29/03/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro flerta com a paranoia e o golpismo

Publicado em 12/03/2021 12:00 -

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O Dia D, de desatinos do presidente Jair Bolsonaro, foi ontem (11). Mas poderá ser amanhã ou em qualquer outra data daqui por diante. Nunca na história deste país se viu um presidente ler em público a carta de um suposto suicida – no caso, uma pessoa que teria se matado por ter perdido o emprego devido às medidas de isolamento social adotadas no combate à Covid.

Nunca se viu um presidente chamar de “estado de sítio” o que nem mesmo de lockdown pode ser chamado, e alertar que “estado de sítio” cabe a ele decretar, não a governador. Para completar, nunca se viu um presidente dizer que sua caneta está carregada de tinta e que é muito fácil implantar uma ditadura no país. Nem os presidentes da ditadura militar ameaçaram o país nesses termos.

Não durou 24 horas o ensaio de conversão de Bolsonaro ao uso de máscara e à defesa de providências que barrem o agravamento da pandemia que só faz bater recorde atrás de recorde em número de mortos e de infectados. Foram 2.207 novas mortes e 78.297 novos casos nesta quinta-feira, dia 11 de março. No total até aqui, 273.124 óbitos e 11.284.269 de infectados.

Na última quarta-feira (10), o Brasil era o país onde mais pessoas morriam da Covid no mundo, com 190 mortes a mais por dia do que os Estados Unidos e à frente de México, Rússia e Itália. Era também o país onde o número de mortes mais subia. Apenas 4,39% da população foi vacinada. O Ministério da Saúde recalcula para baixo o número de doses de vacinas que espera receber.

Auxiliares de Bolsonaro deixaram de fingir que a volta à cena de Lula não abateu seu chefe. E que a eventual candidatura do ex-presidente no ano que vem acabaria por beneficiar Bolsonaro ao aumentar a polarização ideológica. Tanto quanto Bolsonaro, eles estão atarantados. Temem que o avanço da pandemia, a falta de vacinas, a inflação e o desemprego em alta favoreçam Lula.

Esse ser sem rosto e sem nome que a imprensa batizou de mercado teme que Bolsonaro rompa o pacto firmado com ele de fazer as reformas do Estado prometidas pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, o ex-Posto Ipiranga cada vez mais vazio de combustível e de quinquilharias. Sempre que Guedes afirma que ruim com ele, pior sem ele, o mercado entende: não vai dar, emperrou.

O mundo era outro e bem mais esperançoso para Bolsonaro e seus apoiadores, entre eles o mercado, até que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu as condenações de Lula e provocou o furacão que só ganha força. O efeito Lula tirou a centro-direita do seu berço esplêndido e, ao invés de enfraquecer candidaturas ainda adormecidas, poderá fortalecê-las.

Sérgio Moro parecia morto, mas não está. Luiz Henrique Mandetta, em pesquisas que simulam o segundo turno, bate Bolsonaro. Luciano Huck está mais assertivo em suas críticas ao presidente acidental. O PSDB assanhou-se para sair a campo. Esses nomes, ou um nome novo que apareça, só tomarão votos de Bolsonaro. Lula é o dono dos votos do seu pedaço.

O risco para todos é que Bolsonaro tente melar o jogo se concluir que não poderá vencê-lo. Em sua live das quintas-feiras no Facebook, novamente acusou os governadores de quererem quebrar a economia do país e incitou seus seguidores a saírem às ruas em desobediência às ordens de isolamento. Falou em possíveis ataques a supermercados. Tocou horror.

Por ora, os militares empregados no governo e os reclusos em quartéis estão calados. Nenhum se aventurou a lançar nota de advertência ao Supremo com a intenção de pressioná-lo a manter Lula como ficha suja. Mas não se descarte que isso possa ocorrer, é tudo o que Bolsonaro deseja. E aí veremos se a democracia brasileira continua sendo a plantinha tenra que já foi no passado.

Bolsonaro se dispõe a resolver problemas que o brasileiro não sabe que tem

O mundo acha que o problema do Brasil é o vírus, agora vitaminado por uma legião de variantes —uma mais infecciosa que a outra. Submetido a cenas típicas de um colapso hospitalar, o brasileiro avalia que sua prioridade é a vacina. Engano. O problema do país é o risco de cair numa ditadura, informa Bolsonaro.

