20/04/2024 - Edição 540

Poder

‘Cemitério do mundo’, Brasil vê o enterro do que restava de sua reputação

Publicado em 19/03/2021 12:00 -

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“Lamentamos muito". "Como está tua família?". "Quanto tempo falta para a próxima eleição?".

Entrar hoje sede da ONU, em Genebra, na condição de brasileiro é se deparar com comentários indignados, gestos sinceros de solidariedade, questionamentos e um certo grau de desconfiança vindos de todos os níveis. Do mais alto escalão de diplomatas aos funcionários mais modestos.

Na quinta-feira (18), os dados da pandemia no mundo divulgados no site da OMS dão uma dimensão da crise brasileira. No período de 24 horas considerado até o meio-dia, o mapa apresentava o Brasil com 2841 óbitos.

O número é o equivalente a todas as mortes somadas nos seis países seguintes no ranking da agência de Saúde.

No mesmo período, morreram 993 pessoas nos EUA, 460 na Rússia, 431 na Itália, 356 na Polônia, 267 na Ucrânia e 236 na França. No total, o Brasil correspondeu a quase 30% de todas as mortes por covid-19 no mundo nessas 24 horas. Em termos de novas contaminações, também somos líderes.

Mas muito além dos números, o Brasil lidera acima de tudo num outro critério: o da falta de rumo. Entre diplomatas e negociadores estrangeiros, se desfaz em alta velocidade o que restava de uma reputação já abalada do país.

A percepção é de que vírus poderia ser inevitável. Mas não a dimensão da destruição que ele está causando no país. "E, nesse aspecto, a responsabilidade é diretamente do presidente (Jair Bolsonaro), que se recusou a assumir a tarefa de proteger seu povo", comenta um interlocutor nas Nações Unidas.

Além da responsabilidade, há também uma constatação da fragilidade de um sistema de um país já desigual, racista e injusto. O próprio diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, admitiu há poucos dias sua surpresa diante do colapso do sistema de saúde do Brasil. "Não era o que esperávamos", disse.

Num tom indignado, o garçom asiático responsável por servir café no único bar aberto da ONU nesses dias me lançou uma pergunta por sobre o balcão: "vocês não vão reagir não?".

Não faltam ainda os momentos em que afloram os velhos e insistentes traços da xenofobia de uma certa camada da população europeia. "Um caos desse já era de se esperar quando o vírus chegasse a um local como o Brasil", comentou um dos responsáveis pela área de tecnologia no prédio da ONU.

Dentro de mim, um só pensamento surgiu ao ouvir essa frase: "com que moral agora vou rebater a tal comentário?". Hoje, constato que, para o mundo, meu país é uma mistura de um sinônimo de morte, incompetência, fundamentalismo religioso e negacionismo.

Desesperadora, a situação brasileira começa a ser é alvo de um debate internacional, inclusive no sentido de avaliar algum tipo de resgate. Não por simpatia ao presidente Bolsonaro. Mas por uma constatação da comunidade estrangeira de que o país representa uma ameaça sanitária. "O que ocorre no Brasil importa", disse Mike Ryan, diretor de operações da OMS.

Questionei um membro do alto escalão da OMS se não era o caso de ampliar a ajuda internacional ao Brasil. A resposta foi reveladora de como uma gestão incompetente pode ter um papel decisivo. "Estamos fazendo o que podemos. Mas a falta de uma coordenação nacional e mensagens que contradizem nossas recomendações não ajudam".

Ao final desta quinta-feira, ao deixar a sede da ONU em Genebra, encontrei um velho amigo diplomata por um dos corredores semi-vazios do imponente prédio. O objetivo era de que ele me contasse, em off, bastidores de algumas negociações sobre resoluções que serão votadas nos próximos dias. Mas logo o tema da conversa voltou a ser a tragédia brasileira.

"O Brasil parece ser hoje o cemitério do mundo", lamentou o embaixador estrangeiro, numa frase que parecia soar pelas paredes de mármore. Vendo minha reação claramente emocionada, ele completou com um comentário ainda mais dolorido: "Gostaria de te dar um abraço. Mas você esteve no Brasil recentemente?"

