19/04/2024 - Edição 540

Poder

A conta do negacionismo chegou para Bolsonaro

Publicado em 05/03/2021 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro estava inspirado nesta semana. Inspirado até demais. Em Uberlândia (MG), chamou de "idiota" quem pede que ele compre vacina. "Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo!", afirmou. Algumas horas depois, em São Simão (GO), pisou no acelerador e sapateou em cima daqueles que choram sobre seus mortos. "Vocês [produtores rurais] não ficaram em casa, não se acovardaram. Nós temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?"

A função desse tipo de declaração na estratégia presidencial junto à sua base durante a covid ("se pegar, pegou, se morrer, morreu, bora trabalhar") é manjada: desviar a atenção da mídia e do eleitor.

Seus discursos mergulham abruptamente no absurdo e no grotesco quando deseja tirar o foco de algo. Não que essa não seja sua natureza, mas algumas vezes Bolsonaro parece bolsonarista até demais. E com declarações como essas, é impossível não ganhar destaques nas home pages dos principais veículos de comunicação e virar tendência nas redes sociais.

Como efeito colateral, sobra menos espaço no debate público para outros assuntos, como a compra de uma mansão de quase R$ 6 milhões por parte de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Denunciado por desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa, ele é acusado de comandar um esquema de "rachadinhas" quando era deputado na Assembleia Legislativa do Rio.

A compra da casa, revelada pelo site O Antagonista, no último dia 1º, tem 1,1 mil m² de área construída, em um terreno de 2,5 mil m², e se localiza em uma área nobre de Brasília (DF).

De acordo com o Ministério Público, o esquema de Flávio envolvia lavagem usando compra e venda de imóveis e uma loja de chocolates no Rio. Coincidentemente, o valor que ele é acusado de desviar dos salários de servidores da Alerj é de R$ 6,1 milhões.

Reincidente

Alguns temas contam com potencial especialmente explosivo para a popularidade de Jair Bolsonaro junto aos seus seguidores e, por isso, são constantemente nublados com cortinas de fumaça produzidas pelo presidente da República, seus filhos e assessores.

No dia 20 de janeiro de 2020, Bolsonaro foi questionado sobre a investigação contra Flávio e seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, em frente ao Palácio da Alvorada. Como resposta, tratou da sexualidade de jornalistas. "Você tem uma cara de homossexual terrível, nem por isso te acuso de ser homossexual, se bem que não é crime ser homossexual", afirmou. Após um repórter perguntar sobre comprovantes de transações que envolviam Queiroz e sua família, gritou: "Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, tá certo?"

Outro exemplo foram os áudios de WhatsApp divulgados pela imprensa, no dia 27 de outubro de 2019, mostrando que Fabrício Queiroz sentia-se abandonado por seu grupo político. "O cara lá está hiperprotegido. Eu não vejo ninguém mover nada para tentar me ajudar aí. É só porrada. O MP tá com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente. Não vi ninguém agir", afirmou.

No dia seguinte, um vídeo postado nas redes sociais de Jair Bolsonaro comparou o presidente a um leão acossado cercado de hienas. Elas representavam o STF, os partidos políticos, os advogados da OAB, os bispos católicos da CNBB, a imprensa, entre outros. O leão era salvo por um outro, identificado como "conservador patriota". Ministros do Supremo reagiram com irritação. Marco Aurélio Mello afirmou, em entrevista à rádio CBN, que o vídeo era uma cortina de fumaça.

Outro exemplo: no dia 16 de julho de 2019, o ministro Dias Toffoli, do STF, atendeu a um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro e suspendeu investigações sobre as movimentações atípicas dele e de Queiroz. O que gerou questionamentos por impactar outras investigações.

