26/04/2024 - Edição 540

Saúde

Sob o desgoverno de Bolsonaro, país se transforma em ameaça à saúde global

Publicado em 05/03/2021 12:00 -

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A tragédia brasileira com a Covid-19 está nas manchetes e em charges nada abonadoras de jornais internacionais. Pelo menos 18 países suspenderam voos ou impuseram outros vetos específicos aos passageiros saídos do Brasil e da África do Sul, com medo da propagação do novo coronavírus e de suas variantes. Só os viajantes do Reino Unido enfrentam mais obstáculos.

Fala-se do Brasil como uma importante “ameaça sanitária global”, usando os termos publicados no jornal britânico The Guardian, que ouviu médicos e especialistas preocupados com o avanço da doença no país. “Isso é sobre o mundo. É global”, disse ao jornal o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Se a mutação do vírus, a P1, surgida em Manaus, já era motivo de alerta por se tratar de uma variante mais contagiosa — e, a princípio, mais resistente às vacinas — , é a condução da crise pelo governo brasileiro que põe o país sob os holofotes neste momento.

Especialistas, economistas e governos mundo afora acompanham com perplexidade o que acontece no Brasil e aconselham o isolamento.

“Se não houver uma mudança radical e rápida na forma como o país está lidando com a pandemia, ele vai se tornar uma ameaça global à gestão da crise, como também um pária, rejeitado pelos demais em transações econômicas, turismo e até mesmo na cooperação e diálogo sobre as grandes questões”, diz Fabio de Sá e Silva, co-diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.

Para Sayantan Ghosal, professor de economia da Universidade de Glasgow, o que acontece no Brasil hoje tem implicações sérias sobre a sua reputação no cenário mundial: “O país sempre foi um exemplo, uma economia e democracia vibrantes. Todos queriam aprender com o Brasil. Agora, a negligência e a estratégia fraca de combate à Covid colocam em risco a boa imagem construída em anos”.

Especialista em desigualdades sociais, ele destaca que a pandemia vai cobrar um preço alto da sociedade brasileira no médio e longo prazos. A diferença entre ricos e pobres vai se agravar, e a recuperação da economia será demorada.

Entre os governos estrangeiros, por enquanto, o discurso diplomático segue cauteloso. Autoridades americanas e europeias evitam apontar o dedo para o Brasil, ou insistir na variante brasileira, que têm preferido chamar publicamente de P1, para não singularizar o país. Sabem que o Brasil não é o primeiro e nem será o último a apresentar uma variante nova. O Reino Unido tem pelo menos duas, sendo que a encontrada em Kent — hoje a versão predominante no país —, já teria apresentado a mesma mutação na E484K, como a da cepa brasileira, que ofereceria resistência às vacinas.

Para Julián Villabona Arenas, especialista do Departamento de Epidemiologia de Doenças Infecciosas da London School of Hygiene and Tropical Medicine, está muito claro que as novas variantes diminuem a capacidade de controle da pandemia.

“Até que haja uma boa cobertura de vacinas e medidas de controle adequadas, a epidemia no Brasil representa uma ameaça para o controle global. Mas não é justo dizer que o país é a única ameaça”, afirma.

Ele destaca que a vacinação, o monitoramento genômico e a manutenção e reforço de intervenções não farmacológicas (uso de máscaras e distanciamento social) são urgentes. Isso porque, se a P1 e outras variantes circularem mais, crescem as chances de novas mutações com efeitos insidiosos nas taxas de transmissão. Ele defende a cooperação internacional, sem a qual afirma que o mundo corre o risco de prolongar a pandemia na medida em que novas variantes poderão surgir por toda a parte.

No último dia 3, o infectologista Anthony Fauci, principal nome do combate à pandemia nos Estados Unidos, evitou polêmicas. Ponderou o risco da variante brasileira, recomendou que os cientistas se debrucem sobre a criação de anticorpos pelas vacinas e se ofereceu para conversar com as autoridades locais.

Para Silva, a reação internacional será mais forte na medida em que os países concluam seus programas de vacinação. Os Estados Unidos dizem que vão vacinar todos até maio. No Reino Unido, a previsão é a de que todos os adultos sejam imunizados até julho. Depois de um esforço fenomenal que terá durado mais de um ano, não vão permitir que novas variantes coloquem tudo a perder. Em toda a Europa, cansados de lockdowns e com a economia deprimida, cidadãos querem um mínimo de liberdade, ainda que vigiada, após a imunização. Na Holanda, foram registrados protestos violentos contra as restrições sanitárias. Tudo isso aumenta a pressão sobre os governos.

