19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Os bolsonaristas querem normalizar a ruptura institucional’, diz influenciadora da direita

Publicado em 01/03/2021 12:00 -

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A microempresária e pesquisadora baiana Michele Prado, de 42 anos, que se diz antipetista e integrante da “direita democrática e liberal”, não tem diploma em ciência política, mas é PhD em bolsonarismo. 

Como influenciadora digital desde os tempos do Orkut, em meados da década de 2000, e participante de grupos da chamada “nova direita” no WhatsApp, ela acompanhou de perto o processo de radicalização do bolsonarismo, que culminou com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) na semana passada, após a divulgação de um vídeo em que ataca ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e defende o AI-5. 

Apesar de ter votado em Bolsonaro no segundo turno, Michele foi uma das primeiras vozes da direita a confrontar, ainda antes das eleições, representantes da ala mais radical do bolsonarismo nas redes sociais. Durante a greve dos caminhoneiros, em 2018, travou uma discussão acalorada no Facebook com Filipe G. Martins, hoje assessor internacional da Presidência da República, a quem chamou de “Robespirralho” – apelido cuja paternidade reivindica para si – quando ele defendeu o “caráter revolucionário” do movimento.  

Autora do livro Tempestade Ideológica – Bolsonarismo: A Alt-right e o populismo i-liberal no Brasil, com lançamento marcado para 23 de março, ela diz nesta entrevista ao Estadão que Daniel Silveira e outros parlamentares bolsonaristas agem ofensivamente para minar a confiança nas instituições que formam a base do Estado democrático. “Os bolsonaristas atuam para normalizar a ruptura institucional”, diz. 

 

Como a sra. viu a divulgação do vídeo com ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e aos ministros da Corte, que levou o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) à prisão?

Foi um ato gravíssimo, mais um ataque dos bolsonaristas para incentivar uma ruptura institucional no País. O conteúdo do vídeo mostra que a radicalização dos bolsonaristas vem numa escalada e chegou ao estágio no qual eles já deveriam ser enquadrados como extremistas, embora muitos governistas digam que ele estava exercendo a sua liberdade de expressão. Nas grandes democracias do mundo, um ato desta natureza seria caracterizado como fomento ao terrorismo. O deputado Daniel Silveira e outros parlamentares bolsonaristas atuam ofensivamente, de forma recorrente, para que ocorra na sociedade uma ampliação dos limites de aceitação do absurdo e um enfraquecimento da confiança nas instituições que formam a base do Estado de direito, ao se insurgir contra a imprensa livre, a separação de Poderes e a proteção às minorias. O pior é que não dá para dissociar o deputado do presidente Jair Bolsonaro. Ambos comungam dos mesmos objetivos e das mesmas crenças e práticas políticas. 

O deputado Daniel Silveira é um típico troll. O que é um troll? É uma figura que surgiu na internet para provocar uma reação da opinião pública com o objetivo de conseguir visibilidade. É uma pessoa que faz algo ofensivo de forma deliberada e o que ela fala passa a ser a pauta da conversa. Desta forma, consegue captar a atenção da imprensa, de quem está no mainstream do debate público. Ela expande os limites que são considerados aceitáveis. Ao sugerir uma ação violenta contra membros da Suprema Corte e uma ruptura institucional, o que o deputado faz é jogar para a militância e para a sociedade como um todo o debate dessas questões. Quando ele faz isso, leva muita gente a comentar e a se questionar se, de repente, com o AI-5 e sem o STF não seria melhor, e empurra o debate para um nível de extremismo. Consegue radicalizar mais pessoas e vai minando a confiança nas instituições. Eu monitorei as páginas e os perfis do deputado nas redes e ele ganhou mais de 20 mil seguidores em três dias, foi capa de todos os jornais e tema de todos os debates desde então. 

Como a sra. analisa o movimento bolsonarista?

A primeira coisa que precisa ficar bem clara é que o bolsonarismo é um movimento de extrema direita, que se iniciou como direita radical, mas avançou para o extremo do espectro político. Ao contrário da direita radical, que não busca um rompimento institucional, a extrema direita pretende a ruptura da ordem liberal, da democracia liberal no País. Esses grupos de extrema direita, que estão surgindo no mundo todo, se utilizam de diversos métodos para radicalizar mais, conseguir adeptos e romper certas barreiras que existem no debate público. Eles vão colocando certos temas em pauta para “normalizar” a percepção em relação a questões como a volta do AI-5 e o fechamento do STF, que representam uma ruptura institucional.

Não é um exagero dizer que o bolsonarismo é de extrema direita, porque o deputado Daniel Silveira falou mal do STF e de seus ministros?