Daí, nos dias 18 e 19 de julho de 2019, Bolsonaro disse a jornalistas que "falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira"; teve uma conversa "vazada" referindo-se a gestores do Nordeste, de forma preconceituosa, como "governadores de Paraíba"; difamou a jornalista Miriam Leitão, dizendo que era mentira que ela havia sido torturada durante a ditadura militar; afirmou que o aumento no desmatamento da Amazônia apontado pelo INPE "não confere com a realidade"; e que se não pudesse impor controle sobre os filmes da Ancine, a agência seria extinta.

E, claro, temos o caso mais clássico. Bolsonaro foi alvo de críticas durante o Carnaval de 2019, sendo tema em blocos e desfiles. O debate público estava tomado pela pergunta "onde está o Queiroz", as ligações da família do presidente com milicianos e as denúncias de candidaturas laranjas envolvendo o PSL – partido pelo qual ele foi eleito.

Publicou, então, em sua conta no Twitter, o vídeo de um homem dançando em um ponto de táxi após enfiar o dedo no próprio ânus. Logo depois, aparece outro que urina na cabeça daquele que dançava. "É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro", escreveu. No dia seguinte, postou a pergunta que se tornou icônica "o que é golden shower?"A repercussão tomou conta das redes sociais e de parte da imprensa por algum tempo.

Não é possível inferir que, em todos os casos, houve intencionalidade no efeito dispersivo. Mas, com certeza, a temperatura de um problema abaixa por conta das cortinas de fumaça formadas.

Enfim, nem todos somos idiotas, apesar de desejarmos que ele compre vacina. Mas, certamente, ele nos encara dessa forma. E deve rir muito.

Negacionismo oficial

Desde meados de fevereiro, diversos Municípios e Estados brasileiros passaram a intensificar políticas de distanciamento social, com o fechamento do comércio e escolas para conter a circulação da população e frear a circulação do coronavírus, já que ainda não há vacinas para todos os brasileiros. Menos de 5% da população foi vacinada no país. Com o discurso contrário, Bolsonaro tenta empurrar para prefeitos e governadores o custo político de medidas impopulares, além de atrapalhar as campanhas de conscientização pelo isolamento social.

Para um conjunto de juristas e segundo uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, Bolsonaro implementa uma política deliberada para sabotar ações contra a pandemia, e deveria ser punido penal e politicamente por isso. O presidente, porém, segue escudado por uma fisiológica base de apoio no Congresso Nacional ―recentemente reforçada por sua bem-sucedida operação ajudar a eleger a nova cúpula do Parlamento― que dificilmente apoiará um dos 60 processos de impeachment. Também conta, até agora, com um Procuradoria-Geral da República que não enxerga irregularidades em seus atos.

Perdemos as contas do número de vezes em que ele menosprezou a pandemia e incentivou aglomerações, sapateando sobre a montanha de cadáveres.

Tudo isso é repetitivo – o que faz com que as reclamações sobre seu comportamento pareçam presas, junto com Bill Murray, num Dia da Marmota. É sensação de déjà vu a cada tentativa de interpretar um novo lance cheirando a mofo da necropolítica presidencial.

Donald Trump, cujo negacionismo foi menor que o de Bolsonaro, adotou o mesmo método de minimizar as mortes para forçar um retorno da economia à normalidade. A forma como lidou com a pandemia ajudou a minar sua reeleição. Mesmo assim, o seu discurso encontrou eco.

Enquanto Joe Biden recebeu 81,3 milhões de votos, Trump ficou com 74,2 milhões – muitos dos quais concordaram com sua forma de enfrentamento ao problema e, portanto, sua visão de mundo. Parte acredita que os Estados Unidos poderiam ter perdido muito mais do que 518 mil vidas (até agora) se o presidente fosse outro. Outra parte, que não havia nada que ele poderia ter feito para impedir a catástrofe – comportamento semelhante ao que ocorreu por aqui.

Levantamento do Datafolha, divulgado no dia 24 de janeiro, aponta que 47% dos brasileiros afirmam que Bolsonaro não tem culpa nenhuma pelas mortes, 39% dizem que é um dos culpados e 11% que é o culpado principal. Com a atual escalada de mortes, os números podem ter mudado, mas ainda assim, esse é o resultado após quase um ano de pandemia.

