26/04/2024 - Edição 540

Poder

Fiel apenas a si mesmo, Bolsonaro pede suspensão dos decretos do DF, Bahia e Rio Grande do Sul

Publicado em 19/03/2021 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) que sejam suspensos os decretos com restrições por causa da pandemia no Distrito Federal, na Bahia e no Rio Grande do Sul. Bolsonaro anunciou que entraria com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adi) ontem (18), durante a live semanal.

"Entramos com Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao STF buscando conter esses abusos. Entre eles, o mais importante é que nossa ação foi contra o decreto de três governadores. No decreto, inclusive, o cara bota toque de recolher. Isso é estado de sítio, que só uma pessoa pode decretar: eu", disse o presidente.

O uso da expressão "estado de sítio" pelo presidente está errado. Decretado em caso de guerra ou "comoção grave", o estado de sítio é previsto no artigo 137 da Constituição e deve ser solicitado pelo presidente e autorizado pelo Congresso Nacional. Portanto, não pode ser comparado, como fez Jair Bolsonaro, com medidas restritivas para evitar o colapso na saúde.

A comparação foi chamada de "aberração" e "alienação" por especialistas em direito penal e constitucional.

Nesta sexta (19), em conversa com apoiadores, o presidente voltou a falar em "seu Exército" e estimulou o descumprimento dos decretos estaduais. "Jamais adotaria o lockdown no Brasil, e digo mais: o meu Exército não vai para a rua para cumprir decreto de governadores, não vai. Se um povo começar a sair, entrar na desobediência civil, sair de casa, não adianta pedir para meu Exército que ele não vai. Nem por ordem do Papa. Não vai", afirmou.

Segundo o presidente, o país sofrerá um caos econômico com as medidas de restrição e "a fome vai tirar o pessoal de casa". "Vamos ter problemas que nunca esperávamos ter problemas sociais gravíssimos", disse.

O que diz a ação do governo

Na Adi, o governo pede que o Supremo determine que o fechamento de atividades não essenciais durante a pandemia só pode ter por base uma lei aprovada pelo Legislativo, e não decretos de governadores.

No documento, ao qual a coluna teve acesso, Bolsonaro defende que "mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar".

No pedido, o presidente salienta que diversos estados e o Distrito Federal anunciaram restrições com impactos potencialmente falimentares em relação a atividades ditas não essenciais e critica as medidas de restrição de circulação durante o período das 23h às 5h.

"Tendo em vista o caráter geral e incondicionado dessas restrições à locomoção nos espaços públicos, elas podem ser enquadradas no conceito de "toque de recolher", geralmente associado à proibição de que pessoas permaneçam na rua em um determinado horário. Trata-se de medida que não conhece respaldo legal no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro", diz.

Números alarmantes

O pedido do presidente, que tem atuado contra as medidas de restrição e evita o uso de máscara, acontece no pior momento da pandemia da covid.

Na quinta-feira (18), o Brasil registrou a mais alta média de mortes por covid-19 em toda a pandemia pelo 20º dia consecutivo. Nos últimos sete dias, a média foi de 2.096 óbitos diários causados pela doença.

Foram reportadas 2.659 novas mortes por covid-19 em todo o país nas últimas 24 horas, a terceira maior marca desde março de 2020. O recorde foi verificado na terça-feira (16), com 2.798 vítimas. No total, 287.795 pessoas morreram em decorrência da doença desde o início da pandemia.

Bolsonaro convive bem com mortes por covid. Ele só não tolera críticas

Jair Bolsonaro tem dedicado o seu tempo a encontrar formas criativas de sabotar as ações de governadores e prefeitos no combate à covid-19 em meio a quase 3 mil óbitos por dia. E de criar um ambiente de terror, em que criticá-lo publicamente pela sabotagem pode render prisão. Para ele, o brasileiro de bem é o que morre da doença em silêncio.