“Ninguém terá como vacinar contra outras variantes em dois meses. Isso vai isolar o Brasil e fechar a fronteira”, diz Silva.

Viagens a turismo ainda vão demorar a serem retomadas. Estudantes brasileiros no exterior também têm enfrentado problemas. No Reino Unido, precisam passar por uma quarentena de 12 dias em hotéis designados pelo governo britânico ao custo de 1.750 libras (quase R$ 14 mil). Nos Estados Unidos, muitos precisam fazer quarentena no México. Segundo Silva, a Universidade de Oklahoma acabou criando condições para que seus alunos ficassem no centro de estudos da entidade no México para que não fossem ainda mais penalizados com custos neste semestre.

Crise similar à da Amazônia

Para o professor Ghosal, não há como fugir da reação da sociedade e de certa estigmatização. O especialista de Glasgow não descarta a possibilidade de boicotes contra produtos brasileiros, ou até mesmo de episódios isolados de violência contra imigrantes brasileiros no exterior. Nos últimos meses, crescem as especulações de boicote a exportações de carne e soja do Brasil por conta das políticas do governo na área ambiental.

“Pode ser a mesma história para a pandemia, com boicotes de interesses econômicos, como aconteceu com a Amazônia”, diz Silva, que afirma ser cada vez mais visível no exterior a situação crítica no Brasil, na contramão do esforço coletivo mundial.

“Vemos os avanços no mundo com a vacinação e adoção de políticas restritivas, enquanto o Brasil segue com uma atitude de negação da seriedade da pandemia. É possível que, por conta do Brasil, o mundo não saia da crise no tempo esperado”, reforça.

OMS

Os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) publicados nesta sexta-feira (5) apontam que o Brasil se consolida como o novo epicentro da pandemia e registrou, uma vez mais, o maior número de novas infecções pela covid-19 no mundo, no período de 24 horas.

De acordo com a entidade, foram registrados 71,7 mil novos casos em um dia, contra 65 mil nos EUA. O Brasil ainda representa 30% das novas infecções no planeta no período avaliado. No mundo, a OMS contabilizou 240 mil casos extras.

Esse é o segundo dia consecutivo no qual o Brasil é líder mundial, com uma distância cada vez maior em comparação aos demais países.

As informações são divulgadas pela agência com base aos números oficiais submetidos por cada um dos países. Por conta do trabalho de reunir dados de mais de 190 países, o cálculo da OMS conta com um atraso em comparação a outros mapeamentos do vírus por entidades privadas ou institutos de pesquisa.

Não consta do levantamento o último dado divulgado pelo Ministério da Saúde, com 75 mil novos infectados registrados no boletim de quinta-feira, um volume ainda superior às informações da OMS.

Em termos dos dados semanais, o Brasil também se aproxima dos EUA e deve superar a marca americana nos próximos dias, se a taxa for mantida. Foram 394 mil novos casos no Brasil nos últimos sete dias, contra 439 mil nos EUA. Em dezembro, os americanos registravam 1,6 milhão de novos casos, contra 310 mil no Brasil.

Em termos de mortes, o Brasil também se aproxima às taxas americanas. Nos últimos sete dias, foram 13,5 mil mortes nos EUA, contra 9,3 mil no país. Nas 24 horas avaliadas pela OMS, foram 1,94 mil mortes nos EUA, contra 1,91 mil no Brasil. No mundo, os novos óbitos no período de um dia somaram 6,4 mil.

Nos números totais da pandemia, o Brasil continua em terceiro lugar, com 10,7 milhões de casos de pessoas infectadas, contra 11,1 milhões na Índia e 28,4 milhões nos EUA. A população americana, porém, supera a brasileira em mais de 100 milhões de pessoas.

Mortes vão na direção oposta ao resto do mundo

Em termos de mortes, o Brasil está na segunda colocação em números diários. Na terça-feira, o Brasil registrou um total de 1,7 mil mortes, o maior número em 24 horas desde o início da pandemia. Na quarta-feira, mais um recorde foi batido, com 1,8 mil casos.

Pela contagem da OMS, foram 2,1 mil mortes nos EUA em 24 horas, contra 1,6 mil no Brasil. Mas, em seu informe epidemiológico semanal, a agência já havia indicado que o Brasil ia na contramão do mundo, com um salto no número de mortes no período entre 21 e 28 de fevereiro, enquanto a média global registrava um importante recuo.