O que lembra que nossos presidentes são causas de tragédias, mas também fruto de uma parte de nossas sociedades que neles se enxergam. 

No Brasil, temos o bolsonarismo-raiz, representando de 12% a 16% da população, mas também outros grupos oportunistas – que não pulam do penhasco se o presidente mandar, mas querem aproveitar a sua administração autoritária para conseguir o que não seria possível numa democracia. Sempre me lembro disso ao ouvir rigorosas palmas quando ele diz coisas que ferem a dignidade humana, como as desta quinta.

Bolsonaro fez a mesma aposta que Trump ao longo do ano passado. E, agora, diante de recorde atrás de recorde de óbitos, dobra a aposta. Acredita que a morte de 0,12% da população pela pandemia atrapalha menos seu caminho à reeleição do que uma economia em apuros e seus mais de 14 milhões de desempregados. Simultaneamente, investe na tática de culpar governadores, prefeitos, a imprensa, o destino por aquilo que era sua responsabilidade – de preservar vidas a compras vacinas.

Como há tempo e as realidades são diferentes, Jair pode ser mais bem sucedido que Donald.

Até uma marmota que se assusta com sua própria sombra sabe que empregos não vão ser gerados em massa enquanto as pessoas continuarem morrendo em escala industrial. Mesmo assim, em uma sociedade cansada de quarentena, o presidente vai conseguindo impor sua visão de que o isolamento é que leva à fome e não a demora dele em retomar o auxílio emergencial.

O capitão reformado poderia ter assumido o papel de comandante da maior guerra que o país já teve, articulando esforços nacionais em nome do bem comum. Possivelmente, sua popularidade estaria bem melhor e a reeleição mais garantida. Mas aí teria que abandonar seu comportamento beligerante, inclusive com relação a potenciais adversários em 2022, o que frustraria sua base.

Como disse aqui, o presidente defende que a solução é ir para a rua. E, se pegar a doença, pegou. E se morrer, morreu. E seus seguidores vão à loucura com isso.

Pediu-se a Bolsonaro que ajudasse a combater o vírus. Mas não foi possível, ele não topou. Depois, que parasse de atrapalhar quem estava combatendo. Contudo, também não rolou. Como o leasing que estabeleceu com o Congresso Nacional tem longo prazo, não há muita esperança de ele ser impedido antes de um desastre de bíblicas proporções.

Então, resta apenas pedir: por favor, presidente, evite tripudiar quem morreu e quem perdeu entes queridos. Também, claro, sem muita esperança de ser atendido.

A conta do negacionismo chegou para Bolsonaro

A crise sanitária mudou de patamar para Jair Bolsonaro. De franco-atirador, o presidente virou alvo. Deve-se a mudança a uma razão singela: Até outro dia, o brasileiro morria de Covid. Hoje, morre-se no Brasil de falta de vacinas. E a escassez de doses é uma incompetência que Bolsonaro não tem como terceirizar.

Há três meses, Bolsonaro dizia que a crise da "gripezinha" estava no "finalzinho". Desde então, o problemão fica cada vez mais grandão. A mortandade diária se aproxima de 2 mil. O total de mortos passa de 260 mil. Os sanitaristas estimam que logo o caos nas UTIs dividirá o noticiário com uma tragédia adicional: o colapso funerário. O Brasil está na bica de virar uma espécie de Manaus hipertrofiada.

Todos já enxergaram o novo calcanhar de vidro de Bolsonaro. Os aliados do centrão e auxiliares do Planalto aconselham o presidente a ajustar o discurso, priorizando a vida. A turma do "fique em casa" decidiu dar o troco. Como o sapo de Guimarães Rosa, governadores e prefeitos, alvos preferenciais de Bolsonaro, dão os seus pulos não por boniteza, mas por precisão. Eles precisam de socorro.