A característica fundamental da dificuldade de julgamento do brasileiro é ter que ouvir o presidente por mais de uma hora nas noites de quinta-feira para chegar à conclusão de que ele não tem nada a dizer. Na sua penúltima live, o capitão tocou tambores e clarins marciais sob um imenso telhado de vidro.

Já virou rotina. Bolsonaro irrompe numa rede social uma vez por semana. E anuncia que está disposto a resolver problemas que o país não sabe que tem. O roteiro é invariável. O presidente cria fantasmas. Assusta-se com eles. E se oferece para fazer o favor de livrar o Brasil dos riscos fantasmagóricos.

A cabeça de Bolsonaro funciona como um terreno baldio onde ele próprio atira a sujeira que alimenta sua psicose. "Como é fácil impor uma ditadura!", espantou-se. "Usam o vírus pra te oprimir", alertou. "Eu tenho como garantir a nossa liberdade, eu sou o garantidor da democracia", tranquilizou.

Em solenidade realizada na véspera, Bolsonaro usou máscara e defendeu as vacinas. Absteve-se de criticar restrições à circulação e lockdowns. Em timbre sereno, chegou a dizer que, no começo da crise, tais restrições foram adotadas para que os hospitais se equipassem. Ou seja: estava completamente fora de si.

O país não teve nem tempo para respirar aliviado. Horas depois da cerimônia, o general Eduardo Pazuello, suposto ministro da Saúde, divulgou um vídeo de conteúdo esquisito. Nele, assegura que o sistema de saúde, embora "muito impactado", ainda "não colapsou nem vai colapsar".

Nessa versão, o país estaria sendo vítima de um grande complô. Uma trama das filmagens feitas por enfermeiras e médicos mancomunados com a imprensa mequetrefe, e mais de 30 milhões de pessoas que simulam falta de ar em filas metafóricas que se formam nas UTIs de hospitais públicos e privados.

Para não perder o hábito de botar a culpa em alguém, Bolsonaro reiterou na sua live o lero-lero segundo o qual o Supremo Tribunal Federal o impediu de atuar na pandemia. Trata-se de uma lorota. A Suprema Corte apenas reconheceu que todos os entes da federação —União, estados e municípios— têm poder para atuar na área da saúde.

Médicos e cientistas dizem que o vírus se replica no Brasil porque fugiu ao controle. A solução é vacinar em massa. Enquanto a vacinação ocorre a conta-gotas, não resta senão restringir a mobilidade e o contato. Numa evidência de que há males que vêm para pior, Bolsonaro enxerga o problema pelo lado avesso.

Incapaz de prover vacinas na quantidade necessária, o presidente desqualifica a estratégia paliativa: "Em nome da ciência, da sua vida, você vai ficar em casa mofando. Uma pequena parcela da sociedade até pode ficar em casa mais tempo, mas a grande maioria não pode. Não pode produzir mais nada, todos vão sofrer."

Fazendo pose de São Jorge, o Messias Bolsonaro pega em lanças: "Não podemos deixar isso acontecer. Eu sou a pessoa mais importante nesse momento. Faço o que o povo quiser, devo lealdade ao povo." A certa altura, o capitão renova seu apreço pela ditadura militar.

É como se São Jorge desejasse não salvar a donzela, mas casar-se com o dragão: "Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecendo. As críticas em cima de generais, não é o momento de fazer isso. […] Nós vivemos um momento de 1964 a 1985, você decida aí, pense, o que que tu achou daquele período. Não vou entrar em detalhe aqui."

Governar o Brasil não é tão difícil quanto Bolsonaro faz parecer. O horário é bom, o salário é razoável, há carro na garagem e jato no hangar. A geladeira está sempre cheia. E a cozinha do Alvorada é full time. De resto, há sempre a possibilidade de demitir o general Pazuello, que deve proporcionar uma ótima sensação.

No limite, há também a hipótese da renúncia do presidente. Não resolveria o problema das vacinas instantaneamente. Mas o Brasil se livraria de um conspirador. E Bolsonaro se libertaria dos seus fantasmas.


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