Infelizmente, uma parte da elite econômica brasileira tem uma visão de que ela tem que ter um camarote em tudo, tem que ter um privilégio e excluir o resto da população em tudo. Infelizmente, é uma elite que ainda cultua, de certa forma, os valores do período da escravidão. Acha que, por ter dinheiro, tem privilégios que outros não podem ter.

Esse caso abre um precedente?

Com certeza. Como eu falei, chegaram a surgir reportagens de empresas vendendo lugares em vacinação, com essa ideia de que empresas privadas possam importar vacinas. Tentaram fazer leis no Congresso, nós barramos essas leis.

Nós estamos sugerindo que o MP aprofunde essa investigação porque, por exemplo, vamos olhar para o Peru. No Peru, dirigentes do Ministério da Saúde e do governo receberam doses de vacina por conta do contrato que foi feito. Foi uma propina, uma corrupção de atores públicos a partir de um contrato feito de vendas de vacinas.

A Pfizer acabou de assinar um contrato de 100 milhões de doses com o Ministério da Saúde. Para assinar esse contrato, para facilitar e agilizar, mudanças foram feitas no âmbito do Congresso Nacional. Precisa ser investigado se essas vacinas não chegaram como parte de uma propina, por conta desse contrato assinado, como aconteceu no Peru. Talvez, além de um esquema de tráfico privado de vacinas para o Brasil, de importação ilegal, nós podemos estar vendo também um escândalo de propina, de presentes com vacinas para atores públicos. Porque tinha políticos lá em Belo Horizonte recebendo. Isso é gravíssimo, precisa ser coibido de imediato.

É possível tratar esse caso como tráfico internacional de vacinas?

Sim, eu acredito que nós podemos estar diante de uma situação como essa. Essa vacina chegou no Brasil de forma irregular. É por isso que eu peço para investigar. Só tem um jeito de ter entrado de forma legal: a Pfizer ter um contrato, ou ela ter pedido a importação para o Brasil. Ou uma outra empresa ter pedido essa importação para a Anvisa. É a única forma. Se não foi assim, é tráfico internacional para abastecer um camarote de vacinas clandestinas no país.

O que o senhor espera do Ministério da Saúde frente a essa notícia?

Eu espero o confisco imediato de qualquer vacina que esteja no poder desses empresários, que a Anvisa possa fazer as medidas de investigação e de punição para os empresários envolvidos nesse tráfico; que a Anvisa acione o MP e a Polícia Federal, os órgãos que podem fazer essa investigação. Espero isso do Ministério da Saúde e da Anvisa de forma imediata.

Como o senhor vê a criação do comitê nacional de enfrentamento à pandemia, anunciado na quarta-feira? O senhor acredita em uma mudança de postura por parte do governo?

Esse comitê é tardio e capenga, incompleto. Ele é instalado depois de 300 mil mortes confirmadas e recorde de mortes diárias. E é incompleto porque não tem uma participação ativa dos governadores e dos prefeitos. Quem enfrenta no dia a dia a falta de testes, de vacinas, o corte dos recursos para manutenção dos leitos hospitalares, são os municípios e os governadores. Os prefeitos sequer foram chamados, não têm participação. O representante dos governadores falou que foi um constrangimento geral o comitê. Não foram chamados comitês de especialistas. Não foi chamado o Conselho Nacional de Saúde. No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde é o órgão máximo do SUS.

Até esse momento, a mudança que Bolsonaro fez no Ministério da Saúde foi uma troca de ministros para não mudar. Pelo menos é o que dão a entender as primeiras falas do ministro que assume. A meu ver, ele [Bolsonaro] fez essa troca apenas para tentar diminuir a pressão que estava crescente no Congresso para a criação de uma comissão parlamentar de inquérito, uma CPI, para investigar as irregularidades do Ministério da Saúde na condução da pandemia.

O Brasil precisa investigar se a propaganda que o Bolsonaro faz da cloroquina e de outros medicamentos sem eficácia é só crença negacionista ou se tem interesse financeiro por trás. Se as negativas que ele fez com relação às vacinas oferecidas ao governo brasileiro – a Pfizer ofereceu em agosto de 2020 70 milhões de doses –, se quando ele negou, se não era exatamente para criar um mercado privado legal ou ilegal de vacinas no país. Porque o que cria um ambiente para que exista esse mercado privado é a escassez de vacinas. Se quando ele negou ajuda à cidade de Manaus, na crise de oxigênio, se isso não tem a ver com interesses do mercado privado de oxigênio que se criou em Manaus. Infelizmente, muita gente lucra muito diante de uma escassez de produtos da saúde. Nós queremos investigar se tudo é crença negacionista ou se tem interesse por trás.

O senhor vê a criação de uma CPI como algo que está se desenhando?

Eu acredito que sim. […] A troca de ministros talvez tenha sido feita para tentar esvaziar, mas a postura do Bolsonaro, as atitudes, a lentidão no programa de vacinação… Por exemplo: nós ficamos dez dias sem ministro da Saúde, com isso morreram pessoas, faltou oxigênio, faltou medicamento. As posturas continuam mantendo acesa a possibilidade da criação da CPI.

