19/04/2024 - Edição 540

Poder

Muito a explicar

Publicado em 26/02/2021 12:00 -

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A comemoração do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) em relação à decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como se tivesse sido declarado inocente no caso das rachadinhas, revela uma enorme confusão. A Corte apenas declarou a nulidade da decisão judicial que decretou a quebra de seu sigilo bancário e fiscal.

Por 4 votos a 1, a Quinta Turma do STJ não disse que o senador Flávio Bolsonaro é inocente, tampouco afirmou que as informações sobre as movimentações financeiras são falsas. Apenas entendeu que o juiz Flávio Itabaiana não fundamentou devidamente a decisão sobre a quebra do sigilo bancário e fiscal. É, assim, uma questão processual.

Faz-se necessário lembrar o óbvio. O caso das rachadinhas ainda não foi esclarecido, não havendo a rigor nenhum motivo para comemoração por parte do senador. O que se tem – e isso nenhuma decisão meramente processual do Judiciário modifica – é um robusto conjunto de indícios envolvendo o filho do presidente da República com apropriação de parte de salários de assessores parlamentares.

Trata-se de um sério escândalo. Ainda mais porque envolve a família de quem foi eleito pregando a honestidade e prometendo eliminar o uso do poder público para fins pessoais. A prática da rachadinha é precisamente o abuso de uma posição de poder para obter vantagens pessoais.

Não é demais lembrar que Flávio Bolsonaro não é o único membro da família envolvido com suspeitas de rachadinha. Há indícios de que essa prática, que fere os comezinhos princípios republicanos, também ocorreu no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro.

Malgrado Bolsonaro ter sido eleito como campeão do antipetismo, o presidente e sua prole têm baseado sua defesa, no caso das rachadinhas, em questões processuais e na tese da perseguição política, tal como fez o ex-presidente Lula da Silva. Nesse ponto, os Bolsonaros têm mais em comum com o demiurgo de Garanhuns do que gostariam de admitir.

Em primeiro lugar, nem Jair Bolsonaro nem seu filho Flávio apresentaram até agora uma explicação convincente sobre as movimentações financeiras atípicas. Insinuam que são alvos de complô de “infiltrados” na Receita Federal, no Coaf, no Ministério Público e na Justiça, todos interessados em derrubar o presidente.

Quando Flávio Bolsonaro diz que o caso da rachadinha é apenas um modo de atingir o seu pai, sem se dar ao trabalho de explicar a exótica movimentação de dinheiro entre assessores do seu gabinete na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, o País tem a clara sensação de ver a reprise de uma história bastante conhecida. Sem explicar o que precisa ser explicado, o primogênito de Jair Bolsonaro recorre à tese de que é vítima da Justiça, tal como fez e ainda faz o sr. Lula da Silva.

Outra semelhança que a cada dia fica mais evidente entre aqueles que gostam de se apresentar como opostos no campo político é a estratégia processual. Sem enfrentar a questão de mérito, Flávio Bolsonaro vale-se de objeções processuais. Não há defesa da transparência, da lisura e da intransigência com o mau uso do dinheiro público. O que há é tão somente a tentativa de evitar que a Justiça alcance seus dados financeiros e fiscais.

É um escárnio com a população, que deseja outro patamar moral e cívico na administração da coisa pública, pretender que suspeitas de crimes sejam abafadas a partir de questões processuais. Na verdade, a decisão da Quinta Turma do STJ não é nenhuma vitória do senador Flávio Bolsonaro. É antes prova de que a família Bolsonaro pretende se esquivar das respostas à população com base em manobras. Sobre esse caminho, de fato o sr. Lula da Silva, que recorreu até ao papa em sua campanha contra o Judiciário, tem muito a ensinar.

A lei processual penal deve ser estritamente seguida, uma vez que protege direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos. Mas esse cuidado com o processo penal não é sinônimo de impunidade. Os indícios das rachadinhas não foram apagados. Há muita coisa a ser esclarecida. Numa República, todos devem responder pelos seus atos, seja qual for sua ascendência.

Bravo…

Nada a estranhar quando Jair Bolsonaro, em visita ao Acre onde 10 cidades estão debaixo de água, encerrou abruptamente uma entrevista à imprensa ao lhe perguntaram sobre a decisão do STJ de anular o processo a que responde o senador Flávio “Rachadinha” Bolsonaro, acusado de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

“Acabou a entrevista aí”, disse o presidente. Deu as costas aos jornalistas e abandonou o local, acompanhado de sua numerosa comitiva. À saída, cochichou alguma coisa ao general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, que parecia aborrecido e o seguiu com as mãos nos bolsos, balançando a cabeça. O general também não gosta de ouvir perguntas incômodas. Quem gosta?