Durante muito tempo, a esquerda colocou toda a direita, inclusive a democrata e liberal, dentro do balaio de extrema direita, dizendo que todo mundo era fascista, e isso acabou banalizando bastante o termo e o conceito. Mas o deputado Daniel Silveira se enquadra perfeitamente dentro do espectro da extrema direita, entendida como o grupo político que é contra os princípios da democracia liberal, o Estado de direito, a separação de Poderes, e tem preferência por um modelo autocrático de governo. Agora, é importante deixar claro que, quando falo que o bolsonarismo tem um núcleo de extrema-direita, não estou dizendo que todas as pessoas que votaram em Bolsonaro e que o apoiam fazem parte desta corrente radical. Nem todo o bolsonarismo é anti-democrático. O bolsonarismo engloba muitos grupos diferentes, que muitas vezes até discordam entre si. Tem os militares, os liberalistas, como dizia o (diplomata e sociólogo) José Guilherme Merquior (1941-1991), que são aqueles que restringem o liberalismo às questões econômicas, e tem também os antiliberais, os anti-iluministas, além da massa que não conhece o conceito e que representa a maioria. 

Agora, uma parte da população tem uma mentalidade autoritária mesmo. Esse grupo de extremistas a que a sra. se refere não reflete uma parcela da sociedade brasileira?

Sim, claro. Essa mentalidade autoritária não é algo restrito ao Brasil. Uma pesquisa feita pela cientista política australiana Karen Stenner mostrou que toda a sociedade apresenta um índice de mais ou menos 30% da população com mentalidade autoritária. Há muitos anos, bem antes de surgir (o ex-presidente americano Donald) Trump e Bolsonaro, ela já publicava artigos acadêmicos alertando para o fato de que estava se formando um caldo cultural que permitiria o surgimento desses movimentos com tendências autoritárias na política. Se a gente observar, a pesquisa dela bate em cima com a margem de apoio que tanto Bolsonaro quanto Trump e outros populistas radicais mantêm. É um padrão. 

Na sua visão, qual é  a grande fonte de inspiração do bolsonarismo? 

O bolsonarismo é totalmente inspirado no fenômeno da alt-right americana, que surgiu como um fenômeno essencialmente online. A direita alternativa, que ajudou a vencer eleições em várias partes do mundo, é um fenômeno do conservadorismo radical dos Estados Unidos. Tem base intelectual, não se resume só aos rapazes da internet que fazem mêmes. A luta memética toda vem da alt-right, não só no caso do bolsonarismo mas de toda a direita do País. O MBL (Movimento Brasil Livre) também utilizou bastante os mêmes. Só que esses conceitos foram colocados no debate público da bolha da direita no Brasil como se fossem moderados e exemplos do conservadorismo e do liberalismo tradicionais. O que é radical foi vendido aqui como moderado. 

A que a sra. atribui a emergência no Brasil desse grupo radical representado pelo deputado Daniel Silveira e outros bolsonaristas, como a ativista Sara Geromini e os blogueiros Oswaldo Eustáquio e Allan dos Santos? 

São muitos vetores. O primeiro foi o antipetismo, mas não foi só isso que levou à radicalização. O que impulsionou mesmo o processo de radicalização foi o compartilhamento de conceitos radicais nas redes sociais desde a formação da chamada “nova direita” no País. No início, não haviam vídeos como os do deputado Daniel Silveira. Os conceitos eram trazidos pelo (escritor) Olavo de Carvalho. O Olavo trazia conceitos da direita mais radical de fora do País, teorias como o antiglobalismo, a guerra cultural, o marxismo cultural, todo o aparato usado pela direita radical e pela extrema direita do mundo. Como a “nova direita” nasceu e cresceu online, eu já dizia desde antes das eleições de 2018 que todo o estofo desse grupo havia se moldado dentro de conceitos radicais e que isso fatalmente levaria ao extremismo – e o processo ainda não terminou. Vai piorar ainda mais. Obviamente, há os dissidentes, como os liberais que não capitularam para o bolsonarismo e que não fazem parte desse grupo. 

O descontentamento de uma parcela relevante da sociedade com o politicamente correto e com as políticas identitárias não teve também um papel relevante no processo de radicalização? 

Muita gente procura justificar o bolsonarismo como uma reação à política identitária, ao discurso do politicamente correto. Embora haja, de fato, excessos da patrulha do politicamente correto, a radicalização deste grupo, que é extremista e apoia o governo Bolsonaro, se deve ao fato de que, na essência, eles são contra as conquistas liberais. São contra a mulher trabalhando, a independência feminina, a luta pela igualdade de direitos da mulher. Até na questão racial eles são contra a equalização das oportunidades. Eles camuflam seu extremismo. 