Em entrevista à DW nesta semana, a pesquisadora Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz, falou que fortalecer o Programa Nacional de Imunizações (PNI) deveria estar entre as prioridades do novo ministro da Saúde, pois vem sendo desmantelado. Como vê a situação?

A vacinação no Brasil anda a passos de tartaruga, enquanto o vírus está na velocidade de um avião. Isso é uma vergonha porque, como disse a professora Margareth, o Brasil tem uma tradição muito importante no seu Programa Nacional de Imunizações. […] Eu era ministro do presidente Lula durante a H1N1. O Brasil foi o país que mais vacinou no mundo em 2010, no meio da H1N1 […] chegamos a quase 50% da população vacinada naquele momento. Nós vacinamos mais de 80 milhões de pessoas em três meses. Isso há dez anos, com menos estrutura do que hoje, menos facilidade de comunicação. Agora, estamos em um ritmo de vacinação que, em dois meses, não demos duas doses para 10 milhões de pessoas ainda. É um ritmo extremamente lento. Além disso, não só o governo federal não comprou vacinas, negou as ofertas que foram feitas, […] como desmontou toda a parte técnica do Programa Nacional de Imunizações, que tem um papel muito importante.

Por exemplo: os estados e municípios estavam até agora sem uma orientação clara por parte do ministério se eles deveriam vacinar todo mundo com uma dose ou guardar, deixar separada a segunda dose para todo mundo, vacinando menos pessoas. Então isso foi um caos. Cada um foi fazendo de um jeito, porque o ministério tinha uma informação em um primeiro momento, depois voltou atrás. Um caos instalado e cada município vai fazendo do seu jeito. Isso é um desmonte do Programa Nacional de Imunizações.

Outro exemplo: nós temos um sistema de informação, que foi criado inclusive quando eu era ministro, em 2012, para ir registrando as vacinas e cobrando que os municípios informem as perdas vacinais. Quando a gente tem um programa como esse, se estima que vai ter 5% de perdas vacinais. Agora, já tem um número apontando para quase 8%. Só que a informação não está vindo direito pelos municípios. Por quê? Porque não teve treinamento. Durante um ano de pandemia, o PNI podia estar treinando os municípios para registrar a informação. O que fazer com essa dose? A unidade básica de saúde abria um frasco de vacinas com dez doses. Chegavam oito pessoas. O que fazer com as outras duas doses? Acabou perdendo. […] Isso eram os especialistas do PNI que estabeleciam. Foi desmontado. Hoje, não existe mais.

Quais são os passos prioritários que a nova gestão do Ministério da Saúde precisa dar para que a situação seja estabilizada o mais rápido possível?

São três questões prioritárias. Primeiro, acelerar ao máximo a vacinação. E não dá para acelerar apenas com os 500 milhões de doses já comprados que ninguém sabe quando vão chegar. Eu sinto da parte do governo federal, do discurso do presidente Bolsonaro, um certo conforto com o fato de o Brasil agora ter 500 milhões de doses contratados. Mas é um calendário que ninguém sabe quando vai chegar. Então, acelerar ao máximo junto à OMS [e o consórcio Covax Facility], fazer uma conversa com a China para aumentar a produção do Butantan, discutir com a Índia a regularidade da oferta dos insumos. Fazer parceria com Cuba, por exemplo. Cuba tem quatro vacinas em desenvolvimento, duas em fase 3. O Brasil podia participar da fase 3 dessas vacinas.

A segunda questão é reabrir os leitos que foram fechados. O Brasil chegou a abrir 13 mil leitos para covid-19 no ano passado, pelo SUS. Isso caiu para 3 mil leitos no começo do ano. […] O governo cortou os recursos do SUS e o auxílio emergencial de renda para as pessoas. Esses leitos precisam ser reabertos urgentemente. Uma parte do problema da lotação dos hospitais hoje é porque os leitos foram fechados.

Terceira atitude imediata: uma orientação clara para que toda a região do país que tenha 75% dos leitos de UTI ocupados entre em lockdown imediato. Não tem sistema de saúde que suporte cidades abertas com aglomerações. Mesmo países com sistemas nacionais públicos mais sólidos do que o Brasil, como o Reino Unido, não suportaram e tiveram que fazer lockdown em certos momentos. Então é um absurdo, um crime contra o sistema de saúde, contra os profissionais que estão dando plantão 24 horas e contra a vida no Brasil essa insistência do governo federal não só de não sugerir o lockdown para as regiões que estão com altos índices de transmissão, como fazer o movimento contrário, mobilizar seus atores de empresários contra. É um crime. É colocar o Brasil no corredor da morte. O novo ministro tem que assumir uma postura firme sobre isso. Não existe outra forma de conter o colapso do sistema de saúde sem fazer o lockdown nas cidades que têm alta transmissão.


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