Nos sete dias até o dia 28 de fevereiro, o Brasil somou 8070 mortes, mais de 12% de todos os mortos no mundo. De cada quatro vítimas mortais no continente americano, uma é brasileira. O aumento no Brasil em uma semana foi de 11%, em comparação aos sete dias anteriores.

Em dezembro, o Brasil registrava 5,8 mil mortes por semana. Em meados de janeiro de 2021, foram cerca de 6,7 mil vítimas fatais. No final do mês, a taxa tinha atingido 6,9 mil.

Mas a tendência brasileira vai no sentido contrário da Alemanha, com queda de 24%, e do Reino Unido, com recuo de 32%. Nos EUA, a expansão foi de apenas 1% e o país continua a liderar no ranking global, com 14 mil mortes na semana.

No final da semana passada, o chefe de operações da OMS, Mike Ryan, havia comentado a situação brasileira e indicado que o destino da pandemia no Brasil seria relevante para o mundo e classificou a crise no país de "tragédia"

Brasil deixa de ser pária para se transformar em ameaça global

Nesta semana, o jornalista Jamil Chade recebeu um telefonema de um casal de diplomatas que estava num país da América do Sul. A voz do outro lado da linha era de pessoas desesperadas. Precisavam voltar para seu posto na Europa e, horas antes do voo, a companhia aérea deu aos passageiros uma péssima notícia: o avião teria de fazer escala no Brasil.

O medo de uma contaminação os levou a duvidar se deveriam embarcar, enquanto consultas legais eram realizadas com as entidades onde trabalhavam para saber se passar pelo Brasil representaria um risco.

“Há poucos dias, levei meu filho caçula ao dentista e, ao ver que era eu quem o acompanhava, o profissional imediatamente deu um passo para trás e perguntou: você não esteve recentemente no Brasil, não é?”, diz Chade.

Nesta sexta-feira, ao entrar na sede da ONU em Genebra, Chade foi parado pelo correspondente do New York Times assombrado com o que leu sobre a reação do presidente Jair Bolsonaro diante da crise.

Em alguns locais, os comentários vêm permeados por ironias e até uma solidariedade sincera com o que ocorre no Brasil. Em outros, o tratamento vem de forma mais séria. Mas todos com o mesmo sentido: a desconfiança sobre o país é profunda.

Os berros das manchetes dos jornais britânicos estampavam uma "caçada" das autoridades sanitárias em busca de uma pessoa que estaria com o "vírus brasileiro". De tanto usar a nacionalidade chinesa para deliberadamente designar a doença, Jair Bolsonaro e sua milícia digital passaram a ter de engolir de seu próprio veneno ao ver o nome do Brasil, agora, qualificar um vírus ainda mais perigoso.

Aeroportos de todo o mundo passaram a tratar qualquer um vindo do país como suspeito, enquanto a suspensão de conexões aéreas e fechamentos de fronteiras se ampliam e se estendem.

A ideia de que somos pária no mundo não é verdade. Isso já está ultrapassado. Hoje, somos uma das ameaças e o novo epicentro da crise global. Em 24 horas, 30% dos novos contaminados no planeta pela covid-19 estavam no Brasil. Na última semana, representamos 12% de todos os mortos. E pior: não há controle e nem uma estratégia para sair de um velório que parece não ter fim.

Dificilmente os europeus têm alguma legitimidade para nos dar uma lição de moral sobre a pandemia. Basta ver o que ocorreu com a mutação identificada no Reino Unido e que se espalhou com uma rapidez importante. Tampouco há espaço para críticas sobre a vacinação, já que o continente patina também nesse capítulo.

Mas, no caso brasileiro, a preocupação não se limita às novas características da mutação do vírus. A ameaça que alimenta a desconfiança vem de quem está no poder.

Um dos alertas feitos por cientistas nas reuniões internacionais se refere ao "apagão" de dados no Brasil sobre a circulação da variante encontrada em Manaus. Para outros, o que existe no país é o equivalente a um grupo de bombeiros cegos enviados a combater um incêndio.

Entre a cúpula da OMS, uma frase inconformada é ouvida sempre que o assunto é o drama brasileiro: "onde estão vocês? onde estão aqueles institutos e compromisso público que transformou o Brasil em referência em saúde pública?". Um dos principais dirigentes da entidade é ainda explícito quando eu o questionei sobre o que achava de Bolsonaro: "louco, louco".

Apresentado como um país doente e sem rumo, com um presidente negacionista e incapaz de dar uma resposta, o Brasil vive o seu pior momento no palco internacional desde o fim do Regime Militar.