Mas jornalista existe para perguntar, investigar e publicar o que for relevante. Ao fazê-lo, não atende apenas à própria curiosidade, o que seria natural, mas à necessidade de informações do distinto público a quem ele se reporta. Autoridade deve satisfações. Tanto mais um presidente cujas palavras e atos influenciam fortemente a vida dos seus governados e os destinos do país.

Se o desprezo de Bolsonaro pela imprensa ficasse só por aí, até se toleraria, mas não. Quantas vezes ele já não mandou, aos berros, jornalista calar a boca? Pelo menos uma vez ameaçou encher de porrada a boca de um jornalista. Nunca antes na história deste país se viu nada igual. Nunca se viu um presidente empenhado em jogar seus seguidores contra a imprensa para desacreditá-la.

Em livros sobre seus anos como presidente da República, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso registrou inúmeras vezes o quanto o trabalho da imprensa o deixou indignado. Nem por isso pediu a cabeça de jornalistas aos seus patrões, nem tentou silenciá-los. Tampouco os presidentes que o seguiram – Lula, Dilma e Temer. Bolsonaro quer uma imprensa domesticada.

Parte da imprensa se dispõe a obedecê-lo. Mas como a parte que resiste é a mais aguerrida e a que mais repercute, ele não se conforma. Daí seus insultos, grosserias e imprecações diárias. Daí seu declarado desejo de pôr dinheiro em veículos que lhe dizem amém e em tirar dos que lhe dizem não, ou não é bem assim, ou vá devagar. Até já nominou os veículos que gostaria de ver fechados.

Não prevalecerá. Censura nunca mais. Ditadura nunca mais.

Bolsonaro pode fugir da imprensa, não do espelho

Há no jornalismo uma máxima segundo a qual não existe pergunta constrangedora. O que constrange é a resposta. Jair Bolsonaro não suporta a imprensa que o imprensa. Quando imprensado, insulta, ameaça ou simplesmente sai de fininho, como fez nesta quarta-feira (24/02) em Rio Branco, no Acre.

Um repórter tentou questionar: "Presidente, qual a avaliação que o senhor fez da decisão do STJ ontem de derrubar a quebra dos sigilos fiscais…". Não houve tempo para mencionar o nome do primogênito Flávio Bolsonaro. O presidente cuidou de atalhar: "Acabou a entrevista".

Bolsonaro já deu respostas piores. "Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai", declarou, por exemplo, quando um repórter quis saber se dispunha de comprovante de um empréstimo de R$ 40 mil que disse ter feito ao operador de rachadinhas Fabrício Queiroz.

"Estou com vontade de encher a tua boca na porrada", disse o capitão ao repórter que ousou inquiri-lo sobre os depósitos feitos por Queiroz e a mulher dele na conta da primeira-dama Michelle. Somaram não R$ 40 mil, mas R$ 89 mil.

A imprensa tem incontáveis defeitos. Mas desperta os instintos primitivos de Bolsonaro por conta de uma de suas principais virtudes: o cumprimento da missão jornalística de ajustar as aparências à realidade e não adaptar a realidade às aparências, como parece preferir o capitão.

Não é papel da imprensa apoiar ou se opor a governos. Sua tarefa é a de levar à plateia tudo aquilo que tenha interesse público. Bolsonaro vive às turras com a imprensa porque é um personagem paradoxal.

Cavalgando a democracia, o capitão já acumula 30 anos de mandatos eletivos. Mas não se constrange de submeter o brasileiro ao constrangimento de ouvir comentários como o que fez no último sábado: "Se tivesse que depender de mim, não seria esse o regime que estaríamos vivendo."

Por sorte, o regime democrático brasileiro não depende de Bolsonaro. Enquanto vigorar a democracia, os presidentes continuarão devendo explicações à sociedade.

O capitão logo perceberá que fugir da imprensa não resolve o problema. Qualquer autoridade com meia dúzia de seguranças pode se livrar de um grupo de repórteres. Difícil mesmo é escapar do espelho, cujo reflexo produz avaliações de uma franqueza irretocável.

Dedicado a salvar Flávio, Jair Bolsonaro permitiu 250 mil mortes por covid

Quando te disserem que Jair Bolsonaro é um político incompetente, não acredite. Desde que começou seu mandato, ele conseguiu movimentar as estruturas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e do Ministério Público para proteger a sua família.

A decisão do STJ coroa o seu esforço e deve ter desdobramentos.

Bolsonaro sujeitou as instituições à sobrevivência política do seu clã. Botou a mão peluda sobre Coaf, Receita Federal, Polícia Federal. Encantou procurador e magistrado com a possibilidade de serem indicados ao Supremo e deixou deputados e senadores maravilhados com cargos e emendas.