Em campanha

Enquanto o Brasil se transforma em uma ameaça sanitária global, assume a liderança em número de novos casos e óbitos pela covid-19 e o sistema de saúde entra em colapso, o governo brasileiro intensifica uma ofensiva no exterior para tentar desfazer a imagem de que a pandemia está fora de controle.

Durante a semana, em diferentes fóruns internacionais, a opção dos representantes do governo de Jair Bolsonaro foi a de não fazer qualquer tipo de referência aos mortos ou lamentar pelas perdas. A ordem era destacar as ações das autoridades, criando uma percepção de que a crise estava sendo controlada e a população atendida. Internamente, o governo teme que a explosão no número de mortes mergulhe a credibilidade do país a patamares poucas vezes visto na história recente do país.

Atual "cemitério do mundo" e com mais de 20% das mortes no planeta pela covid-19 na última semana, o Brasil passou a ser alvo de críticas por parte de indígenas, da OMS, ativistas de direitos humanos e ambientalistas, além de governos estrangeiros. A ordem do governo é a de rebater e tomar a palavra para apresentar a sua própria narrativa sobre a situação no país.

Na quinta-feira (18), durante uma reunião fechada do Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho, o tom adotado pelo Itamaraty foi um exemplo desse movimento de contra-ataque. Ao tomar a palavra, a delegação reiterou o "compromisso do governo com os direitos de indígenas" e indicou que iria apresentar "fatos" sobre a ação do Executivo durante a pandemia.

"Desde o começo, o governo tem tomado ações robustas para impedir a disseminação do vírus e reduzir impacto entre povos indígenas", afirmou o diplomata. Segundo ele, 3 milhões de itens foram enviados aos povos tradicionais, além de alimentos e o fortalecimento da proteção territorial.

"20 mil profissionais de saúde estão realizando campanhas de vacinação em 6 mil aldeias, das costas do Atlântico a locais remotos da Amazônia, com a meta de imunizar 400 mil indígenas. 70% deles já foram vacinados", garantiu o governo.

Já na semana passada, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil também insistiu que agia de maneira "consistente" para lutar contra o vírus. A afirmação gerou comentários irônicos por parte das demais delegações.

Antes, também no mesmo Conselho, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, declarou que o Brasil estava "garantindo" a vacina para todos idosos, profissionais de saúde e indígenas. Até agora, apenas 2,5% da população brasileira havia recebido as duas doses da vacina.

"Fazendo todo o possível"

A campanha para desfazer uma imagem negativa no exterior também incluiu um discurso nesta semana no Fórum dos Países da América Latina e Caribe sobre Desenvolvimento Sustentável da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal/ONU).

Uma representante do Executivo tomou a palavra na terça-feira para anunciar aos demais participantes que o governo estava ajudando a 126 milhões de pessoas no país diante da pandemia. "Ficamos tranquilos como governo saber que, nesse momento difícil, estamos fazendo todo o possível para não deixar ninguém para trás", destacou.

O Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, entidade formada por cerca de 50 ongs e ativistas, atacou a participação do Brasil.

"No dia em que o país registrou a morte de quase 3.000 pessoas em decorrência da Covid-19 e Jair Bolsonaro anunciava o seu quarto ministro da Saúde, o Brasil se vangloriava no Fórum da Cepal de estar no rumo certo para não deixar ninguém para trás, quando, na verdade, o governo tem contribuído para a piora da situação dos mais vulneráveis, para o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) e para o acirramento dos discursos sexistas, racistas e de ódio contra as populações LGBTI", disse.

"Essa atitude do governo brasileiro merece repulsa e é um fato grave. Como mostram as evidências, o crescimento das desigualdades no Brasil já não pode ser atribuído somente à crise sanitária e econômica e o Brasil, que tem a pior resposta à Covid-19, já é considerado uma ameaça global", afirmam as entidades.

"Nesse contexto, as medidas econômicas, sociais e ambientais, inclusive o atual desmonte de programas de assistência social, apenas intensificaram a pobreza estrutural e a miséria", disseram.

Para o grupo, "o governo brasileiro mentiu mais uma vez ao declarar que "a sustentabilidade está se tornando cada vez mais o ponto chave em nossos esforços de desenvolvimento".


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