Certos governos autoritários pelo mundo tiveram melhores resultados no combate à pandemia devido à imposição de medidas de reengenharia social. Nosso governo autoritário, por outro lado, é o pior dos dois mundos. Ou seja, passa por cima de liberdades individuais para entregar mais gente à morte.

Nos últimos lances bizarros, o presidente pediu ao Supremo para impedir governadores de decretarem medidas de restrição à circulação de pessoas e ao funcionamento de atividades econômicas sem passar pelo crivo do Poder Legislativo. De uma forma tosca, defende que lockdown deveria afetar as pessoas doentes, uma vez que ele serve para não ficarmos doentes.

No pedido, ele defende que mesmo em meio à escalada de mortes, o fechamento de serviços não essenciais "devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar".

Percebam a sacanagem nas entrelinhas. Novamente Bolsonaro pratica um esporte em que é campeão, o Arremesso de Responsabilidade à Distância. Traduzindo: os pobres que se virem. Era ele quem deveria estar possibilitando a subsistência pessoal e familiar nos meses de pico de crise. Mas o máximo que fez, após pressionado e de forma atrasada, será pagar uma merreca mensal entre R$ 150 e R$ 375.

Com a fome crescendo, a falta de leitos de UTIs, a escassez de oxigênio e o número de mortos escalando, é claro que uma parte da população iria criticá-lo. Para 79% dos brasileiros, segundo o Datafolha, a pandemia está descontrolada.

Quando a população vê que lideranças no Congresso Nacional e a Procuradoria-Geral da República são coniventes com a tragédia em curso, não tem muitas saídas a não se protestar. O governo se aproveita que as críticas e manifestações são de indivíduos e grupos e vai para cima, de forma covarde. Se não vivêssemos uma pandemia assassina com transmissão por ar, seriam multidões gritando "genocida" nas ruas.

O empresário e youtuber Felipe Neto recebeu uma intimação policial no Rio de Janeiro por ter chamado Jair de genocida após uma reclamação do vereador Carlos Bolsonaro. O ministro da Justiça, André Mendonça, mandou a Polícia Federal abrir inquérito por conta de outdoors em Palmas que disseram que "Bolsonaro não vale um pequi roído". A Polícia Militar deteve cinco pessoas que protestavam com uma faixa chamando o presidente de genocida em Brasília.

Nenhuma dessas críticas foi um risco à integridade física do presidente, nem um ataque à democracia. São, na verdade, agressões à liberdade de expressão usando como base um entulho da ditadura, a Lei de Segurança Nacional.

A isso se somam outros absurdos. Professores da Universidade Federal de Pelotas tiveram que se comprometer por escrito a não realizarem manifestações de desapreço ao presidente por conta de críticas – entre eles, Pedro Hallal, ex-reitor, que coordenou um dos mais importantes projetos de monitoramento da covid no país. Isso sem contar os inquéritos abertos e ameaças contra jornalistas nos últimos meses.

Bolsonaro tem aumentado consideravelmente as chances para que os brasileiros morram de covid com sua política do "se pegar, pegou, se morrer, morreu". Está mais preocupado na queda de sua popularidade por conta de interrupção de setores econômicos do que na perda de vidas. E quem criticar, leva pedrada – o que também ajuda a desviar os focos das denúncias de corrupção sobre sua família.

Sob Bolsonaro, você tem direito de morrer de covid, desde que se vá em silêncio, sem criticá-lo.

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague.

Chico Buarque escreveu estes versos irônicos em 1971, durante a vigência do Ato Institucional número 5, que permitiu à ditadura militar baixar a censura e descer o cacete geral. A diferença agora é que, no regime autoritário bolsonarista, até a permissão para respirar foi revogada.

"Mesmo com sua sabotagem explícita no combate ao coronavírus, a aprovação de Bolsonaro se mantém estável em 30%. Para manter isso, ele gasta mais energia para afastar denúncias de corrupção contra sua família do que em ser visto como 'genocida'".

 


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