Denunciado de forma frequente por abandonar sua população à morte e sem credibilidade alguma quando toma a palavra nos fóruns internacionais, o governo tomou ações que garantiram que o vírus da covid-19 não apenas destruísse vidas. Mas a reputação de uma nação, de uma economia e de uma imagem construída ao longo de décadas.

Se os incêndios na Amazônia em 2019 elevaram Bolsonaro a uma espécie de "vilão do mundo", sua gestão da pandemia nos tornou tóxicos aos olhos do planeta.

Não sabemos quantos ainda morreremos até o final dessa crise sanitária, nem se nos transformaremos no "misterioso país das lágrimas" ao final da pandemia. Mas, entre os efeitos colaterais do "vírus brasileiro", já temos algumas certezas: uma parcela da história do país vem sendo enterrada em cada caixão, assim como seu lugar no mundo.

Por que vacinação sem lockdown pode tornar Brasil 'fábrica' de variantes superpotentes

O cenário atual no Brasil, que combina início da vacinação com transmissão descontrolada da covid-19, pode tornar o país uma "fábrica" de variantes potencialmente capazes de escapar por completo da eficácia das vacinas. Esta é a avaliação de cientistas britânicos diretamente envolvidos em algumas das principais pesquisas sobre mutações do coronavírus.

Pesquisadores da universidade Imperial College London e da Universidade de Leicester ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que lockdowns e outras medidas de contenção são particularmente necessários durante a vacinação de uma população.

Eles explicam que é justamente o contato entre vacinados e variantes que propicia o aparecimento de mutações "superpotentes", capazes de driblar totalmente a ação do imunizante.

E, no Brasil, há uma combinação explosiva para que isso ocorra: vacinação ainda em ritmo lento, variante com a mutação E484k (que dribla anticorpos) e altas taxas de infecção.

O maior perigo está no contato da variante de Manaus, apelidada de P.1, com pessoas recém-vacinadas, explica o virologista Julian Tang, da Universidade de Leicester, no Reino Unido.

Segundo ele, ao entrar na célula humana e se deparar com uma quantidade ainda pequena de anticorpos da vacina, a variante, ao se replicar, pode promover mutações mas resistentes a esses anticorpos.

"Se você é vacinado numa segunda-feira, você não está imediatamente protegido. Leva algumas semanas para os anticorpos da vacina aparecerem e você ainda pode se infectar pelo vírus original ou pela variante P.1", explica Tang.

"Se esses anticorpos da vacina surgem enquanto a infecção está ocorrendo e replicando no seu corpo, o vírus pode se replicar de maneira a evadir o anticorpo que está sendo produzido, num movimento de seleção natural."

Esse movimento é parte do processo de evolução do vírus, que tenta se adaptar a "adversidades". A pessoa vacinada, porém infectada, pode passar o vírus mutante adiante se não houver medidas de controle em vigor, como quarentenas, fechamento de comércio e locais de lazer.

O risco de isso acontecer seria menor se a variante de Manaus não estivesse se espalhando pelo país e se as infecções estivessem sob controle. Isso porque a chance de o vírus original conseguir se fixar em grandes quantidades nas células de uma pessoa vacinada é pequena, já que os imunizantes foram produzidos exatamente para impedir a eficácia dessa ligação.

Mas a mutação E484k, presente na variante de Manaus, afeta exatamente o principal ponto de ligação entre o vírus e as células, tornando o "encaixe" mais eficaz e reduzindo a eficácia dos chamados anticorpos neutralizantes.

Pesquisas preliminares apontam redução da eficácia da vacina Oxford-AstraZeneca contra variantes com a mutação E484K e o Instituto Butatan está pesquisando o impacto delas no percentual de proteção da CoronaVac.

"Se há uma replicação descontrolada do vírus, ou seja, transmissão num ambiente sem regras de distanciamento social, lockdown e uso de máscaras, as pessoas suscetíveis vão se misturar com as vacinadas. Sem barreiras, o vírus pode se transmitir de uma população para outra, potencialmente gerando variantes que escapam à vacina", disse Tang.

O professor de Saúde Global Peter Baker, da Imperial College London, também afirma que o contato em larga escala de variantes do coronavírus com pessoas vacinadas gera uma "pressão" biológica para que essas variantes evoluam, criando mutações que driblem melhor os anticorpos.

"Isso vai acontecer principalmente se você tiver uma situação de epidemia de grande porte num país com sucesso moderado de vacinação. Você alcança assim o equilíbrio perfeito entre pessoas imunes e infectadas. E, quando essas populações se misturam, há risco de surgir uma nova variante resistente às vacinas", disse.


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