Bolsonaro, como se sabe, odeia a realidade. Mas a realidade ainda é o único lugar onde se pode adquirir vacinas. O presidente faz por pressão o que deixou de fazer por opção. Autorizados pelo Supremo Tribunal Federal, estados e municípios ameaçam comprar vacinas sem a intermediação do governo federal, a quem caberia apenas pagar a conta posteriormente.

Acossado, Bolsonaro viu-se compelido a autorizar o Ministério da Saúde a ir às compras. Em dezembro, o capitão dizia que cabia aos laboratórios cortejar o Brasil. Agora, o general Eduardo Pazuello, gênio da logística, corre atrás até da Pfizer, fabricante da vacina que faz virar jacaré. A alegação de que só agora o Congresso autorizou é apenas uma nova versão para a boa e velha conversa fiada.

Para se reposicionar em cena, Bolsonaro teria de reconhecer que seu governo caiu num buraco. O reconhecimento não resolveria todo o problema. Mas evitaria que o presidente continuasse jogando terra sobre si mesmo e em cima dos brasileiros, como voltou a fazer nos últimos dias. Na sua tradicional live das quintas-feiras, o capitão até tentou soar como um ex-negacionista. Mas foi pouco convincente.

Disse Bolsonaro: "Agora, vêm essas narrativas de que somos negacionistas, não acreditamos em vacinas, aquela história toda para boi dormir…" O negacionismo está grudado na imagem de Bolsonaro como as escamas no peixe. Seu desprezo pelas vacinas está fartamente documentado, inclusive em vídeo.

Bolsonaro declarou no ano passado que não compraria a vacina chinesa do Butantan nem com autorização da Anvisa. Refugou a vacina da Pfizer por sete valiosos meses. Fez piada com o Programa Nacional de Vacinação, declarando que, no Palácio da Alvorada, o único a se vacinar seria Faísca, o cachorro da família.

Ainda que persista, Bolsonaro terá dificuldades de se livrar da pecha de negacionista. Ela aparece de repente, do nada. Como num despacho emitido pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal. Ao ordenar ao Ministério da Saúde que financie leitos de UTI para os doentes do Piauí e de outros estados que necessitem, Rosa trocou o tom moderado por um timbre de admoestação.

"O discurso negacionista é um desserviço para a tutela da saúde pública nacional", declarou Rosa, exibindo os seus espinhos. "A omissão e a negligência com a saúde coletiva dos brasileiros têm como consequências esperadas, além das mortes que poderiam ser evitadas, o comprometimento, muitas vezes crônico, das capacidades físicas dos sobreviventes que são significativamente subtraídos em suas esferas de liberdades".

Ninguém imagina que Bolsonaro vai virar um ex-Bolsonaro. Ao contrário. Se as declarações feitas nas últimas horas serviram para alguma coisa foi para recordar que Bolsonaro, quando imprensado, torna-se ainda mais Bolsonaro. A questão é que ficou mais fácil expor a falta de nexo do discurso oficial.

O presidente defende que os "maricas" saiam às ruas para enfrentar o vírus de peito aberto. Simultaneamente, graças às suas idiossincrasias e à inépcia do general Pazuello, o governo retarda o acesso às vacinas que livrariam os afrescalhados do risco de acabar numa UTI.

Até Paulo Guedes já percebeu que Bolsonaro tornou-se um personagem ilógico. Nesta quinta-feira, o presidente declarou: "Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe." Horas depois, o ministro da Economia rendeu homenagens ao óbvio: "Primeiro a saúde. Sem saúde não há economia. E, da mesma forma, a vacinação em massa é o que vai nos permitir manter a economia em funcionamento."

Só os idiotas não enxergam a lógica do raciocínio de Guedes. Mas Bolsonaro, que não se considera um bobo, guia-se pela lógica de um candidato à reeleição em apuros. Vendo sua curva de popularidade decair, o capitão adula seus devotos mais radicais com um discurso eletrificado. Não é certo que vencerá a disputa presidencial de 2022. Mas já conseguiu dar ao trono uma aparência de cadeira elétrica.


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