28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Os estragos invisíveis da pandemia para as mães solo

Publicado em 18/03/2021 12:00 -

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Em 2020, as latino-americanas sofreram um retrocesso histórico em termos financeiros e profissionais por causa da pandemia global da covid-19. No Brasil, o oitavo país mais desigual do mundo, os impactos foram ainda profundos: quase 8,5 milhões de mulheres saíram do mercado de trabalho no terceiro trimestre, e sua participação caiu a 45,8%, o nível mais baixo em três décadas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dentro desse universo feminino, as mães solo, que somam mais de 11,5 milhões no Brasil, passaram não somente a enfrentar mais riscos e dificuldades financeiras em decorrência da pandemia como também sofrem uma sobrecarga mental e um maior acúmulo de tarefas devido ao fechamento de escolas e creches.

Natália Cardoso, de 20 anos, moradora de Osasco, na Grande São Paulo, e Carlla Bianca Souza, de 21, residente em São Luís (MA), são dois exemplos de mães solteiras que não receberam nenhuma ajuda do Governo durante a pandemia. Cardoso teve que deixar seu emprego depois de esgotar sua licença-maternidade, pois sua jornada de trabalho impedia que sua mãe, que vive na casa ao lado, pudesse dividir com ela os cuidados com sua filha. O único trabalho que conseguiu depois de ser demitida foi um emprego temporário na campanha de um candidato a vereador, em novembro. Além de contar com a ajuda de sua mãe, que também sustenta outra filha de 16 anos, Cardoso recebeu uma cesta básica de uma rede de produtores orgânicos que, durante a pandemia, tem feito doações quinzenais às mães solteiras de Osasco.

Souza, por sua vez, vive com os pais e, além de cuidar da sua filha Ísis, de 3 anos, também ajuda a criar duas irmãs mais novas enquanto completa seus estudos da faculdade de Direito. Além disso, administra uma loja de roupas pela internet. “Tive crise de ansiedade e depressão, porque você se sente muito pressionada, muito exausta e ainda tem que fazer as suas coisas. Durante a pandemia me senti muito sufocada”, diz ela.

Em abril do ano passado, o Governo federal aprovou uma renda mínima emergencial de 600 reais ao mês para trabalhadores autônomos e desempregados durante a pandemia, sendo o dobro desse valor no caso das mães solteiras, mas milhares de mulheres tiveram suas solicitações rejeitadas. Já em 2021, e após diversos alertas sobre o agravamento das dificuldades financeiras com o fim do auxílio emergencial, o Congresso aprovou uma nova leva de pagamentos, reduzidos, que ainda depende da publicação de uma medida provisória por parte do poder Executivo para definir regras, prazos e valores, que serão de 150 a 375 reais por mês.

Segundo dados recentes de um relatório das ONGs Gênero e Número e da Sempreviva Organização Feminista (SOF), 50% das brasileiras passaram a cuidar de outra pessoa durante a pandemia. Quase 40% das entrevistadas na pesquisa afirmaram que o isolamento social pôs em risco o sustento de seu lar; dessas mulheres, 55% eram negras, geralmente as mais afetadas.

Sofia Benjamin, de 30 anos, estilista de moda e artista independente, vive com sua filha, Céu, de 4, no Rio de Janeiro, cidade que é um dos epicentros da pandemia no Brasil. De um dia para o outro, as duas se viram completamente trancadas em seu apartamento. Como autônoma, seus trabalhos diminuíram e, para poder contar com o apoio da sua mãe, parte do grupo de risco e sua única rede de apoio, as duas passaram oito meses sem contato com o mundo externo.

“Enquanto os adultos fingem que nada está acontecendo e seguem a vida, como está a saúde mental das crianças e, consequentemente, dos seus cuidadores durante esta pandemia?”, questionava Benjamim em dezembro, quando milhares de brasileiros deixaram o isolamento social para comemorar as festas de fim de ano. O país já soma mais de 282.000 mortos pelo coronavírus, e os números continuam aumentando diariamente. A maioria das escolas públicas e privadas já retomou as aulas presenciais desde o início de fevereiro, mas muitas de maneira não obrigatória e com rodízio de alunos presenciais a cada semana.

No Brasil há mais de 11 milhões de mulheres que são mães solteiras e, por mais que suas realidades sejam diversas e atravessadas por diferentes questões regionais e de classe, assemelham-se em alguns aspectos. Em Salvador, Isis Abena, de 35 anos, e sua filha Ainá, de 3, também viviam em um apartamento pequeno que durante a pandemia pareceu se tornar ainda menor, afetando o estado emocional e mental das duas durante os períodos de confinamento.

Em meio à quarentena, decidiram se mudar para uma casa de vila, onde, junto com outras famílias que já moravam lá, puderam se aquilombar. Quilombos são comunidades tradicionais de afrodescendentes onde convivem em grupo e em contato com a ancestralidade como um ato de resistência. “Continuamos, eu e ela [Ainá], na construção e busca de uma comunidade que nos acolha nesta diáspora para minimizar as sequelas do colonialismo e a fragmentação das famílias negras,” diz Abena. Para ela e sua filha, conviver com outras famílias foi um processo de transformação e cura.

Verônica da Costa, de 31 anos e também carioca, passa por angústias semelhantes com seu filho Théo, de 6. “Não é poético manter uma criança viva sozinha nesta cidade. A rede, que já era pequena, se esgota ainda mais neste tempo de ‘salve-se quem puder’. Cozinhar, arrumar, lavar, trabalhar, brincar, respirar… Pouco tempo para ser eu mesma”, queixa-se ela, que também é autônoma e passou a trabalhar de casa, fazendo produtos naturais como sabões e kits de autocuidado à base de plantas medicinais. Durante a pandemia, formou um grupo com duas outras mães solteiras, também artistas independentes, para se apoiarem e procurarem juntas esse tempo e espaço que, para elas, tornou-se tão escasso.

Transcorrido um ano da irrupção da pandemia e do início da quarentena, a situação no Brasil continua grave. Com o aumento do número de casos em todo o país e o lento avanço da vacinação, cidades e Estados voltaram a recuar na flexibilização dos confinamentos e os planos de reabertura, fechando de novo os comércios e serviços que já tinham aberto ao público. Para a maioria das mães, especialmente para as que são as únicas encarregadas do lar, as dificuldades relativas ao cuidado e a sobrecarga de tarefas persistem, aprofundadas pela crise, sem atenção nem solução. “A verdade é que enquanto os homens não sentirem os impactos de terem as crianças em casa, [o bem-estar das mães e filhos] não será uma prioridade para o Governo. Não é que estejam fazendo políticas ruins, (…) é que não estão fazendo. Não pensam nisso”, reflete Benjamin.


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