O azar, para nós, cidadãos deste torrão intertropical de chão, é que ele usa essa competência para proteger os seus e a si mesmo. Imagine se tivesse empregado essa capacidade de articulação toda contra a covid-19? Boa parte dos 250 mil brasileiros mortos estariam agora por aí, felizes, gritando "mito!" ou "fora, Bolsonaro!". A questão é que, para termos a vida humana como prioridade, o governo teria que ser outro.

Foram dois anos entre os primeiros indícios de depósitos incompatíveis com a renda do ex-assessor Fabrício Queiroz e a denúncia oferecida pelo MP do Rio contra o senador por desvio de recursos públicos, organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Nesse período, o presidente fez o que foi necessário para salvar o filho e, por tabela, a si mesmo. Até porque Queiroz não era o homem de confiança de Flávio, mas de Jair.

O arquivo-vivo se sentiu abandonado pelos ex-chefes e até reclamou que "uma pica do tamanho de um cometa" seria enterrada em seu colo, mas nunca abriu o bico. Chegou a ser preso quando estava muquiado em Atibaia (SP), na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, e passou uma curta temporada em Bangu.

Mas ganhou prisão domiciliar pelas mãos do ministro do STJ João Otávio de Noronha, a quem Jair declarou ser apaixonado, garantindo tranquilidade ao Palácio do Planalto. A decisão de terça deve abrir caminho à sua soltura.

Claro que a defesa de Flávio também soube aproveitar que faltou embasamento ao pedido de quebra de sigilo. O que deve ser didático para o sistema de Justiça brasileiro: crimes importam tanto quanto a forma pela qual são processados e investigados.

Uma pessoa que tenha cometido um delito tem o direito ao devido processo legal. Passar por cima disso, como vimos na Lava Jato pode derrubar o caso e a reputação dos envolvidos.

Por que a esposa de Bolsonaro recebeu R$ 89 mil de Queiroz? E de onde veio esse dinheiro?

Mas mesmo que o risco de um julgamento de Flávio e Queiroz tenha desabado após a decisão, há perguntas que ficarão no ar. A questão deixa de ser jurídica e passa a ser política.

Talvez uma das mais icônicas seja aquela feita por um repórter do jornal O Globo, no dia 23 de agosto do ano passado, sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Na ocasião, o presidente da República afirmou: "Minha vontade é encher tua boca com uma porrada" ao colega. Logo depois, o chamou de "safado".

A quebra de sigilo bancário de Queiroz mostrou que ele depositou R$ 72 mil na conta da primeira-dama entre 2011 e 2018, conforme revelou a revista Crusoé. Sua esposa, Márcia de Aguiar, colocou mais R$ 17 mil – informação obtida pela Folha de S.Paulo. No total, R$ 89 mil.

De acordo com o MP-RJ, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro era o operador do desvio de recursos públicos do gabinete do então deputado estadual. O Coaf havia apontado, em 2018, um depósito de R$ 24 mil de Queiroz para Michelle. Jair prontamente disse que isso era parte da devolução de um empréstimo de R$ 40 mil que ele fez ao amigo de longa data.

No dia 15 de dezembro do ano passado, o presidente afirmou a José Luiz Datena, na TV Bandeirantes, que os cheques foram para ele, não para Michelle, ao longo de dez anos. "Divide aí. R$ 89 mil por 10 anos dá em torno de R$ 750 por mês. Isso é propina? Pelo amor de Deus."

Uma aula de dissimulação política. Ninguém acusou esse dinheiro de ser propina e sim desvio de salários de servidores públicos para as contas da família. E, se isso aconteceu, não importa se foi R$ 1 mil ou R$ 1 milhão – uma vez que o crime se mede pelo fato não pelo valor.

Além disso, o próprio Jair havia dito que tinha emprestado R$ 40 mil e não R$ 89 mil para Queiroz – valores que nunca foram declarados.

Independente de investigações e ações judiciais, um presidente honesto e transparente correria para prestar esclarecimentos decentes e abrir suas contas. Um presidente honesto e transparente.

Essa cobrança pode desaparecer em meio à névoa de insultos, ameaças, agressões, machismos, homofobias, conchavos, tomaladacás, ataques às instituições, golden showers, que turva a República desde Primeiro de Janeiro de 2019.

Cabe à imprensa e à sociedade continuarem perguntando, mesmo que o caso seja encerrado, por que Michelle Bolsonaro recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz. E qual a origem desse dinheiro. Mesmo que não seja mais útil para a Justiça, os eleitores de 2022 vão adorar saber.

A questão é se, até lá, o presidente vai usar sua competência para proibir essa pergunta.


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