Até que ponto as redes sociais favorecem o crescimento destes grupos radicais e de extrema direita? 

Favorecem bastante. As redes sociais amplificam tudo. Há uma sedução pelos likes, pelas curtidas. Quando alguém faz um vídeo xingando uma pessoa, quando um político como o deputado Daniel Silveira faz isso, ele viraliza. Tudo isso mexe com a cabeça de quem fez o vídeo e a pessoa tende a radicalizar mais, porque, se não fizer isso, alguém fará em seu lugar. Isso atrai muita gente, especialmente quem está no anonimato, quem tem algum ressentimento, quem não se acha representado dentro do processo político. Quando um ministro do STF toma uma decisão que não agrada a alguém e um deputado faz um vídeo sugerindo uma ação violenta, muitas pessoas se reconhecem nele. 

Esse processo tem líderes, uma organização por trás? Como isso funciona? 

Não tem um líder formalmente definido. Este é o maior problema e um dos principais fatores para a radicalização ideológica de direita ter se espalhado pelo mundo inteiro. A internet dá a chance de qualquer uma ser líder, de falar algo ofensivo e de fazer isso até de forma anônima, sem qualquer tipo de punição. A alt-right americana, por exemplo, não tem um líder. Você tem grupos e pessoas espalhados pelo mundo que conseguem uma alta audiência fazendo esse tipo de política radical para aqueles que os seguem. Mas, mesmo nesses casos, eles não são líderes, como no caso dos movimentos sindicais, dos movimentos políticos dos anos 60, 70. Os movimentos que buscam a radicalização política hoje são muito pulverizados. É como se fosse um cupinzeiro, com várias rainhas, cada uma soltando iscas e gatilhos para o seu público. 

Agora, em algumas ocasiões isso parece ser uma coisa mais estruturada, não? 

Sem dúvida. No começo do governo Bolsonaro, isso estava mais centralizado. Esses grupos andavam juntos nas redes sociais, praticando assédio online, para tentar modificar o pensamento em relação à política, embora  a pessoa não recebesse dinheiro para agir assim ou assado. Integrantes do governo que estavam dentro do Palácio do Planalto, como o (assessor internacional da Presidência) Filipe G. Martins, o Tércio Arnauld Tompas, que criou a (página) Bolsonaro Opressor, e o próprio (vereador) Carlos (Republicanos-RJ) lançavam uma ideia em grupos de WhatsApp ou nas suas páginas nas redes sociais e todos os, digamos, sublíderes, formadores de opinião e influenciadores passavam a divulgá-la ou a atacar determinada pessoa. Muitas vezes, o próprio presidente, que tem milhões de seguidores, compartilhava esse conteúdo em suas páginas nas redes, amplificando ainda mais o processo.

Apesar de ser um movimento pulverizado, havia então uma certa articulação no começo do governo? É isso? 

A dinâmica das redes sociais forma hierarquias informais, que não ficam explícitas para muita gente. Se fulano fala uma coisa – e isso não acontece só na direita, mas na esquerda também – outra pessoa também fala e depois uma terceira diz algo parecido, com outras palavras, e você cria uma cadeia. Depois de uma semana observando certos círculos, você pode contar no relógio que, em no máximo 40 minutos, alguém da “hierarquia” vai reproduzir com outras palavras algo que foi compartilhado no grupo. Um vai replicando o outro e assim a coisa se multiplica. Quando o Carlos Bolsonaro compartilha um ataque a uma pessoa, automaticamente essa hierarquia vai replicar e se ramificar por esses grupos, e depois isso passa a acontecer de forma dispersa. Mas a hierarquia está ali, o comando da ideia está ali. A hierarquia é implícita.

O problema é quando o presidente da República compartilha nas suas páginas oficiais o ataque que o filho ou alguma outra pessoa promoveu. 

Com certeza – e o presidente faz isso o tempo inteiro. Nessa hierarquia implícita, há uma dinâmica e fica mais difícil de a gente conseguir comprovar que é algo feito com carimbo, com ordem oficial, tipo “vá lá e faça isso”, “vá lá e faça aquilo”. Mas existem os conchavos e os conluios, e essa dinâmica que a própria rede social traz é que faz com que a coisa seja de certa forma comandada pelos principais formadores de opinião dos grupos. 

O filósofo Luiz Felipe Pondé disse nas redes na semana passada que o Bolsonarismo é “a nova praga” da política brasileira. A sra. concorda com ele? 

Até entendo o que o Pondé quis dizer com isso. Provavelmente, ele quis fazer uma relação com o PT, que também teve um papel muito negativo no País. Eu gosto muito do Pondé. Agora, não colocaria o bolsonarismo como “praga”, porque é algo que acaba desumanizando o alvo da referência. Como disse há pouco, é preciso entender que nem todo mundo que está no bolsonarismo é de extrema direita e direita radical. O núcleo do bolsonarismo é que é radical, extremista. 

Vai ver que é daí que vem o termo “bolsopetismo”, que se popularizou muito nas redes sociais desde a posse de Bolsonaro.

As pessoas relacionam o bolsonarismo com certas coisas do petismo que são bem parecidas. O populismo leva a isso, a dividir a sociedade entre a parte boa e a ruim, que é algo que muitos bolsonaristas e muitos petistas costumam fazer.

No episódio do vídeo do deputado Daniel Silveira e de sua prisão e nos casos de outros bolsonaristas que passaram por situação semelhante, o Bolsonaro não falou uma palavra sobre o assunto. Como a sra. analisa o silêncio do presidente nessas ocasiões? 

Ele não defende ninguém mesmo, não. Eles fazem o trabalho sujo para ele, para esses absurdos se tornarem algo normal, para as pessoas falarem sobre o fechamento do Congresso e do STF. Do lado de fora, até pode parecer que ele esteja descartando essa turma. Mas lá dentro, entre eles, não há esse descarte. É o que eu falei antes. Na maioria das vezes, o que eles fazem não é para vencer, mas para pautar o debate. Em todos esses episódios em que o Bolsonaro não se pronuncia publicamente é porque o intuito do núcleo radical do governo Bolsonaro, que é a mudança da concepção das pessoas sobre a política e as instituições, já foi alcançado. Para ter poder, você tem de comandar o debate, a pauta pública. Quando o Daniel Silveira consegue isso, ele já alcançou o seu objetivo. O Filipe G. Martins afirmou isso num texto que ele escreveu em 2016. 

Ao mesmo tempo, o Bolsonaro está fechado com o Centrão, cortejando o STF para livrar o filho, Flávio Bolsonaro, do processo da “rachadinha” no Rio. Por um lado esses radicais mantêm esse discurso, mas por outro o presidente está compondo com as instituições. Como a sra. explica isso?

O Bolsonaro sempre foi do sistema, mas o objetivo dele não é o de manter o sistema. Ele está compondo com esse pessoal de forma pragmática. Hoje em dia, é muito difícil ver golpes de Estado como antigamente pelo mundo. Aconteceu um agora em Miamar, mas foi uma exceção. Hoje, você vê uma democracia esfarelar através de captura do Parlamento, como na Hungria, em que o primeiro-ministro, Viktor Orbán, tem 90% dos parlamentares a seu favor, e na Polônia, onde a maior parte é pró (presidente) Andrezj Duda. Hoje, esses líderes vão cooptando o Parlamento para referendar as suas ações e modificar o sistema. Dessa forma, que é a mais comum hoje, é possível fazer tudo legalmente: aumentar o número de juízes da Suprema Corte, para ter maioria a seu favor, ou extinguir o Senado, como aconteceu na Venezuela. Agora, não sei se o Bolsonaro pode ficar contando com o Centrão, que é um grupo fisiológico e precisa do Congresso, das instituições, para viver.

Tudo isso que a sra. está falando é algo que transcende o cenário brasileiro. Qual a relação desses grupos no Brasil com o que acontece lá fora? 

Este é um fenômeno que está ocorrendo no mundo inteiro: EUA, França, Itália, Áustria, Holanda, Eslovênia, Hungria, Polônia. Em Portugal, começou recentemente, com o partido Chega!. Essa “globalização” do fenômeno tem muito a ver com o alcance proporcionado pelas redes sociais. A extrema direita saiu das sombras com a internet, conseguiu ampliar bastante o seu o público. A direita radical, idem. No Brasil, o Bolsonaro e os políticos bolsonaristas mimetizam, copiam, muitos projetos de outros partidos de direita radical de outros países. O Eduardo Bolsonaro se comunica hoje com os principais partidos da direita radical. Tem ligações diretas com partidos populistas radicais do exterior, como o Vox, da Espanha. Acontece bastante de o PIS, que é o partido que está no poder na Polônia, propor um projeto de lei lá e duas semanas depois um deputado lançar o mesmo projeto no Brasil. Aconteceu isso recentemente com dois projetos relacionados à retirada de conteúdos ou páginas de circulação por parte das redes sociais. O objetivo é fazer com que elas paguem multas e respondam por isso na Justiça. São projetos totalmente copiados da Polônia.


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